Este texto sintetiza diversos aspectos e consequências da regra fiscal proposta pelo Governo Federal recentemente, o chamado arcabouço fiscal.

Em trabalho anterior, dois dos autores deste texto (Lisboa e Mendes) analisaram os possíveis cenários para os resultados do arcabouço utilizando indicadores agregados de receita e despesa, logo em seguida ao anúncio da equipe econômica.

Com o fim do Teto de Gastos, contudo, voltam a valer diversas regras de reajuste de itens específicos da despesa. Os gastos mínimos com saúde e educação passam a estar vinculados à receita do ano corrente. Além disso, o próprio governo tem sinalizado a intenção de garantir reajustes para servidores públicos e o retorno da regra de correção do salário mínimo que resulte em ganhos reais.

Neste trabalho, analisamos a consistência do Arcabouço, que rege a despesa total, com as diversas regras que passariam a reajustar os principais itens da despesa obrigatória. Vale ressaltar que esses itens compõem a maior parte da despesa total.

Nossa principal conclusão é que a retomada integral das regras de reajuste de despesa obrigatória é incompatível com o Arcabouço Fiscal, caso o governo persiga as metas anunciadas de superávit primário. Além disso, mesmo com aumento de receita, o Arcabouço não deverá garantir estabilidade da dívida pública como proporção do PIB. Essas conclusões se baseiam em diversas simulações sobre a evolução das despesas, tendo em vista a multiplicidade de regras que devem ser observadas.

Em quase todas as simulações, tratamos a receita do governo como variável de ajuste, aquela necessária para cumprir as metas de superávit primário e as regras de despesa. Trata-se de uma hipótese forte tendo em vista o aumento expressivo da arrecadação que ela implica, como veremos.

Nosso objetivo foi simular o caso mais favorável à proposta do governo. Mesmo assim, a retomada dos reajustes de despesas obrigatórias e as regras do Arcabouço se revelam incompatíveis com as metas de resultado primário.

Num texto mais longo que acompanha este sumário, disponível aqui, detalhamos as hipóteses e procedimentos adotados, assim como as projeções para a evolução da despesa do orçamento federal em cada cenário. Esse detalhamento permite comparar nossos resultados com os obtidos por outras simulações feitas com hipóteses distintas das que utilizamos.

Um ponto relevante de nossas simulações diz respeito aos dados de 2023: buscamos ser realistas em relação às obrigações de despesa já assumidas. O 1º Relatório Bimestral de Receitas e Despesas, que constitui a previsão oficial de gasto e arrecadação do Governo Federal para 2023, contém diversas despesas subestimadas.

Não considera, por exemplo, o reajuste do salário mínimo para R$ 1.320 a partir de 1º de maio, o que tem impacto nas despesas previdenciárias e assistenciais. Também não considera despesas já decididas, como o pagamento do piso salarial da enfermagem (determinado por emenda constitucional) ou a compensação a estados e municípios por queda de arrecadação do ICMS (conforme acordo mediado pelo STF).

Nas nossas simulações, incorporamos essas despesas contratadas que não constavam do relatório bimestral. É essencial que se tenha uma perspectiva realista das despesas para que as estimativas nos indiquem corretamente o esforço fiscal necessário para o cumprimento das regras do arcabouço.

Nesse sentido, também consideramos necessário incluir nas despesas de 2023 R$ 10 bilhões relativos à formação de fundo garantidor para o Programa Desenrola (refinanciamento de dívidas) anunciado pelo governo. Igualmente importante é considerar o saldo de precatórios devidos e não pagos que, de acordo com as PECs dos Precatórios (EC 113/21 e CE 114/21) precisarão ser saldados a partir de 2027. Ademais, assumimos que haverá créditos extraordinários em valor equivalente à média histórica recente, desconsiderado o período da pandemia, quando esses créditos subiram bastante.

Todos esses valores considerados, temos um acréscimo de R$ 58 bilhões em relação às projeções oficiais.

Note-se que mesmo as despesas não sujeitas ao limite de gastos afetam o resultado primário e, portanto, o seu aumento exige maior receita para o atingimento da meta de primário. Daí a importância de ter a maior acurácia e realismo possível na previsão das despesas.

As regras e quatro cenários

O novo arcabouço fiscal limita o crescimento real da despesa de um ano a 70% do aumento real da receita do ano anterior. Caso a meta de resultado primário não tenha sido atingida no ano anterior, o crescimento da despesa no ano seguinte seria de 50% do aumento da receita. Além disso, esse aumento da despesa deverá ficar dentro de uma banda de crescimento real: entre 0,6% e 2,5% acima da inflação.

Para testar a hipótese de que o governo atingirá as metas de resultado primário apresentadas (-0,5% do PIB em 2023, 0% em 2024, +0,5% em 2025 e +1,0% em 2026, com intervalo de tolerância de 0,25 pp para cima ou para baixo) e de que isso estabilizará a dívida pública como proporção do PIB, fizemos diversas simulações, incorporando as condições do arcabouço e as regras que regem o crescimento de diversas despesas obrigatórias.

