O governo ainda nem conseguiu o aumento de carga tributária para equilibrar suas contas, mas já gasta como se não houvesse amanhã.

As últimas semanas foram preocupantes. O Legislativo está deliberando sobre diversas medidas que aumentam o gasto recorrente para beneficiar carreiras de servidores públicos, garantir ainda maiores transferências para municípios e distribuir sinecuras a grupos organizados do setor privado. O Executivo assiste inerte, incapaz de evitar a aprovação das medidas.

A discussão sobre a reforma dos tributos indiretos não para de incorporar novos setores a serem beneficiados. Não basta empresas de eventos e assemelhadas estarem isentas de pagar imposto de renda pelos anos à frente por lei aprovada no período da pandemia e convenientemente prorrogada por cinco anos. Elas agora pedem para serem beneficiadas na reforma dos tributos indiretos.

Advogados e outros profissionais liberais igualmente demandam privilégios na reforma tributária. Não querem que as suas empresas paguem como os demais setores. O mesmo ocorre com produtos da agricultura. Setores de esporte têm sido contemplados nos seus pleitos por mais benefícios.

A lista de pedidos não para de aumentar. Cada grupo beneficiado enseja a demanda de outros para serem igualmente contemplados.

Os dados indicam que o Orçamento para 2024 superestima as receitas e subestima a despesa. Tudo na contramão da boa gestão pública.

A extinção do Teto de Gastos, substituído pelo Arcabouço Fiscal, trouxe problemas previsíveis, como antecipamos aqui.

As despesas com saúde e educação voltaram a estar indexadas à receita corrente. Pela norma constitucional, os gastos com saúde terão que aumentar R$ 18 bilhões este ano em comparação com o previsto no Orçamento. Em 2024, essa despesa terá que aumentar ainda mais, cerca de R$ 50 bilhões a mais que o valor orçado para 2023.

O governo promete cobrir o aumento de despesas tributando os “super ricos”, mas aqui há mais retórica do que fato. A cobrança de tributos sobre fundos exclusivos e offshores gera uma receita pequena, 12% do que o governo diz precisar.

Não houve proposta, até o momento, para rever os benefícios tributários de muitos grupos de alta renda, como os sócios de empresas no Regime do Lucro Presumido, com faturamento de até R$ 78 milhões, que pagam proporcionalmente menos tributos do que a maioria dos trabalhadores. Existe proposta para elevar o limite de faturamento do Simples, beneficiando pessoas de alta renda com negócios que faturam até R$ 8,7 milhões por ano.

A maior parte da arrecadação prometida decorre de dois fatores: i) a nova regra sobre a tributação dos benefícios fiscais concedidos pelos estados; e ii) medidas para forçar empresas a fazer acordos com a Receita para encerrar conflitos sobre a tributação ocorrida no passado.

Há diversas controvérsias sobre esses conflitos. Em muitos casos, a Receita adiciona paulatinamente critérios não previstos em lei que, segundo ela, deveriam ter sido observados. Ver, por exemplo, o trabalho do Insper que documenta os seguidos critérios adotados pela Receita para calcular as obrigações previdenciárias das empresas.

Outro trabalho do Insper documenta o montante impressionante do contencioso tributário no Brasil, mais de 50 vezes o observado nos países da OCDE ou da América Latina. Um terceiro utiliza técnicas de ciência de dados para analisar cerca de 750 milhões de decisões sobre disputas tributárias. Ambos acessíveis aqui.

Cabe destacar, contudo, que mesmo que os novos instrumentos consigam que as empresas façam acordos para negociar parte do contencioso tributário, a receita obtida será não recorrente. Trata-se de acertos de contas com base em querelas do passado.

O problema é que as despesas contratadas são recorrentes: irão se repetir nos anos vindouros. O superávit primário relevante para a análise fiscal de um país é o baseado nos fluxos recorrentes, pois é o que permite estimar a evolução da dívida pública.

O governo, contudo, mistura água e óleo nos seus anúncios.

Parece que estamos em uma situação na qual:

a) o governo não consegue entregar o aumento de receitas que prometeu para estabilizar as contas públicas;

b) sua fragilidade política frente ao Congresso está empurrando os fatos na direção contrária: mais despesa e menor arrecadação em diversos itens;

c) surge uma tendência de acomodar momentaneamente as pressões, porém sem resolver o problema estrutural. Essa tendência inclui caça a receitas temporárias, pressão sobre empresas públicas e privadas para antecipar pagamento de impostos ou desistir de disputas no CARF, orçamento irrealista e distorções de critérios contábeis.

Neste texto, sistematizamos alguns fatos recentes que ilustram esses pontos.

Orçamento 2024

O orçamento de 2024 tem claros sinais de superestimativa de receitas e subestimativa de despesas. Um orçamento responsável deve ser conservador na estimativa de receitas e deve prever margem para despesas inesperadas.

