O debate sobre a quarentena no Brasil — bem como a forma de se retomar as atividades — está contaminado pela polarização política.
 
Não existem respostas perfeitas ou isentas de riscos. Para o bem de todos, é imperativo que a estratégia de reabertura se ampare na análise contínua, transparente e criteriosa dos dados para cada região, que ela priorize a vida como valor máximo, e a economia e o emprego como meios críticos para a preservação de vidas.
 
O primeiro estado a bolar um plano de reabertura foi o Rio Grande do Sul, o qual, com as devidas adaptações, pode se tornar um modelo para outros estados da federação.

Participei do desenho do plano gaúcho como parte de um grupo de voluntários.  Nosso grupo trabalhou em parceria com a Comunitas e todo o processo foi liderado pela Secretária do Planejamento, Leany Ramos.
 
O chamado Plano de Distanciamento Controlado entrou em vigor na segunda-feira, dia 11 de maio. 
 
O princípio básico é coletar e analisar dados epidemiológicos e de ocupação da capacidade do sistema de saúde em tempo real, para com isto determinar o grau de distanciamento social necessário em cada região. Quanto menor o crescimento do número de casos e maior a capacidade disponível do sistema de saúde, menor a intensidade das medidas de distanciamento e maior o nível de atividade econômica. Quanto maior o crescimento dos casos e menor a capacidade do sistema, medidas mais rígidas de distanciamento são adotadas.

Os principais pontos do plano são:

– Divisão do estado em 20 regiões. Existe uma enorme variação na severidade da epidemia mesmo entre cidades e províncias vizinhas no mesmo país. A causa para esta variação ainda é pouco compreendida pela ciência, e o plano deve endereçar este ponto, adequando o distanciamento social às condições em cada região.

– Para todas as regiões e o estado como um todo serão acompanhados e quantificados 11 indicadores em tempo real, relacionados à velocidade do avanço da covid-19, ao estágio de evolução da epidemia, à incidência de novos casos, à capacidade do sistema de saúde e às mudanças na ocupação dos hospitais. A detecção de novos casos será através de PCR, técnica que permite o diagnóstico mais precoce da covid-19.

– A média ponderada destes indicadores determina um escore que corresponde a uma cor de bandeira para cada uma das regiões: amarela, laranja, vermelha ou preta (similar ao sistema de cores DORSCON, de Singapura).

– O monitoramento será diário, mas a atualização da bandeira ocorrerá semanalmente, divulgada sempre aos sábados, valendo para a semana seguinte.

– Para cada bandeira, o nível de distanciamento social e restrições será ajustado para a região como um todo, e também para cada um dos 12 grupos de atividade econômicas definidos no plano.

– Estes grupos foram ranqueados com base na análise do US Department of Labor que quantifica o grau de exposição à infecções e contato com outras pessoas no exercício de cada atividade. Por exemplo, médicos e dentistas tem escore elevado para ambas variáveis, economistas e pescadores tem escore baixo para ambas.

– Também se determinou a relevância sócio-econômica de cada atividade no estado, e através de uma média ponderada entre o risco ocupacional e a relevância sócio-econômica foi criado um Índice Setorial para Distanciamento Controlado.

– Finalmente, com base na bandeira de cada região e no Índice Setorial, foi determinado o grau de distanciamento e padrões de operação em cada uma destas 12 atividades, na vigência de cada bandeira.

Qualquer plano de reabertura deve ser necessariamente dinâmico, com as regiões potencialmente alternando entre bandeiras mais e menos restritivas, de acordo com a evolução da epidemia. Isto requer um elevado grau de comprometimento da sociedade, governo, entidades representativas e da população. Certamente não é uma solução perfeita e ainda pode ser aperfeiçoada ao longo da implementação, mas já é um avanço inegável em relação à simples quarentena.

Além do plano gaúcho, outra que passou da teoria à prática foi a comunidade de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo.

Coordenados pelo líder comunitário Gilson Rodrigues e orientados pela Faculdade de Medicina do Einstein, pelo Sírio Libanês e a ONG Parceiros da Educação, os 100 mil moradores de Paraisópolis estão dando um show de organização, inteligência e solidariedade.

Reconhecendo as dificuldades em implementar uma quarentena rigorosa numa comunidade densamente povoada e cujos moradores precisam buscar seu sustento fora dali, Paraisópolis desenvolveu um plano engenhoso de combate à pandemia.

As ruas têm um sistema de “presidentes”, responsáveis pela detecção de caso novos e suspeitos. Duas escolas (desocupadas pela pandemia e com capacidade para abrigar 500 pessoas) estão sendo utilizadas para isolamento dos casos positivos, evitando assim o contágio de familiares e grupos de risco. 
 
A comunidade também contratou três ambulâncias privadas, sete profissionais de saúde que fazem plantão 24 horas por dia e treinou 240 moradores, com apoio do Corpo de Bombeiros, para atuar como brigadistas e ajudar a socorrer casos de emergência.

Além das soluções criativas para o manejo da pandemia, Paraisópolis também está atenta ao impacto severo da crise econômica na sua população. Mais de 1000 marmitas são distribuídas diariamente, trabalhadores que perderam seus empregos nas residências mais abastadas da cidade podem se inscrever no programa “Adote uma Diarista”, que paga uma ajuda de R$ 300 financiada por uma inciativa de crowdfunding.

Com tantas notícias duras nos atingindo diariamente, é muito animador ver uma iniciativa tão inteligente sendo implementada — ainda mais quando todos conhecemos as dificuldades do cotidiano. 
 
Paraisópolis e o Rio Grande do Sul estão oferecendo modelos para o Brasil.  Cabe à sociedade se organizar e persuadir os governos, sem Fla-Flu.
 

Fabio Jung é médico pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, MBA em Finanças e Health Care Management em Wharton, e é sócio da One Partners.

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