Em 11 de setembro de 2013 enviei um email para Abilio Diniz explicando que gostaria de escrever um livro sobre ele.
Abilio acabara de selar um acordo com seu sócio francês Casino, depois de uma longa batalha entre os dois. Seis meses antes, eu publicara Sonho Grande, contando a trajetória de Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, e estava em busca de outro projeto. Abilio, com sua vida que mais parecia um roteiro de filme hollywoodiano – a infância modesta, o bullying na escola, a construção de um império do varejo, as disputas familiares, a iminência de uma “quebra”, sequestro, saída da empresa onde havia trabalhado por toda a vida – me parecia a escolha perfeita.
Marcamos uma conversa pessoalmente. Expliquei a ele que, assim como minha obra anterior, esta seria independente. Na prática isso significava que não teríamos qualquer vínculo e que ele não leria (muito menos aprovaria) o livro previamente. A única coisa que eu queria era que ele concedesse entrevistas. Não era o formato que ele esperava.
Abilio estava habituado a se manter no controle de quase tudo, e o que eu propunha era o oposto disso. Alguns dias depois ele disse que topava, e foi nessa reunião que ele me surpreendeu pela primeira vez. Quando estávamos prestes a sair da sala, Abilio se virou para meu editor e disse: “A Cris acabou de se separar. Cuida dela”. Eu havia me divorciado fazia poucas semanas e comentara superficialmente o fato com ele. Não imaginava que o “rei do varejo” tivesse dado importância ao assunto. Mas ele prestara atenção.
Durante mais de um ano mergulhei na vida e na carreira de Abilio. Às vésperas da publicação da obra, ele estava ansioso e preocupado, e chegou a me perguntar se havia partes do livro que ele não gostaria. Respondi que sim. Ele ficou nitidamente contrariado, mas manteve o nosso combinado. O livro saiu em julho de 2015 e, como eu previra, Abilio discordou de alguns trechos. Não me ligou para reclamar de nada, mas se distanciou.
Ainda que eu o tenha encontrado em um ou outro evento depois daquilo, foi só alguns anos depois que nos reaproximamos. Àquela altura Abilio já tinha um curso de liderança e gestão na FGV, em São Paulo. Certo dia o coordenador do curso, Marcio Ogliara, me convidou para participar de uma aula. A ideia era que eu conduzisse uma espécie de talk show com ele durante 1h30. Topei na hora.
Quando o dia chegou me peguei ansiosa, sem saber como seria o reencontro. Eu já tinha visto várias facetas dele: do gentil ao arrogante, do tranquilo ao mercurial. Qual delas eu encontraria?
Assim que ele entrou na sala e veio me dar um abraço, me tranquilizei. Não havia qualquer ressentimento. Mas Abilio, sendo Abilio, não perdeu a oportunidade de dar uma “cutucada”. A certa altura da conversa, disse: “a Cris escreveu no livro dela coisas que não aconteceram exatamente daquele jeito, mas tudo bem.” Sorrimos e seguimos adiante.
Outras aulas se sucederam àquela. Numa delas, em setembro de 2022, Abilio comoveu a sala toda. Seu filho, João Paulo, havia falecido no mês anterior (aqui vale dizer que dois dias após a morte de João Paulo os professores do curso receberam da coordenação um email avisando que, segundo orientação de Abilio, toda a programação estava mantida). Era inevitável que eu tocasse no assunto. Ao lembrar do filho, que ele dizia ser seu melhor amigo, Abilio encheu os olhos de lágrimas. Pela primeira vez numa entrevista, chorei.
Logo depois perguntei a ele como, então com 85 anos, ele lidava com a passagem do tempo, um recurso que ficava cada vez mais escasso. “Tem um texto que explica muito bem como me sinto em relação a isso. Posso ler?”, ele perguntou. Sacou o celular e leu “O valioso tempo dos maduros”, atribuído a Mario de Andrade:
“Contei meus anos e descobri que terei menos tempo pra viver daqui para frente do que já vivi até agora. Tenho muito mais passado do que futuro. Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço. Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte. Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha. Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos. Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa. Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana: que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade, quero caminhar perto de coisas e pessoas de verdade. O essencial faz a vida valer a pena. E para mim, basta o essencial!”
À medida que ele lia, eu pensava como aquela demonstração de vulnerabilidade seria impensável para o Abilio de outrora. Os anos, o casamento com Geyze e as mudanças da vida o haviam suavizado. O Abilio dos últimos anos era um homem muito mais feliz do que quando ele era o todo-poderoso “rei do varejo”.
Na última aula que fizemos juntos, em novembro, Abilio continuava malhado, animado, curioso e cheio de planos. Disse que faria um curso sobre Inteligência Artificial em Harvard. Contou novidades sobre seu programa de entrevistas na CNN Brasil. Estava praticamente recuperado de uma cirurgia no joelho e passou quase 1h30 em pé em frente aos alunos (eu estava desesperada para sentar, ele seguia firme). Era um homem muito mais calmo e feliz do que aquele que eu conhecera mais de duas décadas atrás. Brincando, disse que quando partisse poderiam escrever em sua lápide: “estou aqui, mas contra a minha vontade.”
Mais do que os alunos, aprendi muito com as camadas de Abilio que não ficavam iluminadas por holofotes. Aprendi e me comovi com suas vulnerabilidades. Com sua fome de vida e o modo como encarava a finitude. Esse foi o Abilio que mais me ensinou.
Tínhamos mais próxima aula marcada para o dia 2 de abril. Olho no calendário e é difícil acreditar que ela não vai acontecer. Busco nossos emails mais recentes e encontro a última mensagem que ele me enviou:
“Oi Cris, querida, é sempre uma alegria ter você no meu curso. Obrigado por colaborar comigo e por todo carinho.
Beijos
Abilio”
A alegria e a honra foram todas minhas.
Cristiane Correa é autora de “Abilio – Determinado, Ambicioso, Polêmico.”