BRASÍLIA – Gilmar Mendes vive um momento singular em sua longa trajetória como ministro do Supremo: suas posições legalistas começaram a predominar na mais alta Corte do País. 

As críticas categóricas do ministro a procuradores do Ministério Público e juízes federais que cometem abusos de poder e desrespeitam leis sob a justificativa do combate à corrupção mudaram o rumo da Operação Lava Jato. 

Nesta entrevista ao Brazil Journal, Gilmar comenta, em tom de desabafo, as irregularidades cometidas pela força-tarefa; condena os órgãos de controle da Justiça que, segundo ele, “viram os abusos e nada fizeram”; e critica os ministros do STF que sempre apoiaram as decisões do então juiz Sérgio Moro.

Moro, hoje senador (União Brasil-PR), e os procuradores da Lava Jato são duramente criticados pelo ministro. “Moro descumpriu decisões [do STF]”, sustenta Gilmar. “Procuradores tentaram fazer [por meio de dez projetos de lei enviados ao Congresso] o que o AI-5 não conseguiu: cercear o habeas corpus.”

O ministro conta que Moro aceitou convite para ser ministro do governo Bolsonaro antes do 2º turno da eleição de 2018. Em abril daquele ano, decretou a prisão de Lula, que, portanto, não pôde disputar a eleição. 

Gilmar, que ingressou no STF aos 47 anos e hoje, aos 68, é o decano, fala da suposta participação de agentes do governo americano na Lava Jato e da troca de informações realizada entre a força-tarefa e o Departamento de Justiça dos EUA, sem a anuência legal do Ministério da Justiça. 

“A Lava Jato criou não um outro Poder, mas um outro Estado no Brasil,” diz o ministro.

Abaixo, os principais trechos da entrevista.

 

Muita gente critica a Lava Jato pelo fato de que o investigador (a Polícia Federal), o acusador (Ministério Público) e o julgador (a 1ª instância da Justiça) trabalharam juntos. Qual foi a gênese disso? 

Se a gente olhar a Operação Satiagraha, da qual participaram o juiz Fausto De Sanctis, o delegado da PF Protógenes Queiroz, envolvendo o banqueiro Daniel Dantas [grupo Opportunity], já havia um certo conúbio entre o juiz, o promotor e o delegado que foi o protagonista da operação. Tivemos uma operação também contra a magistratura de São Paulo, da Justiça Federal. E também, no âmbito da Justiça Federal, a instalação das varas de lavagem. E, aí, vem um discurso, que precisa ser mais iluminado e aprofundado, que, talvez, tenha influência de setores de agências internacionais.

De onde, exatamente?

Dos americanos. Tem a história da Enccla [Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, instituída pelo governo federal em 2003, com o objetivo de aprofundar a coordenação dos órgãos públicos envolvidos na prevenção e no combate aos crimes de lavagem e corrupção]. Meu saudoso colega Gilson Dipp, aqui do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que foi corregedor do STJ, trabalhou na instalação das varas de lavagem. Elas se tornaram muito poderosas porque, obviamente, os crimes financeiros passaram a ser investigados ali. É nesse contexto que a Lava Jato veio com mais força, inclusive, com essa competência universal.

Qual?

A de que qualquer coisa é lavagem, inclusive, a questão da Petrobras. Claro, a partir de várias operações, bem-sucedidas ou frustradas, de que participaram, a força-tarefa da Lava Jato estruturou, olhando com os olhos de hoje, uma visão política. Buscaram e obtiveram grande apoio da mídia, apontando fatos que, agora, podem até ser vistos de outra maneira.

O quê, por exemplo?

Doação de campanha. Tudo virou propina. Esse debate em que estamos agora, sobre a questão dos acordos de leniência. E aqui eu tenho um dado técnico importante.

Qual?

Quem está autorizado a fazer acordo de leniência são a CGU (Controladoria Geral da União) e a AGU (Advocacia Geral da União). É o que diz a lei. O Ministério Público entendeu que também teria esse direito. Como o MP pode fazer a delação na parte criminal, portanto, por que não pode fazer a leniência?

