O meio cultural está em polvorosa desde que as concessionárias de aeroportos resolveram ditar o que é uma atividade cultural. 

O motivo da celeuma: a interpretação do termo “cívico-cultural” numa portaria que garante custos menores de armazenagem para cargas especiais destinadas a eventos comprovadamente “científicos, esportivos, filantrópicos ou cívico-culturais”. 

Há pelo menos 17 anos, a tarifa para essas cargas especiais é cobrada sobre o peso. A regra consta da “Tabela 9” do Anexo 4 do contrato de concessão dos aeroportos. Hoje o valor é R$ 0,15 por quilograma.

Já as cargas importadas para fins puramente comerciais são regidas pela “Tabela 7”: um percentual sobre o valor CIF (custo, seguro e frete) do bem.
 
A SP-Arte, a exposição de galerias de arte nacionais e internacionais que acontece esta semana em São Paulo, e na qual as obras são colocadas à venda, foi pega de surpresa ao ter que arcar com R$ 160 mil de ‘handling fees’ em Guarulhos, quando o esperado seria algo na casa de centenas de reais. 

Para Guarulhos, as obras da feira não são carga “cívica-cultural”. 

Uma guerra de liminares e depósitos em juízo deu um desfecho favorável às galerias na última sexta-feira, mas o incidente está gerando enorme incerteza no meio cultural, e ameaça deixar o país de fora do circuito de grandes exposições, shows e concertos. 

“Vencemos, mas a decisão é restrita ao meu caso. Outros eventos podem estar sujeitos a esse tipo de extorsão”, diz Fernanda Feitosa, idealizadora e diretora da SP-Arte. “É uma situação tão incerta quanto arbitrária.”

Na Cultura Artística, que promove concertos de música clássica, os organizadores temem surpresas quando tiverem que liberar os instrumentos da Orquestra de la Suisse Romande no mês que vem. No final do ano passado, Viracopos tentou enquadrar outra orquestra na Tabela 7, mas acabou recuando.

“Parece que os operadores de aeroportos no Brasil estão tentando impor suas próprias taxas sobre a importação de produtos. Isso não faz nenhum sentido comercial. Taxação tem que ser deixada para governos, não para operadores privados de aeroportos”, diz o despachante internacional especializado em obras de arte Fritz Dietl. 

“Vocês verão uma queda nas exposições e eventos culturais ou mesmo cancelamentos caso não consigam reverter essa nova tabela.”

Para variar, o Brasil está na contramão do mundo. Enquanto aqui apenas as exceções (cargas para eventos científicos, esportivos, filantrópicos ou cívico-culturais) pagam tarifa baseada no peso, no resto do mundo isso é a norma. Em outras palavras: importação, permanente ou temporária, independentemente da natureza da carga ou do fim a que se destina, paga nos aeroportos tarifa de manuseio ou armazenagem baseada no peso. 

Os organizadores de uma exposição com obras de museus da Holanda calculam em US$ 900 mil o custo da tarifa aeroportuária caso tenham que pagar pelo valor da obra, e ameaçam cancelar se não houver garantia jurídica.

“O que já estava difícil está se tornando impossível”, diz a galerista Márcia Fortes, sócia da Fortes D’Aloia e Gabriel, que participa de muitas feiras de arte fora do Brasil. Com a crise no país, a participação em feiras no exterior – nas quais se vende a arte brasileira para colecionadores de fora – passou a ser uma importante fonte de receita para os marchands. 

O termo “cívico-cultural” entrou na regulação dos aeroportos quando o setor era regido pela Aeronáutica. O “cívico” sempre foi interpretado como um apêndice sem importância, pois até então todos os eventos culturais, fosse uma Bienal de artes, um concerto de orquestra ou um show de rock, eram quase automaticamente enquadrados na Tabela 9. 

A medida sempre foi aplicada não apenas para cargas culturais que chegam pelos aeroportos e ficam temporariamente no país, mas também àquelas que saem para participar de eventos no exterior e precisam retornar. 

Ao redigir as regras para a concessão à iniciativa privada, ninguém no governo se importou em atualizar a expressão cívica. Como parece não existir documento oficial com a definição de “cívico-cultural”, os aeroportos resolveram decidir por conta própria, tendo como premissa a única que realmente lhes cabe: maximizar a receita. 

Na disputa, o mundo da arte tem o Ministério da Cultura ao seu lado. Mas uma reunião realizada na Anac na segunda-feira ficou na boa vontade. O ministro Sérgio Sá Leitão ouviu da Anac que “eventuais definições sobre o tema devem ser objeto de política pública a ser discutida em âmbito ministerial”. Sá Leitão propôs “trabalhar em uma parceria com o Ministério dos Transportes para debater, conjuntamente, como serão cobradas as tarifas de obras e instrumentos musicais”. 

Para o ministro, o aumento da taxa traz “prejuízo irreparável para a economia criativa brasileira”, que atualmente responde por 2,64% do PIB.

A confusão só se aplica ao mundo das artes. Como o esporte está coberto nas cargas especiais, um carro de Fórmula 1, por exemplo, paga a tarifa menor.

Guarulhos argumenta que a SP-Arte tem caráter comercial e portanto não seria “cívica”.  A feira é reconhecida oficialmente pelo Ministério da Cultura por seu caráter cultural e incentivada pelo governo paulista com isenção de ICMS por seu estímulo ao turismo, movimentando R$ 300 milhões a cada ano. 

As obras que vêm ao Brasil participar da SP-Arte podem ser vendidas, mas muitas voltam a seus países de origem. Quando ficam aqui, pagam à Receita o imposto de importação de 27% do valor da venda. (Fora do período da SP-Arte, o imposto de uma obra de arte aumenta para 42-48%, mas isso é outro pesadelo.) 

O Brasil continua não sendo para principiantes.

Na foto acima, “Milles Sketckes”, de Flavio Rossi. Luis Maluf Art Gallery

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