Esta não é a primeira onda de mortes no País por causa de bebidas produzidas ilegalmente com a mistura de metanol. Nos anos 90 houve casos parecidos com os vistos nos últimos dias. Mas a volta desse tipo de ocorrência indica que o crime ganhou força, enquanto a fiscalização ficou mais frouxa.

Era um acidente esperando para acontecer, já que diferentes estimativas indicam um aumento na venda de bebidas alcoólicas ilegais – seja por sonegação, contrabando ou falsificação.

A Associação Brasileira de Bebidas Destiladas (ABBD), criada pelas multinacionais do setor, estima que uma a cada cinco garrafas de vodca ou uísque vendidas no País seja falsificada.

Já um estudo encomendado pela Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF) estima que o comércio ilegal controle 36% do mercado de destilados – seja pela sonegação, falsificação ou contrabando.

Em cerca de um terço dos casos, as compras de bebidas fajutas são feitas diretamente pelos consumidores desavisados em plataformas de e-commerce.

Com a carga de impostos representando 60% do preço final de uma bebida nas lojas, as margens do crime são para lá de atraentes – ainda mais quando os insumos usados em fabriquetas de fundo de quintal não prezam pela qualidade.

Segundo o anuário da ABCF, o setor de bebidas é com folga o mais prejudicado pela pirataria. Em 2024, o prejuízo foi estimado em R$ 86 bilhões. No segundo posto vem a indústria do vestuário, com perda de R$ 51 bilhões. Em combustíveis, o prejuízo ficou em R$ 29 bilhões, sobretudo por causa da sonegação.

Muita gente vem trocando destilados por cerveja e vinho, temendo a contaminação por metanol — mas é melhor tomar cuidado.

Existe uma probabilidade considerável de a cerveja também ser adulterada – a polícia estoura frequentemente ‘fábricas’ de falsificação – e de o vinho ser falsificado ou contrabandeado. Ou as pessoas acham que aquele “vendedor de confiança” que traz vinhos argentinos a preços convidativos está entregando produto de primeira?

De acordo com entidades de combate ao crime e à pirataria, houve uma piora na fiscalização a partir de 2016, com a desativação, pela Receita Federal, do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe).

Em fevereiro, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública lançou o relatório Follow the products: rastreamento de produtos e enfrentamento ao crime organizado no Brasil. No documento, afirma que “o desligamento do Sicobe ocasionou um apagão de dados consolidados sobre o mercado ilegal de bebidas, causando perdas tributárias estimadas em R$ 72 bilhões em 2022.”

Implementado pela Receita e pela Casa da Moeda em 2008, “o sistema rastreava em tempo real a produção de bebidas, reduzindo sonegação e contrabando, e gerando um aumento de 40% na arrecadação do setor já no primeiro ano de operação,” diz o relatório.

Segundo a entidade, desde sua desativação, em 2016, as fraudes dispararam, gerando perdas fiscais de R$ 78 bilhões entre 2016 e 2022.

“A expansão do mercado ilícito de bebidas no Brasil ressalta a necessidade urgente de sistemas de controle estatais mais eficazes, assertivos e inteligentes,” diz o documento. “Essa questão vai além do âmbito tributário ou econômico, já que o setor de bebidas é um dos principais alvos de organizações criminosas que exploram esse mercado ilegal para práticas como lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, contrabando e falsificação.”

Para a organização, o “reforço em medidas de rastreamento e identificação pelo Estado brasileiro é essencial para desarticular essas redes e minimizar seus impactos negativos na sociedade.”

Não faltou alerta, portanto.

A Receita argumentou, em nota divulgada esta semana, que o fim do Sicobe não trouxe prejuízos à fiscalização e seu desligamento em nada contribuiu para a contaminação com metanol. Disse que o sistema era usado para combater a sonegação principalmente nos mercados de refrigerantes e cervejas. Nos destilados, o controle é feito hoje com selos de identificação.

O TCU solicitou a reativação do Sicobe, reconhecendo o mérito de uma ação apresentada pela ABCF. A Receita recorreu e a disputa chegou ao STF, que ainda vai analisar se o sistema foi desativado ilegalmente ou não.

A Advocacia-Geral da União sustenta que reativar o Sicobe custaria R$ 1,8 bilhão por ano, um valor acima do gasto nos outros sistemas da Receita, que é de R$ 1,7 bilhão.

