Em 10 de janeiro de 1985, a música pop se preparava para uma noite que poderia ser genial ou um fiasco completo. Quase 50 grandes artistas americanos – Michael Jackson, Lionel Richie, Bruce Springsteen, Ray Charles, Diana Ross, Stevie Wonder, Bob Dylan, Paul Simon, Tina Turner e outros nomes estelares – se reuniriam num estúdio em Los Angeles para gravar We are the World, canção que levantaria recursos para combater a fome na África. 

Era muito talento junto, pouquíssimo tempo para gravação, energia criativa transbordando e pressão nas alturas — uma combinação com potencial de se transformar em bomba-relógio e colocar em risco todo o projeto. 

Cabia ao produtor, arranjador e compositor Quincy Jones – que no passado trabalhara com ícones como Ella Fitzgerald, Frank Sinatra e Sarah Vaughan, e mais tarde seria responsável por produzir álbuns icônicos como Thriller, de Michael Jackson – desarmar aquela bomba e garantir que vaidades pessoais não ofuscassem um provável hit global. 

Na porta do estúdio, Jones escreveu um recado para os cantores numa folha de papel sulfite: Check your ego at the door (“Deixe seu ego na porta”). 

Na medida do possível, os artistas seguiram a recomendação do produtor, como mostra o documentário A Noite que Mudou o Pop (Netflix), que narra os bastidores do projeto. 

We are the World se tornou uma espécie de hino dos anos 80, com um refrão “chiclete” cantado em todo o planeta. Ganhou quatro Grammys no ano seguinte, inclusive o de melhor canção, e se tornou um dos 10 singles mais vendidos da história, com 20 milhões de cópias comercializadas, gerando receitas de quase US$ 80 milhões para o combate à fome na África (o equivalente a US$ 160 milhões hoje). 

O documentário, que conta com imagens da época e entrevistas recentes com gente que participou da gravação – de técnicos de som e luz a músicos consagrados – revela detalhes da construção desse fenômeno.

Tudo começou poucas semanas antes do dia da gravação, em dezembro de 1984, quando o cantor e ativista Harry Belafonte telefonou para o empresário Ken Kragen, responsável pela carreira de algumas das maiores celebridades da música. Belafonte, que havia visto in loco e se horrorizado com a fome na Etiópia, queria criar um evento para que artistas se engajassem. Kragen sugeriu a gravação de uma música com os maiores nomes da música americana.  Já havia um modelo para isso: naquele ano, Bob Geldof reunira artistas britânicos e irlandeses para arrecadar fundos. 

O primeiro a ser escalado foi Lionel Richie, que saiu em busca de um parceiro para compor a canção. Tentou Stevie Wonder, mas ele não atendeu seus telefonemas. Resolveu então acionar uma formidável segunda opção: Michael Jackson. A essa altura, Quincy Jones já havia sido escalado como produtor. 

Com o núcleo central ancorado em artistas negros, agora era partir para incluir outras vozes. O passo mais acertado nesse sentido foi convidar Bruce Springsteen, que estava encerrando sua turnê Born in the USA e vivia o apogeu da carreira. Se um astro como ele abraçasse a causa, outros o seguiriam. E foi o que aconteceu.

O trabalho de convencimento tinha um agravante: a agenda dos artistas, normalmente definida com meses de antecedência. A solução foi marcar a gravação para a mesma noite do American Music Awards, a premiação que reuniria a nata da música em Los Angeles e seria apresentada por Lionel Richie (sim, o homem estava em todas. Aliás, ele não só apresentou o prêmio como venceu em seis categorias). 

A ideia era que ao fim do evento todos fossem direto para o estúdio. Não haveria muito tempo para ensaio nem conversa fiada. Tudo deveria ser gravado naquela noite. Era arriscado, mas era a única possibilidade. 

A poucos dias da gravação, Jackson e Richie finalmente terminaram de compor a música. Foi uma correria para gravar 50 demos em fita cassete e enviar para os artistas ou seus agentes, tomando todos os cuidados para evitar um vazamento. Foi só aí que os cantores souberam o que iam gravar. 

O documentário conta que Cindy Lauper chegou a dizer para Richie que ia abandonar o barco porque seu então namorado ouviu a música e não achou que fosse suficientemente boa (para sua sorte, Cindy acabou ignorando a opinião dele). O filme mostra apenas um grande artista que se recusou a participar: Prince. Excêntrico até o último fio do mullet, ele telefonou a Richie na noite da gravação para dizer que toparia apenas se pudesse tocar guitarra numa sala separada dos outros artistas. Não entendeu que naquele projeto a força da criação coletiva era muito maior que a dos talentos individuais. Ficou de fora.

Teria sido fácil a criação coletiva descambar para o caos. Como diz Richie a certa altura do filme, havia 47 artistas ali e se perguntassem a cada um sua opinião sobre como deveria ser a canção, haveria 47 versões de We are the World. Por isso, desde o início Quincy Jones conduziu a reunião dando pouca margem para sugestões de última hora.

A certa altura da gravação do refrão, como se estivesse falando com novatos numa audição e não com estrelas consagradas, ele pede aos cantores que não conseguem alcançar uma determinada nota que permaneçam em silêncio. É bem provável que nem todos tenham gostado da orientação, mas ninguém retrucou (Bob Dylan foi um dos que seguiu a recomendação e ficou calado). 

Também é de se imaginar que a definição de quem seriam os solistas – e quem teria que se contentar em participar apenas do refrão – não tenha agradado a todos. Jones era um general com uma missão; os artistas eram seu exército. 

Eram quase 7 da manhã quando Springsteen foi gravar o trecho final da música. Ele estava exausto da turnê encerrada um dia antes, tinha “virado” a noite, mas ninguém tem o apelido de “Boss” à toa. Como diz um amigo meu, Springsteen berra como se tivesse bebido meio litro de cortante de rabiola de pipa. É impossível não se arrepiar com aquela voz visceral, provavelmente a mais marcante da música. 

Quando a gravação terminou, todos foram pra casa com a sensação de que tinham vivido um momento inesquecível. Três meses depois a canção foi lançada simultaneamente em todo o mundo, alcançando quase 1 bilhão de pessoas – um feito especialmente notável numa época que ainda desconhecia internet, celulares e redes sociais.

We are the World não acabou com a fome na África, um mal que até hoje afeta dezenas de milhões de pessoas no continente. Também não mudou o rumo do pop, como prega o título do documentário. Mas naquela noite de janeiro de 1985, um bando de loucos talentosos fez história ao acreditar que, ao se esforçar para deixar o ego na porta, seria possível melhorar o mundo. 

Cristiane Correa é jornalista e membro do Comitê ESG do Grupo Fleury.