O inverso ocorreu: foram incluídas receitas que se espera advir de medidas ainda não aprovadas no Congresso, e abusou-se do otimismo na fixação da despesa.

São nada menos que R$ 168,5 bilhões que o Governo espera arrecadar com medidas que precisam de aprovação do Congresso.

Além do otimismo em relação ao que cada medida pode arrecadar, temos o fato de que apenas duas delas – a recuperação de créditos no CARF (R$ 97,9 bilhões) e a tributação de subvenções para investimentos (R$ 35,3 bilhões) – representam 79% da expectativa total a arrecadar, sendo parte relevante da receita não recorrente. Ou seja, basta que haja frustração em uma delas para que o potencial de aumento de receitas seja gravemente afetado.

O aumento de despesa recorrente (como o que ocorreu com a aprovação da PEC da Transição) deveria ser financiado com aumento recorrente da arrecadação.

Apesar do discurso de que se pretende tributar os “super ricos”, as medidas que afetam este grupo – tributação de fundos exclusivos e de investimentos no exterior – têm arrecadação estimada em R$ 20,3 bilhões, apenas 12% do impacto total do pacote.

O restante é imposto a ser recolhido por empresas, cujo custo econômico incidirá sobre consumidores ou os acionistas de empresas, e estes últimos não são necessariamente pessoas ricas. Muitos fundos de pensão, como o dos servidores de empresas controladas pelo governo, investem em ações para viabilizar o pagamento das aposentadorias.

Ainda do lado da receita, o orçamento não leva em conta a prorrogação da desoneração da folha de pagamentos para diversos setores.

O Projeto de Lei 334/23, já aprovado na Câmara e no Senado, e agora submetido à avaliação final do Senado, não só renova o benefício tributário como também acrescentou uma redução na alíquota de contribuição previdenciária dos municípios. A perda de receita, na casa dos R$ 18 bilhões anuais, não está no orçamento.

Além disso, o governo tem apresentado números inconstantes sobre as diversas medidas para aumentar a arrecadação, como comentamos em outro artigo.

Do lado da despesa, temos uma subestimativa do principal item de gastos – os benefícios previdenciários – em pelo menos R$ 16 bilhões, por meio de um procedimento pouco ortodoxo, como comentado adiante.

A fragilidade do Executivo frente às demandas de gastos do Congresso deve levar a uma aprovação de emendas parlamentares acima do valor mínimo obrigatório em torno de R$ 15 bilhões.

É difícil esperar um déficit menor que 1% do PIB para 2024. Até porque as notícias vindas do Congresso não são alvissareiras, como mostramos a seguir.

A fragilidade do governo frente ao Congresso

A aprovação a jato da PEC 7/2018 no Senado ilustra a fragilidade da equipe econômica para conter aumento de gastos. Essa medida transfere para os quadros da União servidores dos ex-territórios, aumenta salários, garante direito à aposentadoria e empurra a conta para o Governo Federal.

O custo estimado desse trem da alegria ultrapassa R$ 5 bilhões e pode se aproximar de R$ 10 bilhões.

A aprovação dessa PEC, que estava engavetada, ilustra o descontrole. Foi sacada do arquivo em 21 de março e levada a plenário em abril. No dia 10/9 foi incluída na ordem do dia do Senado e, dois dias depois, estava aprovada e encaminhada à Câmara.

Trata-se de mais um caso típico de medida com pouco  mérito, alto custo e benefícios concentrados. Projetos desse tipo ficam à espreita, aguardando uma fragilidade da equipe econômica, que avalizou as metas fiscais, para serem aprovados de forma relâmpago.

Já seria ruim se a iniciativa de pautar e aprovar o projeto tivesse surgido na oposição. Mas foi nada menos que o líder do governo no Congresso quem propôs a PEC, solicitou o desarquivamento e liderou sua aprovação.

Não é difícil identificar outros projetos assemelhados que circulam no Congresso.

Por exemplo, o PLP 108/21, que reajusta o limite máximo de faturamento para enquadramento no MEI (de R$ 81 mil para R$ 144 mil) e no Simples (de R$ 4,8 milhões para R$ 8,7 milhões) em breve será a bola da vez.

São vários os problemas aí embutidos: subsídio tributário a empresas, incentivo à pejotização da relação de trabalho, perda de receita previdenciária, baixa focalização nos mais pobres e indução à má alocação de recursos, o que prejudica a produtividade e o crescimento econômico.

Apesar disso, o Ministério da Indústria e Comércio apoia o projeto e tem até oferecido contribuições ao texto do substitutivo.

A PEC 10/2023, apresentada pelo Presidente do Senado, propõe a volta do pagamento de adicionais de tempo de serviço a membros da magistratura. Existem diversos projetos fixando pisos salariais, como o dos guardas municipais (PL 2298/2022), já aprovado na CCJ do Senado e agora tramitando na Comissão de Segurança Pública.