O Governo diz ainda que a arrecadação de impostos do setor de bebidas aumentou desde 2016, passando de R$ 9,2 bilhões em 2016 para R$ 13,4 bilhões em 2024. A indústria contra-argumenta, afirmando que a arrecadação cresceu muito menos do que a venda nesse período.

“Quando o Sicobe foi implementado, o Brasil passou de quinto maior produtor de bebida do mundo para o terceiro. Isso mostra o tamanho do mercado ilícito da subnotificação,” disse o advogado Rodolpho Ramazzini, diretor de comunicação da associação de combate à falsificação.

Nos bastidores, há uma disputa de lobbies pelo fornecimento do serviço de fiscalização, disseram fontes a par do tema. Ao mesmo tempo, fabricantes que sonegam impostos trabalham em Brasília para que o sistema de rastreamento não seja reativado.

O setor ilegal de bebidas sempre existiu, mas era num nível tolerável, estável. Agora, embarcou num foguete,” disse Ramazzini. “As quadrilhas de falsificadores tiveram uma facilidade tremenda sem o Sicobe.”

O metanol vem sendo importado há algum tempo pelo crime organizado para ser revendido como etanol nos postos. Agora, o mais provável é ter sido desviado para a produção de vodcas e gins pirateados, de acordo com fontes que acompanham as investigações.  

A indústria internacional de bebidas falsificadas prosperou nos últimos anos, sobretudo depois da pandemia.

Em um relatório de 2022, a OCDE afirmou que o ilícito encontrou espaço por causa de fatores como “a reformulação da estrutura de fornecedores, a destruição das relações existentes nas cadeias de suprimentos e ainda a mudança nas prioridades de fiscalização.”

“O comércio de bebidas alcoólicas irregulares é um alvo atraente para o crime organizado, visto que tanto o mercado quanto os lucros potenciais são elevados, exigindo, em alguns casos, pouco investimento,” afirmou o relatório. “É importante ressaltar que o álcool ilícito fornecido por criminosos é frequentemente de qualidade inferior e apresenta riscos altíssimos à saúde.”

Sabe aquela Veuve Clicquot que um site de promoções está vendendo pela metade do preço dos importadores oficiais? É gigante a probabilidade de as borbulhas não serem francesas.

Na China, um comerciante que vendia uma variedade de produtos de champanhe premium no Tmall, um site operado pelo Alibaba, foi pego em 2019 vendendo garrafas falsificadas de Dom Pérignon Luminous Millesime Brut 2002, relatou a OCDE. A Moët Hennessy, dona da marca, descobriu a fraude após comprar e inspecionar duas caixas.

Houve também casos de uísques falsificados no Reino Unido e de vinhos adulterados na Itália. Nos EUA, a Buffalo Trace Distillery, produtor de um dos bourbons mais prestigiados, tem sido alvo de uma série de golpes de falsificação online.

De acordo com a OCDE, o apelo ao crime sobe quando a tributação sobre os importados é muito elevada, como no caso do Brasil e da Índia.

Já quando o assunto são as penas contra os criminosos, o leão brasileiro fica mansinho. Estão previstas condenações inferiores a um ano de cadeia, que podem ser transformadas em multas. Na maior parte dos países analisados, as penas podem chegar a cinco anos de prisão. Na China e no Japão, as condenações podem chegar a dez anos.

Como já teorizou o economista Gary Becker, ganhador do Nobel de 1992, os criminosos agem em boa medida seguindo um cálculo racional de custos e benefícios.

Para a maioria das pessoas, o custo marginal do ilícito supera os benefícios – e por isso elas dificilmente vão cometer delitos graves. Mas para alguns, no entanto, o benefício marginal supera os custos, o que as torna mais propensas ao delito.

Para Becker, a dissuasão dos crimes depende não tanto dos prazos das penas ou dos valores das multas, mas sim da probabilidade de as sanções serem aplicadas. A impunidade derruba as barreiras de entrada para os produtos ilícitos – e o crime ganha mercado.

Becker contribuiu para criação de um modelo sofisticado de análise de políticas públicas mais eficientes, mas uma de suas conclusões já estava presente no famoso tratado Dos delitos e das penas, de 1764, do então jovem jurista italiano Cesare Beccaria:

“A perspectiva de um castigo moderado, mas inevitável, causará sempre uma impressão mais forte do que o vago temor de um suplício terrível, em relação ao qual se apresenta alguma esperança de impunidade.”