Nenhum país sairá ileso do protecionismo do Governo Trump.
“Todos os países vão ser afetados, de uma forma ou de outra, direta ou indiretamente,” Roberto Azevêdo, o ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, disse ao Brazil Journal.
Para o embaixador, a dúvida é sobre a intensidade e a velocidade de medidas tarifárias que Trump vai adotar.
“Eu, particularmente, imaginava que fossem sair agora [nos primeiros dias de Governo]. Mas parece que Trump está disposto a negociar: ver a reação do outro lado antes de implementar o aumento das tarifas.”
Para Azevêdo, pesa ainda o risco de aceleração do processo inflacionário. “É possível que ele vá calibrar com muito mais cuidado as tarifas, avaliando os impactos econômicos.”
Diplomata de carreira, Azevêdo liderou a OMC de 2013 a 2020, quando deixou o cargo para ingressar na iniciativa privada. Atualmente é conselheiro da associação empresarial ICC Brasil e presidente global de operações da Ambipar.
Azevêdo disse que o livre-comércio está sob ataque, mas acredita que o pragmatismo econômico vai prevalecer. Em sua avaliação, nenhum país conseguiu alcançar níveis mais elevados de desenvolvimento de maneira autossuficiente.
“Quanto mais rápido o Brasil conseguir se integrar e de maneira competitiva, melhor será para a sociedade brasileira,” Azevêdo disse nesta entrevista, em que comentou ainda a relevância do acordo do Mercosul com a União Europeia.
Quais as suas impressões sobre os atos iniciais de Donald Trump?
Nada incompatível com o que já vinha sendo dito. A retirada do Acordo de Paris era esperada, assim como as medidas sobre imigração.
Todas as medidas apontam no sentido esperado. O que todos estão tentando diagnosticar é a intensidade e a velocidade dessas medidas. É o caso, por exemplo, das tarifas.
Eu, particularmente, imaginava que fossem sair agora. Tem muita coisa que Trump pode fazer nessa área. Mas parece que está disposto a negociar – ver a reação do outro lado antes de implementar o aumento das tarifas.
Quais as motivações para adiar essa definição?
Todos os economistas, sem exceção, falam do potencial impacto inflacionário.
Ao mesmo tempo, muita gente acredita que Trump tenha ganhado as eleições em função da inflação, que minou muito a popularidade do Governo Biden.
A última coisa que Trump vai querer fazer é retomar ou reacender o processo inflacionário.
É possível que ele vá calibrar com muito mais cuidado as tarifas, avaliando os impactos econômicos. Vejo uma certa preocupação em não exagerar na dose, para não provocar reações negativas inclusive no mercado.
A volta do processo inflacionário poderá elevar a taxa de juros, e outra consequência poderá ser o fortalecimento adicional do dólar – o que anula em parte o efeito das tarifas, porque os países exportadores se beneficiam do dólar sobrevalorizado.
Então tudo isso deve estar sendo avaliado, antes de adotar as medidas.
E o Brasil, como será atingido? Poderá ser poupado do aumento das tarifas?
Todos os países vão ser afetados, de uma forma ou de outra, direta ou indiretamente.
Com relação aos efeitos indiretos, parece um pouco óbvio que o Brasil vive um momento delicado no que diz respeito à política fiscal. Não é favorável, então, o cenário de aumento dos juros nos EUA e dólar forte.
Agora, não vejo o Brasil como sendo um alvo específico – não é prioritário na agenda de Trump, ao menos por enquanto.
Mas Trump mencionou recentemente que a economia brasileira tem tarifas muito altas – e, se pensarmos na reciprocidade que ele vem defendendo, nunca se sabe o que isso significa exatamente.
Ele disse ainda que os EUA podem fazer alguma retaliação se os países dos BRICS quiserem criar uma moeda própria como alternativa ao dólar.
São questões que deixam o Brasil no radar. Mas não vi, nas últimas semanas, nada de específico que nos coloque no topo da lista.
Haverá uma marcha à ré na globalização?
A noção do livre-comércio está sendo atacada. Ainda veremos muitas políticas protecionistas.
Mas acredito também no pragmatismo. Não vejo a existência de uma teoria econômica sólida, fundamentada, academicamente comprovada, contra o livre comércio. Realmente não vejo.
