Num dos momentos mais bonitos de Milton Bituca Nascimento, em cartaz desde 20 de março nos principais cinemas, Milton pergunta a Agostinho, seu filho adotivo, se ele gosta de tê-lo como pai.
“Me sinto a pessoa mais amada do mundo”, diz o rapaz, adotado oficialmente pelo cantor e compositor em 2017. Agostinho então devolve a pergunta e quer saber se o cantor está feliz em tê-lo como filho. “Melhor coisa que eu pedi na minha vida: um filho. Estou feliz, não era tão feliz assim,” responde.
Há muitas maneiras de se interpretar o filme da cineasta gaúcha Flávia Moraes, que durante dois anos acompanhou o cantor na turnê A Última Sessão de Música, que marcou sua despedida definitiva dos palcos.
Em meio a concertos, ela traz depoimentos de gente graúda como o maestro Quincy Jones, o saxofonista Wayne Shorter e o pianista Herbie Hancock (dois ex-integrantes da banda do trompetista Miles Davis, um dos ídolos de Milton), velhos companheiros de Clube da Esquina, e admiradores de primeira e última hora – casos de Simone, Chico Buarque, Maria Gadú e os rappers Mano Brown e Criolo e a baixista Esperanza Spalding.
Eles explicam o que Milton nunca conseguiu traduzir em palavras: a origem e a beleza de suas composições e como ela influenciou boa parte da música do século XX.
Mas cabe ao próprio Milton, ainda que nas entrelinhas, mostrar a necessidade de acolhimento que sempre permeou sua vida. Ele era o filho adotivo, a criança que não só sofreu preconceito, mas viu a mulher que o escolheu como filho ser rechaçada por acolher – como o próprio faz questão de dizer – uma “criança preta”. Isso marcou sua vida e suas escolhas.
Milton Bituca Nascimento não entra em detalhes na vida pessoal do cantor e compositor. Mas Flávia mostra, de modo sutil, um pouco da intimidade de Milton. Algumas confissões mais íntimas são flagradas enquanto ele está sentado na cama de um hotel e a câmera está posicionada na porta de entrada – como se fosse um espectador à espreita, doido para conhecer melhor o seu ídolo.
Outros fatos de sua biografia são narrados por meio de amigos e conhecidos (a ex-empresária Marilene Gondim, a cantora Maria Gadú), que comentam que muitas vezes Milton foi vítima de falsos amigos que se aproveitaram de sua carência – mais uma vez, entramos na questão do acolhimento.
Se fosse uma fábula, a história contada por Flávia de Moraes seria sobre uma pessoa que sempre buscou a felicidade – e finalmente a encontrou através do filho.
Psicologia à parte, Milton Bituca Nascimento não tem a ousadia de ser a biografia definitiva do cantor – para isso precisaria de no mínimo cinco horas. É um recorte da carreira de Bituca, em especial sua turnê de despedida, onde foi saudado por boa parte das pessoas que importam na música, em especial no universo do jazz.
Os dados biográficos são dados através de depoimentos de amigos e parceiros, como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, além dos participantes do chamado Clube da Esquina (Lô e Márcio Borges, Wagner Tiso, Beto Guedes, Toninho Horta e Ronaldo Bastos). Econômico nas palavras, Milton é “traduzido” por alguns de seus parceiros – é muito esclarecedor o momento em que os integrantes da sua banda comentam o quando o cantor gosta de improvisação e de músicos virtuosos.
A produção capitaneada por Flávia Moraes também é econômica em números musicais. As canções não surgem por inteiro, mas sim ajudam a compor a narrativa.
Nesse caso, poucas cenas são tão simbólicas quanto a que reúne Djavan, Mano Brown e Criolo para falar de Morro Velho, um hino que retrata, de maneira sensível e dolorosa, a questão racial e social que até hoje existe no País (composição que tem letra do próprio Milton, ela foi escrita ainda nos anos 1960!).
E o fato de trazer Zé Ibarra e Tim Bernardes, dois músicos da nova geração, cantando Anima – parceria de Milton e Zé Renato, do Boca Livre – soa simbólico.
Figura de ponta da MPB nos anos 1960 e 1970, Milton Nascimento passou duas décadas meio que ignorado pela geração do rock (ainda que tivesse fãs nesse flanco, como Paulo Ricardo e Renato Russo).
Nos últimos tempos, seu trabalho ressurgiu com a força e o reconhecimento que sempre mereceu. A ponto de O Clube da Esquina ser aclamado como o melhor disco de MPB de todos os tempos, numa votação liderada pelo jornalista Ricardo Alexandre.
Milton Nascimento, o artista e o ser humano, finalmente recebeu o acolhimento que lhe era devido. E que felicidade nossa Flávia Moraes ter registrado isso.