“Que ironia, não é Márcio?,” Lúcia comenta comigo. “O Luis Fernando, que tão bem fez uso das palavras, hoje vive num mundo quase de silêncio.”

O triste lamento – ao mesmo tempo tranquilo e conformado, sem nenhuma dose de comiseração – é de Lúcia Verissimo, 79 anos, e desde 1964 casada com Luis Fernando Verissimo.

Ao me receber há poucos dias na casa da família, basicamente o único lar que o jornalista e escritor teve por toda a vida, Lúcia administra bem a situação de manter o marido confortável. 

Fernanda, a filha mais velha, mora a poucas quadras dali. Pedro, o mais novo, mora com eles. São os dois que dão o auxílio mais imediato a Lúcia, fazendo a casa funcionar e permitindo que Luis Fernando tenha um cotidiano mais leve. Mariana – a filha do meio, que mora em São Paulo – recentemente passou alguns dias com os pais.

Aos 87 anos (88 no final de setembro), Verissimo recupera-se de um AVC isquêmico que sofreu em janeiro de 2021. A situação foi grave, e o escritor precisou passar semanas no hospital.

Os movimentos aos poucos foram recuperados, mas as dificuldades para falar e escrever permaneceram. Como o AVC ocorreu durante a pandemia, os cuidados após o retorno para casa foram redobrados, com Lúcia e Luis Fernando se recolhendo, saindo apenas para tomar as vacinas.

Naquele período, as poucas visitas nem entravam. Conversavam com o casal no portão, ou, dependendo da intimidade, no pátio. Nesse meio tempo, Luis Fernando – também cardíaco e diabético – passou ainda por uma cirurgia na mandíbula. Os cuidados com a dieta que uma pessoa como ele precisa ter eventualmente são desrespeitados. “Dia desses, servi um pudim de laranja,” conta Lúcia. “Ele apontou para o prato e disse: ‘Mais!’”  

Lúcia serviu, claro.

Nos últimos tempos, os dois quase nunca saem. Rara exceção foi em novembro de 2022, quando Lúcia e Luis Fernando foram a um show de Chico Buarque. Com tudo arrumado pela produção, chegaram antes, estacionaram na porta do auditório, passaram pelo camarim para ver Chico e foram encaminhados aos seus lugares. No final, foram saudados pelo artista, que apontou feliz para a plateia e agradeceu a presença.

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Quando conversamos, semanas atrás, ninguém poderia imaginar que Porto Alegre viveria sua maior tragédia em poucos dias. Com o Guaíba chegando a impensáveis cinco metros e alagando boa parte da capital, o caos tomou conta. 

Casas destruídas, prédios inundados, uma centena de mortos, milhares de flagelados e desaparecidos. 

Tragédia semelhante só havia ocorrido em 1941, quando Luis Fernando, à época com menos de cinco anos, nem deve ter tido consciência da crise.

Dentro das condições atuais, os Verissimo estão bem. A casa em que vivem é numa região alta da cidade, não atingida pela fúria do rio. De mais grave há o problema do fornecimento de água, que foi cortado, e a falta de água potável para consumo. Para casos mais emergenciais, recorrem aos vizinhos.

Por essa e outras razões, eles ainda não viram o documentário Verissimo, que aborda o cotidiano do escritor às vésperas de completar 80 anos. O filme de Angelo Defanti tinha estreia prevista para o início de maio, mas – por motivos óbvios – teve a sessão cancelada.

Agora, no código que estabeleceu com a mulher e o filho, Luis Fernando se comunica. Sobre a morte do cartunista Ziraldo, ocorrida uma semana antes de minha visita, Lúcia me contou que ele se mostrou interessado em ver o noticiário televisivo – e se emocionou.

A mesma emoção ele havia demonstrado em março do ano passado, quando soube da morte do cartunista Paulo Caruso, de quem era bem próximo. “Amigo!,” balbuciou à mesa quando a família propôs um brinde ao desenhista, segundo Lúcia.

A neta mais velha, Lucinda, 16 anos, frequenta a casa e é a outra alegria do avô, que passa a maior parte do tempo na poltrona vendo TV, acompanhando o noticiário e assistindo jogos dos mais variados campeonatos de futebol, ou então no computador, onde gosta de jogar paciência, ver vídeos de jazz e assistir Seinfeld

Outras distrações, lembra Lúcia, são os filmes em streaming, como a nova versão de Xogum – “o original dos anos 80, nós vimos em Nova York, quando morávamos lá” – e a comédia argentina Meu Querido Zelador, em que ele riu bastante. 

Na imensa biblioteca, Luis Fernando gosta de folhear livros com fotos e desenhos, embora recentemente estivesse com o Ulysses nas mãos, livro que leu há muitos anos.

“Só falta ele, nessa etapa da vida, reler esse livro. E ainda por cima nos explicar”, espanta-se Lúcia. Eu não duvido.