Com sua ação chegando a cair 40% ontem, a Via Varejo se viu obrigada a divulgar sua posição de caixa do final do ano passado — um trimestre ainda não reportado — para combater rumores de que estaria em dificuldade.

A companhia disse que terminou 2019 — o ano do qual todos temos saudade — com R$ 4,3 bilhões entre caixa e recebíveis de cartão não descontados.  Subtraindo daí a dívida bancária de R$ 2,1 bi, o caixa líquido no final de dezembro era cerca de R$ 2,2 bi.

Mas o fato é que, independente do número, os próximos meses serão um desafio existencial para a Via Varejo, uma das últimas sobreviventes de um mercado que já viu desaparecer ícones como Arapuã e Mappin e prostrou nomes como o Ricardo Eletro.

O ‘timing’ da crise atual é particularmente sensível porque o primeiro trimestre é o período de maior consumo de caixa da companhia, que normalmente paga seus fornecedores entre 90 e 120 dias.

Em outras palavras, o faturamento em datas-chave como a Black Friday e o Natal aparece nos números do quarto trimestre, mas o caixa (gordo) emagrece rapidamente no primeiro tri, quando a companhia paga as geladeiras da Whirlpool e os celulares da Samsung.

Para efeito de comparação, entre dezembro 2018 e março de 2019, a Via Varejo consumiu R$ 2,3 bilhões em caixa.  Assumindo que este ritmo tenha se mantido neste trimestre, a Via Varejo chegaria ao final do tri com cerca de R$ 2,1 bilhões em caixa bruto (ou menos, já que as vendas de março devem cair substancialmente em função do coronavírus.) 

Mas segundo gestores que acompanham a empresa, o grande desafio será no segundo trimestre, quando a companhia pode enfrentar a tempestade perfeita.

Primeiro, as vendas serão mais duramente afetadas pelo ‘lockdown’ imposto pelo coronavírus.  (Cerca de 30% das lojas da Via Varejo ficam em shoppings, muitos dos quais estarão fechados por semanas. Em diversas cidades no mundo, lojas de rua também estão sendo obrigadas a fechar.)

Segundo, a sazonalidade do caixa faz com que o segundo trimestre seja tipicamente o pior de todo o ano.

Finalmente, ainda que a crise afete o varejo como um todo, ela bate mais forte na rentabilidade do carnê — um conceito praticamente inventado pelas Casas Bahia e que ainda é o tipo de venda mais rentável da companhia.

Grande parte dos clientes do carnê são profissionais autônomos, os mais afetados pela crise.  Além disso, logo que a nova gestão assumiu, a Via Varejo decidiu dar autonomia aos vendedores das lojas para aprovar ou não as vendas em carnê.  (A política foi revertida poucas semanas depois de implementada.)

Agora, se houver um aumento da inadimplência do carnê, o consumo de caixa pode ser ainda maior.

“Apenas extrapolando o que aconteceu no ano passado, é razoável assumir que a companhia possa terminar o segundo tri com caixa negativo,” diz um gestor.

Até um mês atrás, tudo ia bem para a Via Varejo.  

A nova gestão abraçou a transformação digital, recrutando como CTO um executivo com 17 anos de Mercado Livre.  Entre ganhos notáveis, a companhia atravessou sua primeira Black Friday sem soluços.

Além disso, o diretor de operações Abel Ornelas simplificou a operação nas lojas e o modelo de remuneração dos funcionários, enquanto o CEO Roberto Fulcherberguer conseguiu vender ao mercado a tese de que a Via Varejo era o Magazine Luiza com desconto.

Com seu papel em alta — de R$ 4,90 quando a nova gestão entrou para R$ 16 na sexta antes do Carnaval — a companhia estava preparando uma nova oferta de ações, que agora está adiada até que os mercados voltem à racionalidade. 

O follow-on serviria dois propósitos.  O primeiro era reduzir o endividamento da empresa.  Gestores dizem que a forma correta de calcular a alavancagem da companhia é subtrair do caixa a dívida bancária, os recebíveis descontados (que a companhia não divulga) e as linhas de crédito ao consumidor (CDC).  Nesta conta, segundo um gestor, a Via Varejo teria hoje cerca de R$ 11 bilhões em dívida líquida, para um EBITDA anualizado de R$ 1,4 bi.

Outro objetivo da oferta era melhorar a posição competitiva da companhia vis-à-vis o Magazine Luiza, que deve usar seus mais de R$ 6 bi em caixa líquido para ganhar mercado em meio à crise.

A recompra da Via Varejo pela família Klein e fundos foi uma das operações mais engenhosas da história recente do mercado de capitais brasileiro. Coordenada pela XP, estima-se que mais de 250.000 pessoas físicas tenham apostado no retorno dos fundadores ao comando da empresa. 

Agora, um choque de proporções épicas vai colocar à prova tanto o novo time quanto o apetite do mercado pela história de turnaround.

O primeiro aniversário da nova gestão vai acontecer em junho, mas Fulcherberger, Renato Carvalho e Alberto Guth — os homens-fortes de Michael Klein — são conselheiros da empresa há quase uma década. 

Um executivo do setor resume o dilema:  “Eles já estão há 267 dias na empresa. Não são mais a ‘nova gestão’.  O varejo é muito rápido.” 

 

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