E por que não?

Porque isso dá ao MP uma posição super privilegiada. Se o empresário faz acordo de leniência lá em Curitiba, sede da Lava Jato, ele o faz com medo, inclusive, da prisão. “Se você não disser o que eu quero…” Este é o pior dos mundos, portanto, se produziu, na verdade, um monstro.

O fato de o MP não ter atribuição legal para fechar acordos de leniência é o principal motivo da revisão das condenações feitas pela Lava Jato?

Acho que não. Este é um ponto. O ministro José Dias Toffoli tentou fazer, no CNJ (Conselho Nacional de Justiça), o que foi chamado de acordo de multiportas para trazer todos esses atores – CGU, AGU e MPU – para um consenso. A pergunta básica é: “Como se estima o valor das indenizações?” O ministro André Mendonça nos contou, numa sessão da turma, que, quando atuava na CGU, foi a Curitiba para tentar saber quais eram os critérios adotados para calcular as indenizações.

E quais eram?

A resposta que ele ouviu foi: “O critério é o seguinte: a gente pede um valor e eles [os empresários] aceitam”. Quer dizer, eles aceitam com medo da prisão. Acho que é isso que está levando a debate hoje a racionalidade de tudo isso.

Já tem gente dizendo que, se houver suspensão dos acordos, a União terá prejuízo. Ocorre que os processos e os acordos de leniência quebraram as empresas. A Odebrecht tinha 180 mil funcionários. Hoje, na Novonor (a nova Odebrecht) restaram 30 mil.

Isso. E, muito provavelmente, mantidos os valores, as empresas não poderão pagar. A maioria delas não conseguirá.

O senhor sempre sustentou – e foi muito criticado por parcela da sociedade – que não se pode combater a corrupção à revelia das leis. Foi isso o que aconteceu na Lava Jato?

Sim. Tanto é que, de alguma forma, todos nós, inicialmente, tínhamos palavras de apoio à Lava Jato. Eu fui o primeiro a chamar atenção para as tais prisões alongadas de Curitiba.

Qual era o problema nesse caso?

Só se liberava alguém da prisão depois de ele confessar crimes. Era um sistema muito empoderado e bafejado pela mídia. Um dado certamente vai ser estudado na história do Brasil.

Qual?

Num determinado momento, os procuradores da Lava Jato saíram propondo reformas institucionais, entre elas acabar praticamente com o habeas corpus, com a possibilidade de obtenção de liminares em habeas corpus, coisa que nem o AI-5 conseguiu em plena ditadura. Foram as tais dez medidas apresentadas ao Congresso. As medidas tiveram como relator na Câmara o ex-deputado Onyx Lorenzoni (PL).

Isso sugere o quê?

O Onyx [que foi ministro do Governo Bolsonaro] já era de alguma forma um técnico, vamos chamar assim, do time bolsonarista na campanha que se desenhava. Portanto, havia uma certa conexão [entre a Lava Jato e o grupo político de Bolsonaro, antes da eleição de 2018]. O Congresso rejeitou isso. Veja, Curitiba não tinha que nos inspirar em nada. Era o cachorro abanando o rabo. Ficamos reféns um pouco disso. O próprio ministro Teori Zavascki [relator da Lava Jato no STF, morto em acidente aéreo em 2017], em alguns momentos foi emparedado pelo próprio Sérgio Moro.

De que forma?

Moro descumpriu decisões. E obviamente, todos nós éramos perguntados todo o tempo por Curitiba e pela mídia: “Essa decisão contraria a Lava Jato”. Como se estivéssemos obrigados a seguir a Lava Jato! Os seus colegas de imprensa ganharam, de alguma forma, um ‘revival’ agora, com essa questão dos acordos de leniência.

O senhor mencionou que a Lava Jato teve “inspiração internacional”. Isso tem relação com o esforço dos EUA, desde os ataques terroristas de 2001, de combater atividades que supostamente financiam o narcotráfico e o terrorismo?