O que ocorre são reações tópicas, fragmentadas – até mesmo casuísticas, em função de pressões políticas e de realidades, muitas vezes, motivadas pelo processo eleitoral.
Apesar de existir todo esse nacionalismo, todo esse protecionismo, não existe exatamente uma teoria econômica. Não vejo isso como sendo um processo vencedor.
Mas existe a questão geopolítica – de segurança tecnológica, alimentar, acesso a recursos essenciais. Alguns falam em uma nova Guerra Fria. Isso não representa uma ameaça ao ‘pragmatismo econômico’?
Com relação a isso, vejo três momentos bem distintos.
O primeiro foi o movimento pré-pandemia, quando havia uma overdose de globalização e as empresas, de uma maneira geral, buscando aumento de competitividade pela diversificação da cadeia de produção.
Esse momento foi concomitante com a emergência da China – que se beneficiou desse processo de uma forma muito intensa.
Ainda um pouco antes da pandemia, teve início um certo questionamento daquele modelo – e aí já entrou a questão geopolítica.
Havia a crítica de que aquele modelo estava enfraquecendo a indústria nacional em diversos países e fortalecendo a China, criando uma situação geopolítica de segurança nacional de alta vulnerabilidade para os países ocidentais.
Quando a pandemia chegou, aí foi outro momento muito importante. De repente os países se deram conta de não ter a capacidade de produzir itens essenciais para efeito de segurança nacional dentro do seu território. Era uma vulnerabilidade inaceitável do ponto de vista político.
Agora estamos no terceiro momento. Surgiram os conceitos de nearshoring e friendshoring. Mas a autossuficiência, no mundo atual, é impossível. Tem um custo proibitivo.
Então continuo acreditando que, com o tempo, haverá maior flexibilidade e pragmatismo.
Nesse contexto, qual a relevância do possível acordo comercial do Mercosul com a União Europeia?
O impacto maior desse acordo é sobretudo sistêmico, muito mais do que acesso a mercados.
Onde o Brasil teria a maior possibilidade de ganhos no mercado europeu, que é na área agrícola, as cotas são muito pequenas – e são muito controladas também, então você sabe exatamente quanto você vai colocar no mercado. São cotas muito modestas para o potencial brasileiro.
Vejo essas reações na Europa de um temor de uma invasão de produtos agrícolas brasileiros como sendo uma coisa descabida, porque eles sabem exatamente quanto vai entrar. E o que vai entrar não vai desestabilizar o mercado. Vamos ocupar uma percentagem mínima.
Olhando do outro lado, pelas importações brasileiras, tampouco estaremos expostos como estaríamos se fosse um acordo de livre-comércio com a China, altamente competitiva. A indústria brasileira tem perfeita capacidade de competir com a indústria europeia em vários segmentos. São indústrias complementares, em certos aspectos.
Então não vejo grandes traumas, na questão do acesso a mercados.
Agora, o efeito sistêmico, sim, é importante.
Por quê?
Quando o Mercosul foi concebido, a criação do bloco regional era vista como uma etapa inicial no processo de integração competitiva do Brasil.
À época, eu era um jovem diplomata, ajudei no apoio às negociações.
Era uma abertura inicial de integração internacional. Então o acordo com a União Europeia não deve ser também como uma nova etapa de integração.
Pode ser o nosso acordo mais expressivo e poderá inspirar e balizar outras iniciativas de aproximação comercial e integração com outros blocos internacionais ou países.
O desenvolvimento brasileiro depende de uma maior integração comercial?
Não me lembro de nenhum país que tenha sido bem-sucedido em termos de desenvolvimento socioeconômico de maneira autônoma – totalmente fechado e isolado do mundo.
Não vejo isso acontecer, acho que quanto mais rápido o Brasil conseguir se integrar e de maneira competitiva, melhor será para a sociedade.
Mas não será um processo sem dores. Haverá setores que serão mais vulneráveis, que vão perder empregos, fechar fábricas.
Normalmente, vemos nas discussões a dor prevalecer sobre o ganho. Alguns setores falam mais alto. Mas vejo a transição como sendo um processo inevitável, se o Brasil tem de fato a ambição de alcançar novos patamares de desenvolvimento econômico e social.