Wilhelm Kauth não entende por que o brasileiro aprecia farofa, nem de onde vem nossa mania de colocar goiabada em qualquer sobremesa.
Ainda assim, o alemão – contratado há um ano para reformular as marcas exclusivas do Grupo Pão de Açúcar (GPA) – está conseguindo vender mais farofa e goiabada Qualitá. Em outubro, as vendas da marca própria do GPA cresceram 30% em relação ao mesmo mês de 2017.
O Brasil é um dos mercados com a menor penetração de marcas próprias no mundo – apenas 5% – e o aumento das vendas deste tipo de produto é uma das principais estratégias do GPA para os próximos anos – uma forma de aumentar margens, diminuir a dependência da indústria e fidelizar os clientes.
“No passado, o grupo posicionou a marca Qualitá apenas como preço, o que não fideliza o cliente; a proposta e o posicionamento tem que ser de preço e qualidade”, Kauth disse entre uma garfada e outra num almoço com jornalistas, antes de emendar sua perplexidade com a farofa que acompanhava um steak tartare (“É como se fosse areia para colocar na comida!”).
Kauth aprendeu um português fluente morando oito anos em Lisboa, onde trabalhava para o grupo Lidl, o maior varejista europeu com mais de US$ 100 bilhões de faturamento.
Antes de chegar ao GPA, fez uma carreira de 16 anos na rede alemã, que é benchmark quando se trata de marcas próprias: mais de 80% das vendas da rede são de marcas que pertencem a ela.
Com supermercados relativamente pequenos e uma oferta enxuta – cerca de um terço da variedade dos concorrentes – a Lidl consegue vender produtos equivalentes por preços até 50% mais baratos que a concorrência.
Essa estratégia – utilizada também por varejistas como a Aldi (outra alemã) – exige um esforço monumental junto à cadeia de fornecedores. Muito mais do que vender o produto, a Lidl aprendeu a produzi-lo e empacotá-lo de uma forma tão atrativa quanto empresas globais de bens de consumo, desenvolvendo produtos premium e comunicando que não há tradeoff entre preço e qualidade.
No mercado europeu, as marcas próprias já representam cerca de 40% do varejo, de acordo com dados da Nielsen, um número que aumenta ano a ano. No Brasil, o percentual é inferior aos 8% da América Latina.
Pode parecer contraintuitivo, mas Kauth diz que o consumidor brasileiro é menos sensível a preço do que o europeu porque é mais emocional na hora da compra – o que significa que precisa de uma conexão com a marca para botá-la no carrinho.
Mas as dificuldades logísticas e limitações da própria cadeia de suprimentos também criam um gargalo no lado da oferta.
O maior desafio de Kauth é exatamente o relacionamento com a indústria. Sua equipe refez toda a relação com a cadeia de fornecedores para garantir a qualidade dos produtos e assegurar que haveria escala para diminuir ainda mais os preços.
Até o ano passado, os produtos Qualitá eram, em média, de 10% a 15% mais baratos que os produtos de marcas tradicionais. Este ano, a diferença passou para 35%.
O alemão também fez um funil de qualidade. Se o produto não estava em condições de competir com o líder de categoria, foi reformulado ou riscado do portfólio. Foram centenas de painéis de degustações com os consumidores – onde ele se deu conta da gama gigantesca de sobremesas e biscoitos que levam goiabada no Brasil. (“Precisa mesmo de tanta goiaba?”, inquiriu à repórter com um olhar sincero.)
Cerca de 300 produtos foram cortados do portfólio Qualitá, que agora tem 1.300 itens. Em 2019, este número deve chegar a 2.800 – além da linha básica de mercearia e limpeza que já são os carros-chefe da marca, haverá itens mais sofisticados, como uma linha ‘leve’, de produtos light, e uma ‘premium’, que incluirá chocolates, doces finos e massas frescas.
O marketing também mudou de cara. A Qualitá ganhou uma nova logomarca e uma embalagem roxa agora padroniza todos os produtos, que aparecem em praticamente todas as pontas de gôndola. Uma campanha publicitária na TV a cabo retrata os fornecedores e destaca a origem dos produtos. A semântica também é outra: a marca é apresentada como ‘exclusiva’ das redes Pão de Açúcar e Extra.
A Taeq, de produtos saudáveis, deve ser a próxima marca própria do GPA a passar por uma reformulação. “No mundo, em média, os produtos orgânicos ou para intolerâncias [a glúten ou lactose] são de 30% a 40% mais caros que os tradicionais; aqui no Brasil, esse valor chega a ser o triplo”, diz. “Há uma oportunidade muito grande.”
Um estudo da Nielsen mostra que as marcas próprias vem ganhando participação no mundo todo – e, em mercados mais maduros como o europeu, chegam a liderar a inovação nas categorias em que atuam. (Mais bem informados, muitos consumidores veem as marcas próprias como equivalentes ou substitutas de marcas multinacionais.)
No Brasil, o momento pode ser propício: com o tradedown para produtos mais baratos por conta da crise, o consumidor pode se dar conta de que não há prejuízo de qualidade em relação à marca líder e manter a marca própria na cesta de compras mesmo em tempos mais prósperos.
Se o plano do GPA funcionar, a rede pode arrumar um problema com a indústria tradicional, que tende a perder espaço na gôndola. Racional, como todo bom alemão, Kauth diz que esse é um bom problema.
“Nos últimos dois meses, algumas grandes marcas já começaram a mostrar algum desconforto,” afirma. “Mas isso é um sinal de que estamos fazendo um bom trabalho. O Brasil é um mercado muito dominado pela indústria.”