Isso. O Brasil aderiu a isso.

Em que âmbito?

Tenho a impressão de que deve haver tratados e, obviamente, há as competências da Justiça Federal em relação a crimes financeiros. Talvez, aqui, tenha-se criado, acho que inconscientemente, o embrião desses núcleos de investigação, das forças-tarefas. Isso agrega Coaf, Receita Federal, PF etc.

O senhor vê interferência do governo americano, uma vez que algumas empresas fecharam acordos de leniência com o Departamento de Justiça dos EUA?

O que a gente vê, e está muito presente nas informações que temos, é essa troca de informações, que passou a ser informal, entre Curitiba e setores do governo americano. Uma das queixas é que isso não passava pelo órgão do Ministério da Justiça incumbido dessa função, o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI).

Este fato integra as alegações do ministro Toffoli quando decidiu suspender os acordos de leniência?

Exatamente. O ministro Ricardo Lewandowski já tinha levantado essa questão. Quis saber também por que essas pessoas vinham para Curitiba e lá ficavam morando.

Que pessoas?

Esses americanos ligados a órgãos do governo americano, como o DOJ e coisas do tipo. Isso precisa ser aprofundado. O nosso aparato de Justiça, os órgãos de corregedoria, que são acoplados ao STJ, e o Conselho da Justiça Federal, que funciona lá e é quem administra a Justiça Federal, falharam muito.

E por que falharam?

Para ser considerada ruim, essa coordenação precisaria ter melhorado muito! Ela foi um desastre! Porque se assistiu a isso sem nada fazer. Agora, está se encerrando esses dias o trabalho de correição feito lá na 13ª Vara Federal, em Curitiba, um trabalho do ministro Luís Felipe Salomão, do STJ.

O que foi descoberto?

Que a 13ª Vara teria movimentado somas que podem ir a R$ 10 bilhões.

E onde está esse dinheiro?

Esta é a grande pergunta. Eles mandavam dinheiro para a Polícia Federal, por exemplo.

Por quê e com qual objetivo?

A PF estava atrasada com a conta de luz: eles mandavam dinheiro para pagar.

Isso não fere os regulamentos legais da conta única do Tesouro?

Todas as regras dos códigos de contabilidade do setor público foram violadas. É nesse contexto que entra essa tal fundação Dallagnol. Aqui, me parece que há uma falha geral. É como se nós estivéssemos lidando não com um outro poder, mas com um outro Estado.

O Supremo viu essas coisas acontecerem na primeira instância. Por que não fez nada?

Na turma do STF por onde tramitava o caso, se o ministro Teori não aderia, ficávamos vencidos eu e o Toffoli, por exemplo, nos casos de concessão de habeas corpus. O ministro Teori faleceu naquele trágico acidente e veio o ministro Edson Fachin, que prosseguiu mais ou menos nessa mesma toada. Havia uma certa solidariedade na turma, eles foram apoiados pelo ministro Celso de Mello e pela ministra Cármen Lúcia. Naquele momento, havia a pressão de uma mídia que, posso até dizer, era opressiva.

O CNJ foi criado justamente para apurar e combater abusos de poder no Judiciário. O Conselho não deveria ter agido ao tempo das iniciativas da Lava Jato?

Não vinha controlando nada disso.

Não era o caso?

Sim, tanto é que está fazendo agora. Certamente, virá esse relatório agora do ministro Salomão. A Justiça Federal existe desde 1967. Hoje, o Conselho da Justiça Federal está muito bem aparelhado, portanto, considerar que isso não funcionou, que não viu o que estava acontecendo, é muito ruim. Veja que também aconteceu isso lá no TRF [a 2ª. instância da Justiça Federal] da 4ª região, em Porto Alegre. A própria 5ª Turma do STJ, que decidia essas matérias e era presidida pelo ministro Félix Fischer, também seguia a mesma toada e, em geral, praticamente não tinha divergência. Tanto é que eles confirmaram com uma rapidez enorme a condenação do Lula. Voltando um pouco na história, um dia, o ministro Teori nos chamou para uma reunião na Turma, dizendo que tinha algo grave para acontecer.

