Fundada há 115 anos pela família Botelho, a Energisa sempre operou num dos setores mais tediosos e confiáveis da economia: a venda e distribuição de energia elétrica. 

11270 891c0de3 7e93 8ea0 8a93 8670aaa48593Agora, o CEO Ricardo Botelho está tentando transformar a quinta maior distribuidora do País com uma estratégia de plataforma que começa a ganhar corpo mês que vem — quando a empresa lançará a Voltz, uma fintech criada in house que oferecerá serviços a sua base de mais de 20 milhões de clientes.  

A Energisa do futuro é uma empresa dividida em duas áreas: os negócios regulados e de rede (distribuição, geração e transmissão) e o que Botelho chama de energia 4D (“digitalizada, descarbonizada, diversificada e descentralizada”). 

Nesta conversa com o Brazil Journal, Botelho detalhou a estratégia e falou sobre o futuro da empresa.  “O setor de energia elétrica é o lugar para se estar neste momento. As petroleiras querem se eletrificar, e o carro elétrico vai mudar o mundo. Nada será como antes: a cadeia inteira vai ser reinventada.”


Vocês anunciaram recentemente uma estratégia para aproveitar o relacionamento com sua base de clientes e oferecer outros produtos. A primeira iniciativa neste sentido é a Voltz, uma fintech que vocês anunciaram no Energisa Day. O que ela vai fazer exatamente?

A Voltz é um dos empreendimentos que está dentro da nossa visão maior de plataforma, de ecossistema, de buscar desenvolver negócios que sejam acopláveis ao nosso ecossistema de energia. Pretendemos lançar a Voltz em janeiro. A Voltz surgiu de um processo de venture building, que é um processo em que fazemos o spinoff dentro da companhia. O projeto da Voltz surgiu em 2018 muito focado na jornada de pagamento da conta de luz e no público da classe B, C e D.


Fizemos um mergulho e identificamos que uma parcela razoável desse público alvo era muito mal atendido e estava fora do mercado bancário. Alguns tinham até uma aversão a bancos. 

O objetivo da Voltz é promover a inclusão digital financeira dessas pessoas. Começando por onde operamos, mas não ficando restritos a isso. Percebemos que a grande maioria deles já tem smartphone, usam Whatsapp, mas estão num processo muito inicial na questão da inclusão financeira. A estimativa nossa é que a Voltz vai atingir 1 milhão de clientes em dois anos. 

Só para você ter uma ideia, temos 8 milhões de clientes de energia elétrica e chegamos a 20 milhões de pessoas. Fizemos esse investimento inicial e pretendemos oferecer uma série de serviços, de educação financeira a microcrédito, incluindo recarga de celular e o pagamento de contas além da conta de energia.

Nos canais digitais de relacionamento da Energisa tivemos em novembro mais de 7 milhões de acessos únicos. A maioria são para questões de pagamentos. Então temos uma grande oportunidade de converter esses clientes que já se comunicam digitalmente com a gente. Outra oportunidade que estamos vendo é a antecipação de recebíveis de fornecedores da Energisa. Temos mais de 20 mil fornecedores cadastrados, que recebem pagamentos de R$ 5,5 bilhões por ano. A Voltz pode ajudar a reduzir custos e a se capitalizar com um negócio desses. 

Outro exemplo do que a Voltz vai poder trabalhar são as operações do sistema bancário. De forma direta, temos mais ou menos R$ 250 milhões ao ano de tarifas, taxas e custos bancários. Só de tarifa de arrecadação (o que eu pago para a emissão de um boleto bancário ou pagar uma conta numa lotérica) são R$ 90 milhões por ano. Então a Voltz também pode dar uma solução mais inteligente, mais fácil para a Energisa, que era um dinheiro que ficava na mesa. 

Para convencer esse consumidor a usar a Voltz no começo, o que vocês pensam em fazer? Dar algum benefício… ‘pague com Voltz e tenha um desconto na conta’, algo nesse sentido? 

Sem dúvida. Esse é o grande desafio. Vamos lançar o produto em janeiro oferecendo vários benefícios: cashback, programa member-get-member, sorteios… Estamos bolando várias coisas muito interessantes que vamos divulgar no lançamento em janeiro. 

A Voltz também vai buscar atender outros clientes corporativos além da Energisa. Ela pode, por exemplo, prestar os mesmos serviços para outras distribuidoras.

A Equatorial disputou a empresa de saneamento em Alagoas; perdeu, mas disputou. Vocês estão considerando entrar em saneamento ou distribuição de gás?

