A cidade do Rio de Janeiro continua fazendo de tudo para não sair do buraco. 
 
Campeã nacional do descontrole financeiro e segunda capital mais endividada do país, o Rio é de longe a cidade com o maior comprometimento de receitas, com 76% de tudo o que recebe destinado ao pagamento da folha.  
 
Em outras palavras, o Rio não só deve muito, como consome quase tudo o que arrecada, sem recursos para servir ou pagar sua dívida. 

Em 2017, o Rio “queimou” R$ 1,4 bilhão.  Essa situação de insolvência aguda evidentemente se reflete na capacidade da cidade de investir. Em 2017, os dispêndios do Rio com investimentos caíram 80%. Não há dinheiro. Nesse contexto de falência completa, o Rio depende mais do que nunca do capital privado. 
 
E foi aí que seu dinâmico prefeito resolveu dar sinais inequívocos de que não entende isso.

Extremamente impopular e sobrevivente de um inédito processo municipal de impeachment por irregularidades na celebração de contratos publicitários, o nobre alcaide resolveu partir para a pior variante do populismo. Na noite do último domingo, o prefeito comandou pessoalmente a destruição das cancelas de cobrança de pedágio de uma concessionária municipal, a Linha Amarela. Sem ordem ou autorização judicial.
 
Simples assim.
 
As cenas são absolutamente chocantes. Um trator destruindo bens públicos — já que os ativos físicos são revertidos ao poder concedente ao final do contrato — sob o olhar satisfeito de um governante que preside o derretimento dos contratos e das instituições (para o leitor interessado em flertar com a depressão, as cenas são imperdíveis).

A truculência foi tamanha e a ilegalidade da ação, tão evidente, que na própria madrugada da segunda-feira, horas depois da destruição e em pleno feriado (ironicamente dia do servidor público) um juiz de plantão deu uma liminar arrasadora para as pretensões do prefeito.

A ação do prefeito pegou mal. Jornais criticando, opinião pública incomodada com o descaso com a lei. Foi então que, na melhor escola “Nicolas Maduro”, o prefeito resolveu, a toque de caixa, enviar à Câmara dos Vereadores um projeto de lei encampando a concessão, isto é, rompendo o contrato unilateralmente. 
 
A lei e a Constituição determinam que esse ato requer indenização prévia. No projeto de lei de Crivella, esta é dispensada: “considera-se amortizada com os lucros do concessionários” que, claro, no julgamento do próprio prefeito, são excessivos.
 
Toda concessão de infraestrutura requer investimentos enormes no início do contrato, que são amortizados ao longo de muitos anos pelas tarifas pagas pelos usuários. É assim com concessões de água e esgoto, energia elétrica, rodovias. A tentação para o governante de tentar “renegociar a tarifa” logo após feitos os investimentos é enorme. 
 
Por isso, o direito regulatório trata os contatos de concessão como sacrossantos. O poder concedente é parte, não árbitro – e tem que seguir o contrato, a não ser que um “terceiro” julgue o arranjo desequilibrado. 
 
Crivella sabe disso, e por isso resolveu agir fora das regras do jogo. Foi violento e agora tenta dar um banho de institucionalidade ao ato de abuso com uma lei feita às pressas. Ouvi hoje que a Câmara de Vereadores pretende aprová-la já na segunda-feira.
 
Que agilidade impressionante.
 
Por essas e outras, não importa que a Selic tenha baixado a 5% e a taxa real de juros de curto prazo esteja abaixo de 1,5%. O Brasil não é a Suíça, e não será tão cedo.
 
Para quem investe na economia real, nosso custo de capital reflete o risco Crivella. Nenhum investidor com qualquer resquício de sanidade – ainda me considero um destes – investirá um centavo no Rio de Janeiro se seu investimento estiver ao alcance deste tipo de ingerência eleitoreira.
 
O que espanta não é apenas a tentativa grosseira de expropriação. Ao simplesmente enviar tratores para destruir um bem público sem nenhuma pretensão de respeito a legalidade, o prefeito cruzou uma linha que até hoje não tinha visto nenhum governante romper, nem em situações extremas.
 
Na definição clássica weberiana, o Estado só existe porque nós, em comum acordo, lhe outorgamos o monopólio da violência. Cumpre então ao governante utilizar esta prerrogativa apenas e sempre para cumprir a lei — nunca para escapar dela.
 
Não há discussão ou argumento contra o fuzil. Os tratores de Crivella dispensaram qualquer processo. Agora seu projeto de lei apenas torna a farsa ainda mais dantesca. No teatro dos abusos, as vítimas são a concessionária e seus acionistas, os pobres pensionistas de Petros, Previ e Funcef — sim, quem perde são os aposentados que recebem pensão destes fundos.
 
Mas os maiores prejudicados são os cariocas. Com o desaparecimento do pedágio de R$ 7,50, vai embora qualquer perspectiva de atrair capital privado para mobilidade urbana na cidade do Rio.
 
Me perguntaram se a situação do Rio lembra a da Argentina. Pensei um pouco: rompimento de contratos, abuso de violência por parte do próprio Estado, lei de encampação sem indenização prévia… não, o Rio de Janeiro não remete à Argentina.
 
O Rio lembra, infelizmente, a Venezuela.
 
Longa vida ao alcaide bolivariano.
 
 
 
 
Daniel Goldberg foi presidente do banco Morgan Stanley e Secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça.  É sócio-gestor da Farallon Latin America. Os investimentos da gestora incluem dívida da Invepar, controladora da Linha Amarela.