Esta nota descreve e simula alguns dos impactos (e aparentes inconsistências) da regra fiscal apresentada pelo Governo Federal em 30 de março de 2023.

A equipe econômica ainda está a trabalhar no detalhamento da proposta, e o projeto de lei apenas estará disponível nas próximas semanas. Pelo que se pode inferir com base em uma apresentação em PowerPoint, o ajuste fiscal requer um aumento da carga tributária. O ministro da Fazenda mencionou ampliar a arrecadação em cerca de R$ 150 bilhões. Infelizmente, a equipe não deixou claro quais medidas serão adotadas para esse fim.

Vale lembrar que aumentos da maioria dos impostos, por cláusula pétrea da Constituição, devem ser divididos, cerca de meio a meio, com os Estados. Como será feito esse ajuste das receitas do governo federal?

Um ajuste com base em aumento da arrecadação é preocupante tendo em vista a desaceleração da economia. Quais serão os setores a terem aumento da carga tributária, e quais valores poderão ser obtidos? Nada disso ficou claro na apresentação de ontem.

Há, contudo, um problema adicional. A proposta apresentada pela equipe econômica parece estar baseada em parâmetros inconsistentes, ao menos o que foi apresentado até agora. Esta nota detalha os problemas encontrados na apresentação do governo.

A regra consiste em:

1) Crescimento mínimo do gasto primário de 0,6% a.a. acima da inflação;
2) Crescimento máximo do gasto primário de 2,5% a.a. acima da inflação;

3) Dentro dessa banda definida pelo máximo e mínimo, o gasto primário será fixado como 70% do crescimento da receita do exercício anterior.

Além disso, fixou-se um intervalo de resultado primário para cada um dos anos entre 2023 e 2026. Se o resultado ficar abaixo da banda, a taxa de crescimento da despesa pelo critério (3), acima, cai de 70% para 50% do crescimento da receita do exercício anterior.

Será instituído, também, um limite mínimo para investimentos públicos, cujos valores não foram detalhados.

Criou-se, com isso, um sistema complexo em que o limite de despesa de um ano passa a depender da receita e do resultado primário do ano anterior. Em uma primeira avaliação, os parâmetros utilizados parecem inconsistentes. Faz-se, a seguir, um exercício ilustrativo.

Adotamos as hipóteses de crescimento real do PIB expostas na Tabela 1, que estão em linha com as expectativas do último relatório Focus.
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Vamos fazer três hipóteses para o crescimento real da receita nos próximos anos, que pela regra influenciarão a determinação da despesa:

Hipótese A: receita cresce em termos reais às mesmas taxas do PIB;
Hipótese B: taxa de crescimento real da receita oscila,  ora acima e ora abaixo do PIB, como tem sido o comportamento nos últimos anos;

Hipótese C: o Governo faz um aumento de carga tributária de R$ 150 bilhões (conforme proposto pelo Ministro da Fazenda na entrevista que apresentou a regra), que terá impacto a partir de 2024 e, além disso, a receita continua crescendo sistematicamente acima do PIB nos anos seguintes, seja por ganhos de termos de troca (preços de commodities em alta, por exemplo), seja por aumentos adicionais da carga, aumento de eficiência ou redução de benefícios tributários.

A Tabela 2 (abaixo) mostra as hipóteses de taxas de crescimento real da despesa. Note-se que na hipótese C, de aumento de receitas, há um crescimento real de 7,8% na receita de 2024, que justamente representa o aumento de carga de R$ 150 bilhões sugerido pelo Ministro.

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O Gráfico 1 mostra qual seria a trajetória da relação despesa/PIB na hipótese A. Os limites mínimo e máximo de despesa, que serão os mesmos para todos os cenários, pois foram fixados na regra, indicam que a despesa se situará, em 2030, em algum ponto entre 18% e 20,5% do PIB. No caso da hipótese A, a correção por um percentual da receita levaria a despesa para 18,4% do PIB ao final do período.

Como na análise dos dados foi constatado que a regra de despesa com os parâmetros da hipótese A não entregará um resultado primário dentro da banda proposta pelo Governo, o Gráfico 1 já está usando a regra de, a partir do segundo ano (2024) corrigir a despesa pela regra mais dura (50% da variação da receita). O mesmo procedimento será usado na simulação das outras hipóteses.

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O Gráfico 2 ilustra a situação em que a taxa de crescimento da receita oscila ao longo do tempo. Nesse caso, a despesa também oscilará de um ano para o outro, algumas vezes batendo no valor mínimo da banda. Isso demonstra um problema da regra: o risco de fortes oscilações para cima e para baixo no valor da despesa primária máxima autorizada pela regra.

O governo não deixou claro como irá limitar as despesas primárias, quase totalmente determinada por obrigações legais, caso ela atinja o limite inferior. Como conciliar o compromisso com esse limite inferior e a proposta de, simultaneamente, garantir um mínimo de investimento público?

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O Gráfico 3 apresenta a trajetória da despesa nos termos da Hipótese C, em que há grande aumento de receitas em 2024 e novos aumentos reais nos anos seguintes. O aumento da carga tributária permite a expansão da despesa primária como proporção do PIB, de modo que até 2026 o gasto fica limitado pelo limite superior de gasto. Ao final do período, contudo, teremos uma situação de despesa como proporção do PIB maior que no momento inicial.

