Uma nova regulação do Banco Central ameaça criar um pesadelo operacional para as empresas de tecnologia que operam ‘marketplaces’ — os ambientes online onde são transacionados serviços e produtos de terceiros — destruindo valor em nomes como iFood, Uber, 99Taxi, EasyTaxi, Peixe Urbano, Groupon, e afetando até empresas maduras como Mercado Livre, Netshoes, B2W e Magazine Luiza.

A nova regulação atinge todas as empresas que recebem do cliente por cartão de crédito e repassam fluxos de pagamento a terceiros.

Hoje, as transações entre um cliente, um aplicativo e o sistema bancário se dão por meio de uma série de TEDs e DOCs — milhões ao dia — que têm um custo para as empresas.  No novo sistema, programado para entrar em vigor em 4 de setembro, o BC quer que todas as transações sejam liquidadas por uma instituição privada, a Câmara Interbancária de Pagamentos (CIP), que já liquida boa parte da movimentação financeira do País.  Em tese, essa liquidação centralizada pode até reduzir os custos de transação das empresas, mas sua implementação é complicada e pode impor um ônus insuportável para algumas delas.

Por exemplo, para ser homologada pela CIP e ter acesso à liquidação centralizada, cada empresa terá que ser capaz de compartilhar seus dados na mesma linguagem de programação usada pela câmara.  Para conseguir isso, ou as companhias usam seus times internos de TI para fazer seus dados ‘conversarem’ com a CIP — gastando tempo que deveria ser gasto no desenvolvimento de produto — ou terão que contratar os serviços de uma empresa recomendada pela CIP.  Esta empresa, a RTM, oferece o link de acesso à CIP e um serviço conhecido como VAN, que transforma os documentos do cliente numa linguagem que a CIP reconhece.  De uma forma ou de outra, esta adaptação gera um custo.

Outro custo é o de compliance.  Com a nova regulação, a CIP está jogando o ônus de compliance em cima das bandeiras de cartão de crédito, conhecidas no jargão do setor como “instituidores de arranjos de pagamentos”.

“É como se a CIP dissesse à Visa:  ‘Visa, eu não conheço o 99Taxi, mas eu conheço você.’” Para não assumir os riscos de contraparte das empresas, a Visa vai obrigar as empresas de marketplace a assinar um contrato de ‘facilitador de pagamento’ — essencialmente o mesmo contrato que a Visa tem com uma grande credenciadora como a Cielo ou a Rede.  Este contrato tem, inclusive, cláusulas para garantir que a empresa não está compactuando com lavagem de dinheiro ou corrupção.

“Como é que uma empresa pequena como a maioria das startups vai se adequar a um negócio desse?” pergunta o executivo de uma empresa. “Gente que mal tem faturamento vai ter que abrir uma área de compliance?”  (Enquanto a Visa optou por oferecer aos marketplaces o mesmo contrato que ela celebra com as grandes, a Mastercard está tratando os marketplaces como ‘participantes não licenciados’, com um contrato simplificado de 13-14 páginas. Ainda vai doer, mas vai doer menos.)

Um outro problema: a metodologia empregada pela RTM para precificar o custo de acesso à CIP é baseada no número de transações, e não no faturamento da empresa. Assim, se o Magazine Luiza vende um refrigerador por R$ 5.000 e o iFood vende 5.000 coxinhas a R$1 cada, apesar do faturamento igual, o custo de acesso do iFood será exponencialmente maior.

“A dúvida é se o custo de conformidade com as novas regras permitirá que as empresas continuem operando como operam hoje ou se isto vai criar um ônus que impeça o surgimento de novas startups,” diz um executivo de uma empresa afetada.

Como cada marketplace tem um modelo e uma inovação específica, e como as centenas de empresas afetadas têm portes diferentes, os impactos sobre as empresas acontecem em graus variados.

Um outro fator que pode causar estrago no balanço das empresas é a perda do ‘float’: a aplicação financeira do pagamento já efetuado pelo cliente e ainda não repassado ao fornecedor. Como o contrato das bandeiras estabelece que o fornecedor tem que receber em (na maioria dos casos) até 32 dias, empresas que se financiam com o fornecedor em prazos mais longos perderiam uma receita importante.  

O pior caso é o das empresas de compra coletiva, como Peixe Urbano e Groupon.  Boa parte do faturamento destas empresas hoje são os vouchers que o cliente compra mas não resgata.  Hoje, esse faturamento vira lucro na veia; mas quando a liquidação for centralizada, eles receberão apenas a sua comissão, e o provedor do serviço ou produto vendido receberá sua parte mesmo que o cliente não apareça para usufruir o serviço.