Qual era o caso?

O episódio da delação do então senador Delcídio Amaral (PT). Teori nos contou uma história que tinha cabeça, tronco e membros, dizendo que Delcídio revelou que o banqueiro André Esteves [BTG Pactual] teria oferecido R$ 50.000 ao filho de Nestor Cerveró [ex-diretor da Petrobras condenado por corrupção passiva] e uma pensão ao rapaz. 

O então senador disse ao ministro que o banqueiro teria oferecido até um plano de fuga de Cerveró do presídio de Curitiba. Teori disse que Delcídio afirmou que sabia de tudo que estava acontecendo, isso, segundo a versão de Rodrigo Janot (Procurador-Geral da República na época). Naquele dia, Teori queria nossa autorização para prender o Delcídio como se ele tivesse em crime permanente. O ministro queria também prender André Esteves, coisa que aconteceu. No fim, verifica-se que Delcídio era um grande mentiroso, tinha engendrado uma série de histórias. O dinheiro não veio de Esteves, aparentemente teria vindo de José Carlos Bumlai [pecuarista, amigo de Lula, condenado no âmbito da Lava Jato]. Construiu-se um grande erro judiciário.

E quem foi o responsável por isso neste caso?

Quem construía e trazia isso era o Janot. Depois, o ministro Fachin continuou, acho que tinha convicções lavajatistas. O fato é que ele não concedia habeas corpus. Portanto, a gente ficava nesse emparedamento. Mesmo o tribunal já tendo decidido, por exemplo, que Curitiba não era competente, a não ser para questões envolvendo corrupção na Petrobras. Em outros casos, como o de Lula, Fachin manteve e indeferiu pedidos de habeas corpus. Também, no julgamento da questão da 2ª instância [se os réus deveriam ser presos após condenação na 2ª instância ou apenas depois da ação transitada em julgado, isto é, quando não cabe mais recurso], houve aquela pressão midiática enorme.

Pressão em relação a que tema? 

O caso era o do habeas corpus impetrado pela defesa de Lula. O STF precisava julgar a questão do habeas corpus. A ministra Rosa Weber disse que não julgaria se fosse só o habeas corpus, e não a ação declaratória, portanto, ela manteria a orientação do plenário, em que a execução da prisão em segunda instância era válida. Se viesse a ADC (Ação Direta de Constitucionalidade) do habeas corpus, ela manteria seu voto. O resultado é que a ministra Cármen Lúcia decidiu pautar só o habeas corpus, que foi definitivo para colocar o Lula na cadeia.

O senhor atribui essas decisões à pressão da imprensa?

Isso explica todo esse entorno, essa ambiência opressiva. Quando veio o pedido de habeas corpus do Lula sobre a suspeição do Moro, e isso foi um turning point, eu sustei: “É uma matéria muito relevante. Vamos levar para o pleno”. Perdi. Decidiu-se que ia ser julgado na Turma. Quando foi colocado para julgar, eu pedi vista, já com dois votos contrários, dos ministros Fachin e Cármen Lúcia.

Qual era a sua estratégia?

Conversei muito tempo com o ministro Celso de Mello e isso passou de um ano para o outro. Acabou que o ministro Celso não teve tempo de votar nessa matéria porque se aposentou. E aí veio o ministro Kássio Nunes Marques. Começaram então a me perguntar e eu disse, “vamos julgar neste semestre”. Um dia, estou em minha casa fazendo exercício e me liga Vítor Fernandes, meu chefe de gabinete na época. Ele me informou que o ministro Fachin acabara de deferir ordens de habeas corpus para Lula, cancelando, assim, a nossa decisão, e afirmando que estava prejudicado o habeas corpus impetrado por Lula, de suspeição de Sérgio Moro no caso.