No Brasil, existem diversos limites e regras de reajuste para algumas despesas obrigatórias, como Previdência Social e Benefício de Prestação Continuada (BPC), dependentes da variação do salário mínimo. Ademais, com a revogação do Teto de Gastos, os gastos mínimos com saúde e educação voltarão a ficar vinculados à variação da receita. O arcabouço prevê ainda um piso para o investimento. Além disso, o governo tem prometido aumentos acima da inflação tanto para o salário mínimo quanto para a folha de pagamento dos servidores.

Para incorporar diversas possibilidades de crescimento de itens de despesa, construímos inicialmente quatro cenários:

  1. Cenário 1: sem pressão de vinculação de receitas com a Manutenção e Desenvolvimento da Educação (MDE) e com Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) e sem crescimento real das despesas obrigatórias;
  2. Cenário 2: volta da indexação nas despesas de saúde e educação à receita do mesmo ano, mas sem reajustes reais do salário mínimo ou da folha de pagamentos;
  3. Cenário 3: reajustes reais do salário mínimo e aumento real da folha de pagamentos de servidores, porém sem indexar as despesas de saúde e educação à receita;
  4. Cenário 4: todas as propostas simultaneamente — indexação de saúde e educação, reajustes reais do salário mínimo e da folha de pagamentos.

Além desses gastos obrigatórios, existe uma grande quantidade de políticas públicas que não são regidas por normas legais ou regras de reajuste, mas que fazem parte essencial das ações do governo federal. Estamos falando de merenda escolar (não computada como gasto em manutenção e desenvolvimento do ensino), fundo de ciência e tecnologia, fundo penitenciário nacional, subsídios à agricultura e demais atividades econômicas, proteção ao meio ambiente e todo o custeio da máquina pública entre outras despesas. Usamos a denominação “demais despesas” para esse conjunto de políticas.

Buscamos verificar, nesses cenários, o aumento de receita necessário para que o governo atinja as metas de resultado primário e o grau de compressão das “demais despesas” necessário para cumprir os limites de gastos. Fomos conservadores tanto nas projeções dos gastos obrigatórios quanto na meta de resultado primário a atingir. Nas nossas simulações, optamos pelo limite inferior da meta do governo em cada ano, tornando menos difícil seu cumprimento.

Nos cenários 1 a 4, a receita tem que aumentar para 20,1% do PIB até 2027. Comparada com a expectativa de receita de 18,1% em 2023, projetada no 1º relatório bimestral do governo neste ano, isso representa um aumento de 2 pontos percentuais do PIB, indicando quem em 2027 a receita precisará estar  R$211 bilhões acima do nível atual.em valores de 2023.

Com relação às “demais despesas”, no primeiro cenário, que considera a regra fiscal isoladamente, ignorando a existência de despesas obrigatórias com regras próprias de crescimento ou vinculações, não há problema de compressão dos gastos. Pelo contrário, sobraria amplo espaço para aumentar as demais despesas. Isso mostra que a regra, em si, não é apertada, desde que se verifique o aumento da receita.

Em seguida, verificamos as consequências da volta da indexação nas depesas de saúde e educação à receita do mesmo ano, mas sem reajustes reais do salário mínimo ou da folha de pagamentos. As demais despesas têm forte queda nos primeiros anos: em 2025 estariam 30% abaixo do valor real de 2022. Um grande desafio a atravessar, ainda que, aos poucos, elas se recuperem, terminando a década no mesmo nível observado em  2022. Isso aponta a incompatibilidade da regra fiscal com o retorno da indexação das despesas mínimas de saúde e educação à receita.

No terceiro cenário, analisamos o impacto de reajustes do salário mínimo e do aumento real da folha de pagamentos de servidores, porém sem indexar as despesas de saúde e educação à receita. A queda das demais despesas é menor nos primeiros anos, mas se intensifica ao longo do tempo. Elas terminam a década 35% menores do que em 2022. Como no caso anterior, constatamos incompatibilidade da regra fiscal com o retorno da política de reajustes reais do salário mínimo e da folha de pagamentos do funcionalismo.

O último cenário, mais realista tendo em vista as comunicações oficiais, contempla todas as propostas simultaneamente: indexação das despesas de saúde e educação, reajuste real do salário mínimo e da folha de pagamentos. O resultado é que as demais despesas precisam ser comprimidas severamente já a partir de 2023, indo a quase zero em 2030, já enfrentando forte pressão a partir de 2024.

Fica claro que, mesmo isoladamente, tanto a vinculação do gasto mínimo de saúde e educação, quanto os reajustes reais do mínimo e da folha de pagamentos são incompatíveis com o cumprimento dos resultados primários propostos na regra do arcabouço.