Saneamento não, absolutamente não. Tivemos experiência neste negócio logo que eu entrei na Energisa, em 1997. Participamos do processo de privatização de uma empresa de saneamento em 98 e foi a pior experiência que eu já tive. Não vejo nenhuma sinergia com o negócio de eletricidade. É uma utility sim, mas não tem nada a ver com energia. Não vejo como potencializar e crescer esse negócio. Embora haja um marco regulatório novo, ele ainda tem muita interferência dos governos estaduais e municipais. A regulação federal é um pouco mais estável e me dá um pouco mais de segurança. 

E a distribuição de gás?

Gás estamos estudando já há algum tempo. Está muito confuso o cenário. A Lei não passou ainda com toda a regulamentação e toda clareza. Tem coisas que ainda não estão muito bem definidas. Há uma disputa dos Estados em relação ao monopólio. Há players dominantes em determinadas cadeias. Mas como o gás natural é um insumo energético e essa é também uma indústria de redes, eu diria que está muito mais próximo do nosso negócio do que cano de água e esgoto. 

No Energisa Day do ano passado, vocês chegaram a falar em térmicas a gás. Tem algum plano de voltar a atuar em geração de energia? Vocês já tiveram uma térmica em Juiz de Fora.

O gás natural usado nas térmicas é um combustível de transição para o mundo pós-carbono. É um insumo que espero que seja desenvolvido e venha trazer um custo mais baixo quando tiver volumes maiores. Então eu diria que sim, mas dentro dessa estratégia estamos muito mais focados em energias 100% renováveis. Mas o gás natural, embora seja um combustível fóssil, é um combustível de transição muito importante para o Brasil também. Acho que a melhor resposta é ‘talvez’, porque nosso foco maior é renováveis. 

Toda essa macrotendência da transição energética está ancorada na tecnologia. Tem uma demanda muito forte dos clientes, dos consumidores e da sociedade. Isso vai trazer muitas oportunidades e desafios. O ambiente concorrencial está mudando também. Para o futuro, acreditamos numa energia 4D: digitalizada, descarbonizada, diversificada e descentralizada. 

Qual vai ser a relevância do 4D no futuro da Energisa? 

Vamos ter sempre o negócio regulado — o chamado negócio de rede — que cresce, tem mais previsibilidade e em que acreditamos há muito tempo. E tem esses negócios 4D, que é todo o resto, uma área de serviços. 

Você pode acoplar outras ofertas nesse ecossistema já construído por essas empresas de fios. Cada vertente que podemos olhar — qualquer um dos quatro Ds — são negócios que se alimentam neste ecossistema. 

Temos vários exemplos de coisas que já estamos fazendo, mas tudo está ainda num estágio inicial, e temos uma visão de crescer muito esse lado. 

Mas quais iniciativas vocês já estão fazendo?

Pelo lado da digitalização, estamos há três anos trabalhando a transformação digital dessa empresa em vários segmentos. O foco da digitalização está muito ligado à eficiência operacional, transformar a experiência do cliente e desenvolver novos modelos digitais de negócios. 

Temos uma quantidade gigante de dados: coletamos dados de dispositivos instalados nas nossas redes, dos equipamentos que estão em campo por aí, dos apps que estão com os consumidores. E desenvolvemos dentro de casa uma capacidade de modelos analíticos bem interessante para a tomada de decisão. Conseguimos pegar isso e aplicar para nossos clientes, por exemplo, para avaliar o modelo preditivo de falha de um equipamento elétrico. O sujeito tem um mega transformador dentro da indústria dele: podemos saber se aquele transformador tem risco de falhar a qualquer momento. 

Temos aplicações que desenvolvemos que olham imagens de satélite e determinam se aquela árvore precisa de uma poda, evitando que a árvore invada a área das redes e interrompa a energia. 

Conseguimos fazer análise de perfil de risco dos clientes: os que são mais propensos a fraude ou a melhor forma de cobrar um cliente inadimplente. Tudo isso está baseado em dados. 

Na área administrativa, nosso jurídico tem modelos analíticos para decidir quando é melhor fazer um acordo, e o RH já usa analytics e algoritmos para fazer o melhor match entre a vaga e o candidato. Montamos aqui no Rio o Energisa Digital Lab, onde temos um time de cientistas de dados e desenvolvedores, e estamos fazendo muitas parcerias com startups.  

E esse negócio de ‘descarbonização’?

Esse tema está muito ligado ao nosso projeto na Amazônia [a Energisa opera em Tocantins, Rondônia, Mato Grosso e no Acre]. Nossa contribuição para a preservação da Amazônia passa por fazermos um fornecimento confiável de energia elétrica para a população com redução de fontes fósseis. 

Parte de nossos clientes na Amazônia hoje é atendida por plantas térmicas em sistemas isolados, que não estão interligados ao grid nacional. São comunidades de porte médio, 10 mil, 15 mil consumidores. E esse pessoal hoje usa o diesel ligado direto… A maior contribuição que podemos dar é fazer a interligação com o grid.  Isso talvez seja o maior programa de descarbonização acontecendo hoje na Amazônia.

