Após a consolidação da educação superior, o ensino básico virou o novo foco dos investidores do setor — e a Somos Educação, a noiva mais cobiçada.
A Somos é dona das editoras Ática, Scipione e Saraiva, de colégios como Anglo, pH e Motivo, e de sistemas de ensino vendidos para colégios públicos e privados. Seu alcance é tão grande que 90% dos 40 milhões de alunos matriculados no Brasil têm contato com pelo menos um conteúdo da companhia.
Controlada pela Tarpon com 76% das ações, a Somos passou parte de 2017 negociando sua venda para a Kroton, mas o negócio não saiu.
Em entrevista ao Brazil Journal, o novo CEO da companhia, Fernando Shayer, diz que a Somos é compradora e não vendedora, e se prepara para um segundo ciclo de crescimento orgânico. A prioridade agora é consolidar sua plataforma tecnológica para melhorar o processo pedagógico com o uso de big data, além de expandir sua rede de escolas próprias.
O ex-advogado do Machado Meyer é filho de dois professores universitários e cursou (simultaneamente) Economia na USP e Direito na PUC. Agora, está fazendo um mestrado à distância em Educação (em Columbia), e dá aulas de inglês no cursinho do Anglo Tamandaré, que pertence à Somos.
Vocês estavam num processo de venda e esse processo foi encerrado. O que aconteceu?
Assim como nas outras companhias em que a Tarpon está presente, o nosso projeto aqui é de longo prazo. Mas o mercado de educação básica no último ano teve uma novidade, parte pelo que aconteceu com o Fies, que perdeu muito apelo, parte pelo fato de as empresas do setor de ensino superior terem uma demanda muito grande por crescimento.
O setor [de ensino básico] começou a ficar muito quente. Algumas empresas vieram conversar conosco, algumas conversaram entre si de fazer fusão, e a gente teve aproximação de outros players que estão em educação básica também.
O desafio foi achar um tipo de projeto para a Somos no futuro que tivesse a capacidade de levar esse ativo, que é espetacular. A gente não achou uma combinação em que a gente conseguiria continuar gerando valor, que a companhia conseguiria continuar crescendo, se desenvolvendo, numa pegada de educação básica, alta qualidade, etc.
Mas foi uma questão de preço, não?
Preço é sempre um dos pontos que está na mesa em qualquer tipo de ativo, em qualquer circunstância. Então a resposta é sim, foi uma das considerações. Mas não foi a única. Tem assuntos de permanência de governança na nossa liderança no projeto, de quem está assumindo, do que acontece com o projeto…
Você acha que o empresário tem responsabilidade moral pelo que acontece depois que ele vende a empresa?
Em todas essas conversas, a nossa preocupação fundamental era uma continuidade na história que a gente está escrevendo. A venda foi uma dentre ‘duzentas’ outras conversas. Muitos se aproximaram para falar de outras coisas, de fusão, de aproximar plataformas, etc. Isso aqui é antes de tudo um ambiente que tem um legado, em que a gente gera crescimento de receita e EBITDA, mas esse crescimento sustenta o que a gente faz na parte educacional. Se você errar a mão nisso, perdeu completamente a lucidez sobre o que é educação básica.
Sem a venda, vocês pensam em alguma saída do negócio? Ou um ‘block trade’ [venda de uma parte das ações da Tarpon] para poder dar liquidez ao papel?
Nós não somos ‘saintes’ da história. Estamos num movimento para gerar o que eu chamo de ‘valor integral’, que é o valor educacional e o econômico. Agora, talvez possa ter algum evento societário ao longo do tempo, como fazer um block trade, não descarto… Talvez nem dependa só da gente: o GIC [fundo soberano de Singapura que tem 18% da Somos], por exemplo, pode querer fazer algum movimento.
Mas, por se tratar de um fundo, eventualmente vocês tem que vender, não? Para devolver o dinheiro para os cotistas?
Se algum investidor quiser eventualmente sair [do fundo], a gente recicla o capital, mas eu não tenho obrigação de venda amanhã desse ativo. Posso construir uma história aqui de 20 anos, 30 anos, 50 anos se eu quiser. Não tenho prazo de saída.
Superada essa questão da venda, quais os próximos passos para esta companhia?
Volta a ser o próximo ciclo trienal — que é o ciclo que eu estou liderando. Queremos mostrar como a educação, casada com uma gestão profissional, muda o resultado pedagógico da escola, do País, e gera resultado para o acionista.
Tem negócios em que isso não está presente, no business de saúde, por exemplo, em que há talvez um dilema entre o retorno do acionista e o retorno do consumidor final. Mas na educação básica dá para fazer isso muito bem porque, quanto mais valor eu entregar para a escola, mais valor eu gero para o acionista.
Quando a gente conseguir posicionar o efeito de rede que a gente está criando, as pessoas vão olhar e dizer: “opa, tem alguma coisa acontecendo aqui”.
E como vocês estão criando esse ‘efeito de rede’?
Estamos fazendo uma mudança muito grande na companhia, que é transformar o que era um produtor de conteúdo e que se satisfazia em ser um produtor de conteúdo, em um produtor de conteúdo e serviços que só se satisfaz quando tem um resultado pedagógico dentro da escola. Como? Com a informação que o digital está dando.
