A novela do descontrole fiscal continua.

Em outro artigo, sistematizamos muitas das medidas para ampliar o gasto, subestimar a despesa e as manobras para garantir que tudo está bem.

Nesta segunda parte, destacamos as demandas por novos benefícios para municípios e estados. Tudo à custa do orçamento do governo federal.

A conta não é pequena e a pressão parece estar funcionando, como ocorreu no passado.

A mobilização dos municípios clamando por ajuda federal ganhou corpo nas últimas semanas. Um dos argumentos centrais é de que as transferências do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) caiu recentemente.

Em julho e agosto houve queda em relação ao transferido nos mesmos meses de 2022: – 0,6% em julho e -8% em agosto.

Contudo, o ano de 2022 teve o maior valor real da série histórica do FPM. O gráfico abaixo mostra que, em reais de 2023, foram transferidos R$ 151 bilhões em 2022, um aumento de 13% acima da inflação em relação ao que se transferiu em 2021, que também já havia crescido bastante em relação aos anos anteriores.

Grafico Marcos Lisboa

Fonte: STN- Tesouro Transparente. Elaborado pelos autores. Deflator: IPCA jun-jun.

O problema decorre do forte aumento de receita nos últimos anos que induziram aumentos de despesas, seja devido à vinculação obrigatória à receita dos gastos com saúde e educação, seja porque a maior disponibilidade de recursos estimulou o aumento do gasto recorrente, sobretudo com a folha de pagamento dos servidores.

Além disso, o próprio Congresso e o Executivo têm culpa no cartório. Eles aprovaram leis que geram custos adicionais para os municípios. Por exemplo: pisos salariais para categorias profissionais, como enfermeiros e professores, aumento real do salário mínimo e limitação na tributação do ICMS (cuja receita é dividida com os municípios).

Os municípios têm tido sucesso em conseguir mecanismos para extrair recursos adicionais do Governo Federal.

A lista é grande, a começar pelo PL 334/23, que diminui a contribuição previdenciária dos municípios ao INSS (R$ 9 bilhões). Registre-se que, sem conseguir reverter a aprovação do projeto, o líder do governo na Câmara foi instado a declarar apoio à medida.

Há diversas PECs propondo o aumento temporário ou permanente dos recursos federais destinados ao FPM. No passado, três emendas constitucionais já elevaram esse percentual (em 2007, 2014 e 2021). Trata-se de caminho já conhecido pelas organizações municipalistas, acionado sempre que se cria ambiente propício à extração de mais recursos.

Para evitar que as duas iniciativas acima prosperem, o Governo resolveu negociar e aceitou fazer transferências extras aos municípios. O texto final do PLP 136/23, aprovado na Câmara, prevê os seguintes benefícios:

• transferência extraordinária ao FPM em valor equivalente à diferença real entre o que foi transferido de julho a setembro de 2022 e o que for transferido no mesmo período de 2023 (valor que deve ficar na casa de R$ 3,5 bilhões)

• outra transferência extraordinária ao final do ano, caso a transferência descrita no item acima não seja suficiente para manter o valor real recebido em 2023 em montante equivalente ao de 2022

• antecipação para 2023 de ressarcimento que deveria ser pago em 2024 a título de compensação por limitação nas alíquotas de ICMS sobre combustíveis, energia e telecomunicações (R$ 2,5 bilhões)

Apesar de toda mobilização em torno de alegada crise fiscal estar focada nos municípios, os estados também tentam tirar uma casquinha da situação.

Nesse mesmo PLP 136/23, conseguiram uma transferência extra ao Fundo de Participação dos Estados da ordem de R$ 1,6 bilhão.

Eles também serão beneficiados pela antecipação de pagamento que seria devido apenas em 2024, na casa de R$ 7,5 bilhões.

Essas despesas afetarão o resultado primário de 2023. São 15,1 bilhões.

Tudo o mais constante, considerando que a última estimativa oficial de déficit para este ano é de R$ 145 bilhões, subiríamos para R$ 160 bilhões (1,5% do PIB), muito distante do 0,5% prometidos no início do ano e do 1% que o governo diz agora perseguir.

Outra concessão aos municípios foi feita por meio do Decreto 11.699/23. Ele amplia o conjunto de municípios elegíveis a participar do Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal (PEF), ao permitir o acesso de municípios com mais de 200 mil habitantes, enquanto a regra anterior exigia 1 milhão de habitantes.

Esse Plano foi aprovado em 2021 em decorrência da pressão de estados e municípios por alívio fiscal.

Trata-se de um mau negócio para a União, pois consiste em dar garantia federal a estados e municípios com baixa capacidade de pagamento para contratação de empréstimos. A contrapartida é a aprovação de medidas de ajuste e transparência fiscal.

Para sorte do Tesouro, apenas dois municípios e dois estados haviam aderido. O melhor seria deixar como está. Mas com o Decreto outros 141 municípios se tornam elegíveis, com um potencial de tomar até R$ 15 bilhões em crédito.

Como a prática dos governos locais tem sido não pagar as dívidas e deixar a conta para o Tesouro, temos um novo front de preocupação fiscal.

Os municípios têm outras cartas na manga. Por exemplo, a PEC 14/2023, apresentada no Senado, determina que os convênios entre entes subnacionais e a União sejam indexados pela inflação, inclusive corrigindo os valores dos que estão em vigor.

A agenda de auxílio a governos locais parece não ter fim. O restante da sociedade que pague a conta.

 

Marcos Lisboa e Marcos Mendes são economistas.