“Na manhã do dia 25 de setembro de 1933, o físico austríaco Paul Ehrenfest adentrou o Instituto Pedagógico para Crianças Afligidas do professor Jan Waterink, atirou na cabeça de seu filho de 15 anos, Vassily, e em seguida voltou a arma para si mesmo.”

O primeiro parágrafo de MANIAC (tradução de Paloma Vidal; Todavia; 360 páginas) já indica para onde o escritor chileno Benjamin Labatut quer nos levar: os limites trágicos da ciência. 

O personagem central é o matemático húngaro John von Neumann, um gênio que trabalhou na elaboração das primeiras bombas atômicas e desenhou a arquitetura do computador moderno. Mas seu nome aparece só de passagem na primeira seção do livro, protagonizado por Ehrenfest, um cientista tragicamente esmagado pelo universo indeterminado e incompreensível aberto pela mecânica quântica. 

(Para os que leram o livro na primeira tiragem, o impacto da abertura saiu prejudicado por um erro de tradução: Ehrenfest é apresentado como médico, e não físico, engano que certamente nasceu da confusão entre physicist, palavra que consta no original, e physician. O erro foi corrigido na primeira reimpressão da obra).

Nascido em Roterdã, na Holanda, e radicado no Chile desde os 14 anos, Labatut, hoje com 44, é celebrado internacionalmente por sua abordagem imaginativa do universo científico. Escreve em espanhol e em inglês.

Quando deixamos de entender o mundo, A pedra da loucura e MANIAC, seus livros lançados no Brasil, narram as vidas e as realizações de cientistas reais. Labatut é em geral fiel aos fatos, mas trata seus personagens com ampla liberdade criativa. É, portanto, um escritor de ficção – e excelente no seu ofício.

Em termos pictóricos, MANIAC pode ser comparado a um tríptico: há um grande painel central sobre von Neumann, ladeado por quadros menores a respeito de Ehrenfest e de um programa de computador que venceu um campeão de Go, o jogo milenar de origem chinesa mais complexo que o xadrez.

Segundo se relata na obra, a física quântica não causou o quadro depressivo de Ehrenfest, mas contribuiu para agravá-lo. Quando o nazismo subiu ao poder, Ehrenfest – que lecionava na Alemanha e era judeu – tentou salvar o filho dos programas eugenistas do regime. Levou Vassily, que tinha síndrome de Down, para uma casa de cuidados na Holanda. Mais tarde, foi lá que o matou, para em seguida se suicidar.  

“Ele foi o ser humano mais inteligente do século XX. Um alienígena entre nós,” anuncia Labatut na abertura da seção sobre o personagem principal do livro. Talvez não seja exagero.

John von Neumann (ou Neumann János Lagos, na forma húngara do nome) sabia recitar de memória livros lidos na infância e tinha uma capacidade de cálculo prodigiosa. Dedicou-se obsessivamente a várias áreas de estudo: física quântica, Teoria dos Jogos, armas nucleares, computação.

Em MANIAC, a vida de von Neumann é narrada por uma sequência de depoimentos em primeira pessoa. De familiares – a mãe, o irmão, as duas esposas, a filha única – a cientistas como Eugene Wigner – o Nobel de Física de 1963, que foi colega de escola de von Neumann –, cada um deles ganha uma voz própria. 

Desse conjunto de perspectivas emerge o retrato de um homem encantado com o conhecimento, mas indiferente a seu potencial destrutivo. Seu cérebro matemático não reconhecia limites morais: depois da Segunda Guerra, von Neumann propôs até que os americanos lançassem bombas atômicas na União Soviética para impedir que os comunistas desenvolvessem seu próprio arsenal nuclear.

Foi para realizar os cálculos da bomba de hidrogênio que von Neumann concebeu o computador MANIAC (acrônimo de Mathematical Analyzer, Numerical Integrator and Computer). Esse trabalho lançou-o em especulações prescientes sobre inteligência artificial, nas quais ainda trabalhava quando morreu de câncer em 1957, aos 53 anos.

No capítulo sobre o desenvolvimento da primeira bomba atômica, o irreverente físico americano Richard Feynman conta que von Neumann gostava de Go, mas jogava muito mal. É uma ponte para o quadro final do livro.

Em 2016, o sul-coreano Lee Sedol, campeão imbatível no tabuleiro, perdeu quatro das cinco partidas de Go que disputou contra um programa desenvolvido pela DeepMind, a startup lançada seis anos antes. Batizado de AlphaGo, o programa desenvolveu suas habilidades jogando contra si mesmo, graças ao chamado machine learning.

A DeepMind é capitaneada pelo inglês Demis Hassabis, um seguidor das ideias de von Neumann. Em MANIAC, a narrativa das vidas paralelas de Sedol e Hassabis captura todo o fascínio e o medo inspirados pela derrota de uma inteligência humana por uma inteligência artificial.

Só bons escritores alcançam essa ambiguidade sutil. Mas aguardemos a inteligência artificial capaz de fazer boa literatura.

 

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