Vamos tomar o Anglo como exemplo. Antes era um sistema de ensino, as apostilas. Agora é uma plataforma educacional: o livro mais plataforma digital, que vem pelo smartphone ou tablet.
O aluno assiste à aula, faz o exercício proposto em casa e coloca o resultado na plataforma digital. Nesse dia, a plataforma envia um relatório para o coordenador pedagógico e para os professores, dizendo quem errou, quem acertou, quantas vezes tentou. E compara com o resto dos alunos da classe, da escola e do sistema Anglo.
Aí vem o efeito de rede que eu estou falando. Aí é o lugar que a Somos tem muito valor pedagógico e valor para o acionista. Quando começo a comparar dados de todos os alunos que estão usando todas as nossas plataformas, conseguimos ter muita qualidade. Consigo olhar e falar: os alunos do Nordeste de trigonometria do segundo ano estão com essa dificuldade. Portanto, temos que dar o material adicional para o professor aqui.
A gente começa a tratar dado como big data. De fato, a gente começa a tratar dado pedagógico para devolver ao sistema informação de alta qualidade. Já temos isso em todas as escolas do Anglo e do PH. Cerca de 600 mil alunos têm acesso a isso.
Isso só está disponível para quem adota o sistema completo de ensino? E para quem só compra os livros?
Para as escolas que usam livros, quando a gente chegava para tentar fazer uma parceria, elas falavam que não dava, porque só iam comprar uns 30% do currículo nos nossos livros, porque não a gente não tinha catálogo. Então a gente foi lá e comprou a Saraiva em 2015. A prateleira ficou completa, do infantil ao terceiro ano do médio.
Esse catálogo permitiu que a gente montasse um sistema chamado PAR. Nessa plataforma, não queremos que a escola mude para sistema de ensino. Chegamos e falamos: “Pode continuar usando o livro que você vai ter todos os meus serviços, desde que você tenha 70% de adoção”. Agora a gente tem 511 escolas nessa parceria. Só para você ter uma ideia, isso é dois terços do Anglo, já é enorme.
O mercado de escolas de ensino básico ficou muito concorrido nos últimos meses, com diversas empresas querendo entrar no segmento. Vocês também querem crescer aí?
Sim, esse é o segundo plano de ação, que é bem importante. É o maior capex disparado, porque o capex de tecnologia não é tão relevante perto do que é para adquirir escola.
Nós temos hoje 20 mil alunos em 30 unidades de ensino básico, escolas mesmo e temos mais 7 mil alunos em cursinho. Estamos em processo de aquisição para chegar a mais ou menos uns 30 mil alunos e temos um projeto de expansão nosso muito grande desse número.
Nos últimos três anos, focamos muito em montar uma plataforma do ponto de vista pedagógico e operacional que nos dê uma vantagem ao adquirir a escola ou fazer uma parceria. Nem sempre a gente compra 100%, na maior parte das vezes faz uma parceria com o dono da escola.
É um negócio em que há ganho de escala?
Totalmente. Montamos um centro compartilhado, que faz a gestão de diversas atividades da escola, como cobrança, limpeza, contratação de terceiros. Neste ano, ele ficou completamente ativo. Todas as escolas estão dentro do Totvs, que é um sistema totalmente integrado. Isso customizou muito, dá a parte operacional e acadêmica, boletim, matrícula, presença, frequência. Com base nisso, conseguimos atrair a escola e mostrar a vantagem do ponto de vista do M&A.
O business de sistema de ensino é asset light e deve ter uma margem maior do que as escolas em si, não? Por que investir na compra de escolas se tem uma margem menor?
Escola é um negócio regional. O PH é muito focado no Rio de Janeiro, o Anglo em São Paulo, o Motivo, no Nordeste. A melhor estratégia é fazer uma aquisição de uma escola que é referência numa região. E, a partir daquela marca, você abre novas escolas em volta.
Por exemplo, a gente comprou o Motivo, de Recife, e abriu unidade no Recife, Petrolina, Caruaru. Você tem um primeiro capital alocado para fazer a primeira aquisição que é muito menor numa segunda, na terceira, na quarta abertura de novas unidades. Abrir uma nova unidade é muito menos capital intensivo que comprar alguém. Quando você considera esse ‘cluster’ da marca, o retorno sobre capital investido é muito alto.
Além do mais, esse é um mercado de R$ 50 bilhões, que é quanto se gasta por ano com mensalidade no Brasil.
Esse é um negócio em que você consegue aumentar preço, ou é mais a correção da inflação?
Conforme você aumenta a qualidade pedagógica, ao longo de muito tempo, consegue posicionar a marca e aumentar o preço. Mas não é daí que vem o ganho. E também não é sair fazendo corte dentro da escola, porque isso também não dá para fazer. É você ter um centro compartilhado em que se centraliza a gestão. O que rende mesmo é gestão bem estruturada, escala de compra, de papel, de material escolar… O PH da Barra comprando sozinho é uma coisa, a Somos comprando é outra.