Um projeto de Lei Orgânica da Polícia Militar (PL 3045/2022), já aprovado na Câmara e agora tramitando no Senado, tem um dispositivo que equipara os salários dos policiais militares do Rio de Janeiro e dos ex-territórios aos praticados no Distrito Federal, o que provavelmente levará a União a custeá-los, como já faz com os do Distrito Federal.

Até mesmo a PEC da Reforma Administrativa (PEC 32/2020), alçada por líderes do Congresso à condição de prioridade política por representar uma iniciativa de responsabilidade fiscal, contém dispositivo propondo ampliar a pensão em valor integral para policiais e restabelece a integralidade dos proventos da aposentadoria desses servidores na Constituição, alterando a recém aprovada reforma da previdência.

A farra não tem fim. Municípios e Estados também se mobilizam por novos benefícios. A lista é tão grande que optamos por publicá-la em outro artigo.

Com o aperto das contas, surgem as más práticas fiscais

Não conseguindo segurar a escalada do déficit, Executivo e Legislativo passam a se valer de práticas fiscais criativas para disfarçar o tamanho do desequilíbrio.

Isso começou já no final de 2022. A PEC da Transição (EC 126/22) determinou que recursos do PIS/PASEP transferidos ao Tesouro fossem contabilizados como receita primária, na contramão da boa prática contábil.

Nos primeiros relatórios bimestrais de receita e despesa, o governo omitiu o impacto de decisões políticas já tomadas, como o aumento do salário mínimo e o ressarcimento aos estados e municípios do custo do piso salarial da enfermagem e da redução do ICMS. Somente no segundo semestre, passou a incorporar os valores nas contas.

No começo de agosto, o Conselho Nacional da Previdência Social estimou os gastos para 2024. Duas semanas depois, segundo a imprensa, em resposta a um ofício da equipe econômica, reviu o número, que foi reduzido em R$ 12,5 bilhões.

Como costuma dizer o Ministro Pedro Malan, esse tipo de intenção lembra os tempos do orçamento monetário, nos anos 1970-80: quando as contas não fechavam, criava-se uma linha chamada “esforço de arrecadação” para apresentar um orçamento equilibrado.

A ajuda financeira aos estados e municípios através do PLP 136/23, acima descrita, será classificada como “crédito extraordinário” para fugir ao limite de gastos de 2023. Este tipo de classificação, segundo o art. 167, § 3º, da Constituição só é cabível em situações de “despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública”; o que certamente não é o caso.

Mais impressionante é a tentativa de mudar a regra constitucional do gasto mínimo em saúde por meio de lei complementar.

Com o fim do teto de gastos, a correção do gasto mínimo em saúde deixa de ser feita pela variação da inflação e volta a acompanhar o crescimento da receita, já em 2023. Foi um cochilo na redação: deveria ter sido prevista a mudança a partir de 2024. A falta de atenção aos detalhes vai exigir R$ 18 bilhões a mais de despesa em 2023.

Para mudar esta situação, somente com aprovação de uma PEC (Emenda Constitucional). Afinal, o § 2º do art. 198 da Constituição diz claramente que a União aplicará, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos equivalentes à “receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15%” (grifo nosso).

Representantes do governo estão tentando corrigir o erro com a inclusão em um Projeto de Lei Complementar, PLP 136/23, de um dispositivo estabelecendo que, neste ano, o piso previsto na Constituição deverá ser calculado com base na receita orçada, menor do que a realizada.

Ora, a Constituição diz explicitamente que a base de cálculo é a receita corrente líquida do exercício financeiro. Nada mal ser proposta uma Lei Complementar para alterar o texto da Constituição, o que, pela nosso ordenamento jurídico, só poderia ser feito por uma Emenda Constitucional.

A criatividade com as normas e os procedimentos para viabilizar maiores gastos ou tapar buracos, burlando a regra, é a antessala de manipulações contábeis que já assistimos no passado.

Preocupa, por exemplo, que se fale abertamente em obter mais de R$ 30 bilhões mediante acordo com a Petrobras para que ela desista de ações no CARF. Isso é usar o poder do governo sobre uma empresa para que ela deixe de perseguir o interesse dos seus acionistas. Pior ainda se o movimento também atingir empresas privadas.

Sem conseguir cumprir o que prometeu, e vulnerável a pressões por mais gastos e menos receitas, qual será a reação do governo nos próximos meses?

Jogará a toalha, mudando a meta fiscal e assumindo que estamos em um regime fiscal inconsistente? Será que a equipe econômica terá capacidade para recobrar o controle da política fiscal? Irá apoiar autuações indiscriminadas das empresas privadas por parte da Receita para obter um resultado primário imediato, mesmo que insustentável a longo prazo? Ou vai sucumbir e avançar na contabilidade criativa?

Marcos Lisboa e Marcos Mendes são economistas.

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