Dois novos cenários

Diante dos problemas apontados na seção anterior, testamos mais dois cenários.

No cenário 5, as despesas obrigatórias e vinculadas se comportam exatamente como no cenário 4. Porém, para evitar que as demais despesas sejam excessivamente comprimidas, impusemos um limite a sua redução de no máximo 10% do valor real observado em 2022.

Nesse caso, a estimativa fica mais difícil. Nos exercícios anteriores, era possível fazer todo o ajuste necessário para chegar ao resultado primário cortando as demais despesas. Agora, com um limite mínimo para elas, perdemos essa variável de ajuste.

A meta de resultado primário precisa ser obtida mediante aumento de receitas. Porém esse aumento da receita implica maiores aumentos nas despesas de saúde e educação, que sobem com a receita do mesmo ano, segundo a vinculação constitucional. Isso reduz o resultado primário e exige mais receita para fechar a conta, criando uma circularidade no exercício.

Por meio de um argumento recursivo, calculamos a receita que compatibiliza a meta de resultado primário e o respeito às vinculações das despesas com saúde e educação.

Como resultado, obtivemos que a receita líquida anual tem de aumentar bem mais que no primeiro conjunto de simulações, atingindo 20,8% do PIB em 2027. Comparada à expectativa de receita de 18,1% em 2023, estimada pelo 1º relatório bimestral do governo neste ano, isso representa um aumento de 2,7p.p., ou R$ 288 bilhões em valores de 2023.

Para ter uma ideia de como é grande esse aumento de receita, ele constitui montante próximo à receita total de Imposto de Renda que, em 2022, ficou com o Governo Federal. Foram arrecadados R$ 667 bilhões, com metade repassada, por regra constitucional, aos estados e municípios, restando R$ 334 bilhões líquidos para o Tesouro Nacional.

Surge, ademais, outro problema. Com todos os itens de despesa tendo regras de correção determinadas por critérios exógenos aos da regra fiscal (pois se assume um limite mínimo para queda das “demais despesas”), perde-se o mecanismo de ajuste para garantir que a trajetória da despesa fique dentro dos limites do Arcabouço Fiscal.

Esse problema aparece nas simulações do Cenário 5. Caso as metas de resultado primário sejam observadas, há uma inconsistência entre o conjunto das regras do Arcabouço para a trajetória da despesa, o limite à queda das “demais despesas” e as intenções do governo relativas a aumento do salário mínimo, dos servidores e à vinculação das despesas de saúde e educação.

Quando se limita a queda das “demais despesas”, mesmo que a 10% reais, um número ambicioso, a receita teria de crescer significativamente, e, mesmo assim, as regras do Arcabouço seriam violadas. As despesas cresceriam mais que o limite imposto pela regra fiscal.

Diante dessas dificuldades, fizemos um último cenário que se pretende mais próximo do que provavelmente acontecerá. Adotamos uma meta realista, ainda que otimista, para o crescimento da receita e fixamos um piso para as demais despesas. Nesse caso, contudo, o governo não consegue entregar a meta de resultado primário.

Nessa última simulação, supusemos que a receita cresceria, por esforço de arrecadação, de 18,1% para 18,5% do PIB em 2023. Depois continuaria crescendo 0,2 ponto percentual a cada ano, chegando em 2030 no valor de  19,9% do PIB. Para efeito de comparação, a média do período 2010-2022 (retirando o ano de 2020, em que houve queda atípica de receita devido à pandemia) foi de 18,2% do PIB.

Simultaneamente, estabelecemos, como no cenário 5, que as demais despesas não poderiam cair, em termos reais, abaixo de 90% de seu nível em 2002. O resultado é que teríamos déficits primários até 2027, seguidos por superávits pouco expressivos até 2030 (entre 0,2% e 0,8% do PIB).

Por fim, simulamos a trajetória de crescimento da dívida tanto nos cenários em que a meta de resutado primário é cumprida (cenários 1 a 5), quanto no que ela não é cumprida (cenário 6). Em nenhum cenário há estabilização da dívida até o fim desta década. Nos cenários 1 a 5, a dívida pública chega a 87% do PIB em 2030, partindo de 73% em 2022. No cenário 6, ela vai a 92% do PIB.

Cabe destacar que não incorporamos na análise as emendas de parlamentares, que, com o fim da regra do teto de gastos, também voltarão a estar indexadas à receita.

Portanto, nossa principal conclusão é que o conjunto da obra definido pelo arcabouço e pelas intenções de expansão da despesa obrigatória sinalizadas pelo governo é inconsistente com o que foi inicialmente anunciado como meta de superávit primário. E também não sinaliza a estabilização da relação dívida/PIB até o fim da década.

 

Marcos Lisboa, Marília Taveira, Cristiano de Souza e Rogério Nagamine Costanzi são economistas.

Marcos Mendes é pesquisador associado do Insper.