Sub-adquirentes como PayPal, Moip e MercadoPago, que pertence ao Mercado Livre, também sofrerão. Terão um aumento de custo imediato para viabilizar a liquidação centralizada. Mas, no longo prazo, vão economizar muito com tarifas bancárias que deixarão de ser cobradas, o que os tornará mais competitivos.

A nova regra não surgiu do dia pra noite, mas até essa semana, “90% do setor não estava sabendo da regra e não começaram a se adequar,” disse Vitor Magnani, o executivo do iFood que entendeu o impacto e começou a mobilizar o setor para engajar o BC numa discussão.

Agora, sob a liderança do iFood, as empresas estão formando um grupo de trabalho para mostrar ao BC os problemas que a nova norma cria, e a interlocução já começou. Uma reunião com o BC está marcada para 14 de junho.  Segundo Magnani, o regulador já se mostrou sensível a fazer mudanças se a implementação da nova regra se mostrar muito onerosa.

Apesar de alguns problemas já terem sido mapeados, o custo operacional de implementação da nova regra ainda é incerto porque há diversas variáveis ainda desconhecidas.

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Com todos esses problemas já mapeados, e sabendo-se que as empresas de tecnologia produzem inovação e injetam concorrência na economia, a pergunta é: “Por que o BC vai mexer num time que está ganhando?”

“O grande objetivo do BC é reduzir o custo transacional para todas as instituições de pagamento, que hoje acabam pagando muita tarifa bancária ao liquidar as transações,” diz Edson Santos, especialista em meios de pagamento e advisor de várias fintechs.

Pelo menos no papel, a proposta atual do BC é um avanço incremental no controle do risco sistêmico brasileiro. Há alguns anos, quando não havia uma liquidação centralizada, o dono de um recebível poderia ir a três bancos diferentes e oferecer o mesmo crédito em garantia de empréstimos, cometendo uma fraude.  Para combater este risco, o próprio mercado começou a concentrar a liquidação das principais bandeiras (Visa, Mastercard, Amex) na CIP, o que aumentou a segurança do sistema.

O único participante dos meios de pagamentos que ainda permanece fora da liquidação centralizada são os chamados sub-adquirentes — empresas como Mercado Pago e Moip — e as empresas de internet conhecidas como ‘marketplaces’.

“Todas as transações das grandes bandeiras já são liquidadas pela CIP, mas a hora que você liquida um marketplace ou um subadquirente, você tem um intermediário no meio e não enxerga o destinatário final,” diz Giancarllo Melito, professor da FGV e especialista em meios de pagamento há 11 anos no escritório Barcellos Tucunduva Advogados.  “A CIP enxerga que foi liquidada uma transação do Uber, do iFood, mas esses não são o destinatário final.”

Para ele, “a idéia inicial do BC era regular o subadquirente, e os marketplaces entraram junto porque eles também não são os destinatários finais do dinheiro.”

Para Melito, o avanço da regulação “tem dado chance pra muita fintech crescer.  Antes, como não havia regulamentação nenhuma, as pessoas só confiavam em quem era grande. Hoje, como há regulação, é possível confiar nos pequenos também.”

Falta só garantir que a regulação avance sem sufocar as empresas que representam a inovação numa economia desesperada por isso.

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Numa teleconferência com o BC na terça-feira, um representante da EasyTaxi comparou as empresas de marketplace com os radiotáxis e salões de beleza.  Em todos estes casos, os clientes pagam com cartão e as empresas têm prestadores de serviço autônomos dentro de suas estruturas.  O executivo da EasyTaxi ponderou que a única diferença entre um salão de cabelereiros e uma central de rádio táxi, de um lado, e os aplicativos de internet, de outro, é que os últimos operam no ambiente online. As empresas então perguntaram ao BC se a nova regra valeria também para aqueles tipos de comércio offline.  

Os representantes do BC apertaram a tecla ‘mute’ e, quando voltaram, não houve uma resposta satisfatória.

Um empreendedor que já tem um negócio grande desabafa:  “No geral, essa regulamentação é ruim para todo mundo, desde as empresas estabelecidas até o garoto que tem o sonho de empreender e criar uma empresa de internet. Se essa regra existisse desde 2010, com certeza mais de metade das maiores startups de hoje não existiriam, não no seu modelo atual. Nós aqui teríamos que ter 50 pessoas trabalhando no financeiro. As regras engessam.”

Para pessoas próximas às discussões em Brasília, o BC só cometeu um erro, mas um erro grande.  

“O prazo de adequação já era conhecido, mas o BC só incluiu a figura do marketplace há dois meses atrás e só formalizou isso durante um fórum em Brasília há duas semanas. O BC chamou as bandeiras e disse, ‘Queremos que vocês incluam os marketplaces também.’ Eles erraram por não conhecer a complexidade e as idiossincrasias destes modelos de negócio.”

Felizmente, como o BC nunca teve compromisso com um erro, ainda há tempo de voltar atrás.