Esse é o cenário que está na mente dos autores da regra: aumentar carga tributária e despesa ao longo do tempo.

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O Gráfico 4 mostra a receita líquida do governo, como proporção do PIB, para as três hipóteses. Percebe-se que na hipótese C, que é o plano preferencial do governo, há um aumento de carga de 2,6 pontos percentuais do PIB. Lembrando que se trata de receita líquida, logo esse ganho de arrecadação precisaria ser obtido líquido das transferências constitucionais a estados e municípios.

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Agora que temos a receita e a despesa como proporção do PIB, em cada um dos cenários, podemos calcular qual o resultado primário que resultaria de cada um deles. Isso está mostrado no Gráfico 5, onde também se apresenta o resultado primário mínimo (banda inferior) fixado pelo Governo para os anos de 2023 a 2026. O que se percebe é que em praticamente todos os casos o resultado primário obtido fica menor que o limite mínimo fixado pelo Governo.

Por exemplo, em 2025, o Governo fixou como limite mínimo um superávit de 0,25% do PIB. Contudo, o melhor resultado que se consegue com a regra de despesa proposta pelo governo e as diferentes hipóteses de receita é um superávit de 0,02% do PIB, na Hipótese C. Nas outras duas hipóteses ainda há déficit elevado.

Em apenas um caso, o da Hipótese C em 2024, os valores simulados superam a banda inferior de resultado primário fixada pelo Governo. Mas já em 2025 e 2026 voltam a ser inferiores ao limite mínimo.

Note-se, ainda, que apesar do grande esforço de arrecadação, a Hipótese C gera apenas 1,1% do PIB de superávit em 2030, valor acanhado frente aos 1,5% do PIB que deveríamos gerar desde já para estabilizar a dívida pública.

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Em simulações adicionais, constatamos que apenas aumentos reais anuais da receita acima de 5%, além do choque tributário de R$ 150 bilhões, permitiriam que os resultados da Hipótese C alcançassem o valor mínimo de resultado primário fixado pelo Governo. Isso levaria a um aumento da receita líquida em 5,2% do PIB!

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Pode-se argumentar que ter alguma regra de limitação de despesas é melhor que não ter nenhuma, e que em alguns cenários, como os das Hipóteses A e B, haveria até uma queda da relação despesa/PIB.

Contudo, o ritmo de ajuste observado nessas duas hipóteses não é suficiente para minimamente gerar os resultados primários que o País precisa para estabilizar a dívida pública, motivo principal de se ter uma regra fiscal.

Ademais, o Ministro da Fazenda já declarou preferência por uma trajetória do tipo da Hipótese C, em que há forte aumento de carga acompanhado de aumento de receitas como proporção do PIB. Os impactos negativos desta escolha sobre o potencial de crescimento da economia não devem ser desprezíveis, mantendo-nos presos em uma armadilha de baixo crescimento.

Os parâmetros da regra parecem mal calibrados, não sendo possível chegar ao limite mínimo do resultado primário fixado pelo Governo sem que se promova um aumento significativo de receitas.

Dado que o projeto de lei não foi ainda redigido, ficam dúvidas sobre aspectos técnicos relevantes, tais como a regra de correção dos valores pela inflação, bem como sobre a consistência da dinâmica das despesas obrigatórias (que vão crescer mais rápido devido aos aumentos reais do salário mínimo e dos salários do funcionalismo).

Se a base de cálculo para a despesa de um exercício for a despesa realizada em exercício anterior, então haverá incentivos a sempre se gastar no limite máximo, para elevar o limite calculado para o ano seguinte. No caso do teto de gastos esse incentivo não existia, pois a base de cálculo era fixa no ano inicial da regra (2016).

Note-se, ademais, que as despesas mínimas com saúde e educação voltam a ser determinadas por um percentual da receita. Logo, a estratégia de ajuste pelo lado da receita deve gerar mais receitas nestas áreas, diminuindo o potencial de geração de resultados primários.

Também não está claro se a regra é apenas para o Executivo ou se os demais poderes e órgãos com autonomia orçamentária poderão aumentar suas despesas no mesmo ritmo ou se, até mesmo, ficarão livres de limites, podendo repassar o aumento de suas despesas para o limite geral de gastos. Isso tenderá a estimular aumentos de salários, a serem posteriormente seguidos pelo Executivo.

Por fim, deve-se dizer que os exercícios aqui realizados foram todos em termos reais. Logo, a inflação não impacta os cálculos.

Na nossa história, contudo, a inflação tem sido utilizada para elevar o PIB nominal, aumentar a receita do governo e corroer as despesas. Essa escolha permitiria aumentar o resultado primário e reduzir a relação dívida/PIB por um tempo, como ocorreu em 2022.

Talvez essa seja a variável oculta para completar o ajuste proposto pela equipe econômica.

Marcos Lisboa é economista e sócio da Gibraltar Consultoria.

Marcos Mendes é pesquisador associado do Insper.