Diante disso, qual foi a sua reação?

Mandei meu assessor anunciar à imprensa que, no dia seguinte, julgaríamos o caso Moro. Passamos a noite trabalhando e no dia seguinte levei o caso à votação. Vencemos a questão de ordem com o voto do Kássio, dizendo que o julgamento prosseguia porque uma coisa é a decisão favorável a Lula, a outra é a anulação de tudo o que foi produzido [sobre a suspeição de Moro]. Depois, isso foi votado. O ministro Kássio não veio conosco, mas a ministra Cármen veio e ganhamos a suspeição de Moro. Na sequência, isso foi confirmado no plenário.

Precisava ir ao pleno neste caso?

Por uma injunção criada pelo ministro Fachin, dizendo que precisava haver discussão no plenário. Mas, nós ganhamos. Esta, acho, foi a grande virada no destino da Lava Jato.

O senhor citou a ligação do ex-deputado Onyx, um dos políticos mais próximos de Bolsonaro, com a Lava Jato. Quando Moro foi convidado para ser ministro da Justiça e abandonou a carreira de juiz, surgiu a desconfiança de que ele já teria se avistado com Bolsonaro.

É. Vou lhe contar um episódio. O então ministro da Fazenda Paulo Guedes vinha muito aqui. Tivemos e temos boa relação. Ele vinha sempre discutir questões relevantes de interesse do governo. Como todos sabem, sou adepto da responsabilidade fiscal, torço para que as coisas sejam feitas de maneira racional e andem bem. E aí, ele me contava histórias da campanha de Bolsonaro. A que vou relatar agora acho que ocorreu entre o primeiro e o segundo turnos da eleição de 2018. Havia outras testemunhas na conversa.

Quem?

Acho que o José Levi, que foi AGU. Paulo Guedes revelou que teria pedido licença a Bolsonaro para ir a Curitiba convidar Sérgio Moro para ser o ministro da Justiça. Depois de uma discussão, Bolsonaro o autorizou e isso foi definido. Na hora em que Guedes me contou isso, eu disse: “Ministro: ‘stop’!”.

Qual foi o seu propósito?

Ele ficou sem entender porque, veja, eu mandei o ministro da Fazenda parar. E falei assim: “Coloque isso no seu currículo”. Ele não entendeu. Então, expliquei: “Todo mundo, meus amigos no Congresso, não apostam no êxito do governo dos senhores. Não sei se o governo vai ser exitoso ou não. Ouço análises muito negativas. Mas, coloque isso no seu currículo”.

O quê?

Eu disse ao ministro: “Ter tirado Sérgio Moro de Curitiba pode ter sido a sua maior contribuição ao Brasil.”

Como o senhor analisa o grau de polarização política que o País tem hoje e os atos de 8 de janeiro do ano passado?

Certamente vejo com preocupação e acho que estamos deficitários em algumas reformas.

Quais?

Acho que devemos olhar esse episódio, por exemplo, da polícia aqui, a omissão das autoridades, como algo mais ou menos previsto.

O que era previsível?

O fato de Bolsonaro contaminar a polícia e depois, por inércia, acontecer o que vimos em 8 de janeiro. Precisamos discutir essas questões. Se formos ver, é uma mazela da Constituição de 1988 essa politização da segurança pública.

Como se dá isso?

Policiais que se tornam parlamentares, policiais grevistas que depois são eleitos deputados. Na verdade, não são greves.

Como o senhor define?

São motins. O uso crescente da GLO (Garantia da Lei e da Ordem, instrumento que dá ao Exército o poder de polícia em momentos de crise) tem a ver com isso. Se a gente observa a lista das GLOs decretadas, as mais relevantes, em termos numéricos, são relativas a crises de segurança pública. Muitas vezes são crises causadas por greves da polícia. E essas greves são proibidas pela Constituição. De onde vem um fenômeno político como o Capitão Wagner (ex-deputado do União Brasil)? Ora, líder de motim da polícia no Ceará. Essa questão precisa ser olhada.