Vamos desligar 19 térmicas isoladas até 2025. Já desligamos cinco este ano e vamos parar mais 14 até 2025. Vamos investir R$ 1,2 bilhão para fazer essas obras todas, e isso vai retirar 165 MW de plantas a diesel, que são caras e poluentes. Isso vai tirar da conta de luz dos brasileiros — que pagam por esse óleo diesel — R$ 718 milhões por ano. São 533 mil toneladas de CO2 a menos, e 450 mil pessoas vão ser beneficiadas porque vão ter uma energia de melhor qualidade. 

No terceiro D, de diversificação, quais projetos vocês têm?

Chamamos esse modelo de ‘energy as a service’, que é juntar armazenagem, baterias, tecnologia digital, dados, para dar uma eficiência maior ao cliente, para que ele use cada tipo de energia no melhor momento. Ele passa a ter a possibilidade de usar fontes mais econômicas nos momentos de pico. 

Em Uberlândia, temos uma divisão chamada Alsol, que é um grande laboratório de projetos para clientes industriais. Nesse modelo de ‘energy as a service,’ o cliente aluga um sistema de armazenagem que carrega no horário fora da ponta, descarrega no horário de pico, e em troca disso damos um desconto na conta de energia. 

A Alsol é uma semente de tudo que é renovável na empresa?

Ela é uma semente dos negócios de energia 4D. A Alsol é um grande laboratório porque ela trabalha com energia solar distribuída, mas também com armazenagem, mobilidade elétrica… é uma empresa que sabe traduzir muito bem esse 4D como proposta de negócio. A Alsol está focando mais nesses serviços de tecnologia e entrando na geração distribuída, nas coisas menores. 

A geração distribuída é você coletar a energia do sol no telhado,  consumir uma parte e colocar o que sobra no grid?

Tem um modelo de compensação. Você abate o que consome, e o que sobrou você devolve para a rede e é remunerado pela mesma tarifa que a gente vende. É um modelo que beneficia muito o consumidor. E é uma geração próxima da carga, do local de consumo. Pode ser um telhado na sua casa, ou você pode alugar cotas de um parque solar ou eólico e utilizar essa cota. 

Quão preponderante será a geração distribuída vis-à-vis a geração centralizada?

Hoje a geração solar distribuída, que é a grande maioria desse mercado, está na ordem de 4 mil MW de um total de 170 mil MW. 

Ainda é muito pequeno, mas cresce a uma taxa vertiginosa, porque é um modelo muito calcado num subsídio muito rico para o consumidor, inclusive oneroso para os demais… Eu posso falar com propriedade porque eu invisto na geração distribuída, mas também estou do lado de redes. 

Quanto é esse subsídio hoje?

Ele é um subsídio oculto, que é o pior tipo que tem, porque não é explícito. Não tem uma lei do Congresso que fala: ‘vamos dar X reais de tarifa social de baixa renda durante os próximos 10 anos e vai custar tanto’. Esse é um subsídio que não tem limite, porque ele vem desse sistema de compensação e o subsídio se dá porque o prossumidor (quem é ao mesmo tempo produtor e consumidor) tem uma hora do dia que ele gera e uma hora do dia que ele usa a rede (nos dias nublados ou à noite). E ele não paga absolutamente nada de tarifa de transmissão que traz a energia das grandes usinas para as cidades. Não paga nenhum encargo setorial que está incidindo sobre essa conta, por exemplo o subsídio da baixa renda, da irrigação… tudo que o Congresso coloca na tarifa ele não paga. Só os demais. Por último, ele paga uma taxa mínima para a distribuidora. Uma taxa tão mínima que não paga nem os custos de nada. É uma coisa ridícula. Esse montante que é removido da conta dele… ele abate o que ele consome e vende o excedente. Só para você ter uma ideia da proporção: essa energia que eu sou obrigado a recomprar é 6x mais cara do que se a Energisa comprasse num grande parque solar num leilão.  

Ele está me devolvendo energia ao preço de varejo. Eu compro energia no atacado. 

Como seria um modelo justo?

O que ele deveria fazer é pagar pela bateria que eu sou. A empresa de distribuição de energia é uma grande bateria à disposição desse cara. Hoje está sem sol? Ele puxa da gente. Tá de noite? Ele puxa da gente. E ele não paga nada por isso. Ele deveria pagar como todo mundo paga. Não somos contra a geração distribuída até porque ela gera também benefícios, como reduzir perdas técnicas… É uma escolha. Mas do jeito que está é socialmente injusto e insustentável porque vai gerar uma escalada de preço para aqueles que não estão optantes. Há uma transferência de renda de quem não usa para quem usa.