De que forma?

Por que não definir que, nessas carreiras de Estado, as pessoas só podem ser candidatas depois de “x” anos de desincompatibilização das funções? Há discussões sobre isso inclusive no código eleitoral, mas isso precisa ser colocado com urgência. Tem também a questão da participação das Forças Armadas em todo esse contexto ainda obscuro. A primeira discussão é sobre a ocupação pelos militares, enquanto militares, de funções civis. E também sobre o próprio Ministério da Defesa.

Por quê?

Participei da redação da emenda constitucional e da lei complementar que criaram a Pasta da Defesa, mas nós falhamos.

Como?

Deveríamos ter escrito – porque esse era o espírito – que o ministro da Defesa tinha que ser civil. Essa era uma mensagem programática do governo FHC. Essa filosofia veio até o governo Temer, mas, depois, no governo Bolsonaro, não vingou. Vivemos uma situação da qual tem-se falado pouco.

Qual?

O então ministro da Defesa de Bolsonaro, general Paulo Sérgio Nogueira, literalmente fez assédio sistematicamente contra a cúpula do Judiciário na questão das urnas. Todo dia ele questionava as urnas. O assédio só se encerrou quando o ministro Alexandre de Moraes assumiu a presidência do TSE. O general não teve a coragem, a decência de divulgar o relatório da comissão que dizia que não há fraude no sistema de votação pelas urnas eletrônicas.

E por que ele não divulgou?

Porque havia essa “encomenda” [no dia 8 deste mês, a Polícia Federal denunciou o ex-ministro de manipular o relatório da Comissão; Paulo Sérgio confessou à PF que o papel dos militares nesse caso era reeleger Bolsonaro]. Precisamos fazer corrigendas institucionais para não permitir que isso se repita. Além disso, há muitas temáticas que precisam ser desinfladas.

Por exemplo?

Questões de invasões de terras indígenas. Acho que tem espaço para todo o mundo. É possível diminuir esses conflitos que alimentaram muito o Bolsonaro. Em Roraima [onde vive a nação indígena ianomâmi] ganha a eleição quem é Bolsonaro por causa dessas questões de demarcação de terras. Esses mesmos problemas estão no Sul da Bahia, no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul…

Como se resolvem essas questões?

Politicamente. Vão remanescer questões identitárias, disputas políticas ou religiosas, mas isso, pelo menos, tem o condão de nuclear as questões, sem essa exploração emocional.

Como o senhor vê o fato de o Batalhão da Guarda Presidencial, criado no Império há 200 anos para proteger a sede da Presidência, não ter feito nada para impedir a invasão do Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro de 2023? 

Brinco com meus filhos dizendo que eu praticamente morei no palácio entre 1996 e 2002, além de ter ficado lá entre 1990 e 1992, durante o governo Collor. A gente tinha a infantil credulidade de que aqueles soldados que estão lá eram uma barreira inexpugnável…

O BGP possui mil soldados treinados e equipados, mas eles não saíram do subsolo do palácio durante os atos de vandalismo. A polícia de Brasília está sendo questionada, mas o BGP não.

Tudo é muito grave. Assisti ao documentário da Júlia Duailibi, que mostra a resistência do comandante do Exército em relação à prisão dos acampados em frente ao Quartel General, em Brasília. Ele usou, inclusive, formulações bastante específicas. No documentário, ele diz ao comando da polícia de Brasília que tinha mais forças que a PM. Além disso, o filme mostra que os tanques do Exército estavam de frente, apontados, para os carros da PM. Portanto, é uma cena que realmente mostra algo mais.

Quem autorizou os acampamentos?

Este é um ponto muito interessante: saber quem ordenou e permitiu esses acampamentos desde novembro. É elementar, na crônica da jurisprudência constitucional mundial, que não se exerce liberdade de reunião em frente de hospitais nem de quartéis, por razões diferentes, mas óbvias. É curioso porque eles tinham proteção, usavam energia do Exército, água etc.