Localizado em Westminster, no coração de Londres, a National Gallery detém uma das mais importantes coleções de arte do mundo. 

A coleção – que começou com 38 telas na fundação do museu há 200 anos – hoje conta mais de 2.300 obras. Para celebrar o aniversário, as comemorações intituladas “NG 200” incluem diversas iniciativas durante o ano e uma exposição em setembro que promete ser o blockbuster do ano: Van Gogh: Poets and Lovers.

O bicentenário diz tanto sobre a história do Reino Unido quanto da arte propriamente dita. Suas salas grandiosas incorporam a história do país em toda a sua complexidade, dos patronos e curadores ligados à escravidão, às manifestações sufragistas, passando pelas duas guerras mundiais. 

Reflete igualmente a estarrecedora exclusão feminina na história da arte mundial: são apenas 21 quadros de mulheres pintoras – ou seja, menos de 1% da coleção. 

O museu enfrenta a falta de representatividade abertamente com textos educativos, vídeos e debates, na tentativa de mudar o futuro ao encarar o passado. 

O acervo foi construído ao longo dos anos graças ao apoio do governo e da elite inglesa. John Maynard Keynes, um dos maiores economistas da história e membro do Bloomsbury Group (o grupo de intelectuais formado por Virginia Woolf e pelo crítico de arte Roger Fry, entre outros), teve um inusitado papel na aquisição de obras relevantes para o museu. 

Em 1918, foi a leilão em Paris a coleção de arte do pintor Edgar Degas. O diretor artístico do museu, Sir Charles Holmes, ficou interessado nas obras, mas no meio da guerra não existia financiamento público para as artes. 

Keynes era assessor do governo inglês, responsável por ajudar a equilibrar as contas públicas, e foi procurado por Sir Holmes e artistas entusiasmados com a oportunidade única. Convencido, Keynes bolou uma estrutura financeira para arrecadar os fundos necessários.  

Enquanto a guerra acontecia nas trincheiras do norte da França, Keynes e Holmes viajaram para Paris com 20.000 libras em notas francesas da época. Quando o leilão começou, o barulho dos tiros de canhões alemães vindos de uma linha férrea assustou a todos. A sala rapidamente se esvaziou e o leilão foi acelerado, permitindo a Keynes levar as melhores obras pelo preço mais baixo.

O diretor da National Gallery só não gostou de uma obra de Cézanne (considerada muito de vanguarda na época) chamada Paisagem-morta com Maçãs, que Keynes resolveu comprar para si próprio. 

Quando o economista morreu, o quadro espetacular e toda sua coleção particular foram doados ao museu Fitzwilliam, da Universidade de Cambridge. O quadro é considerado uma das mais célebres naturezas-mortas do pintor francês. 

Já as sete “barganhas” que foram escolhidas pela dupla estão expostas nas salas mais visitadas da National Gallery e marcam o início da coleção de arte moderna inglesa. 

A Execução de Maximiliano, de Manet, cortada no século XIX e agora parcialmente remontada, é uma pintura impressionante. Como também são Um Retrato do Barão Schwitter, de Delacroix, uma pequena pintura de Édipo e a Esfinge, de Ingres, e Pedaço de Flor, de Gauguin. 

Sem a estratégia financeira e a participação corajosa in loco de Keynes, nenhuma dessas obras-primas estaria em exposição no Reino Unido.

 Já na Segunda Guerra, o museu foi esvaziado por seu então diretor Sir Kenneth Clark, uma das figuras mais marcantes no meio cultural inglês. A ideia era enviar o acervo para o Canadá, mas Churchill não permitiu que nenhuma obra deixasse a ilha. 

O plano secreto foi elaborado pela inteligência militar, que identificou uma fábrica desativada no norte do País de Gales como o esconderijo ideal. Como o lugar era muito úmido, o exército inglês desenvolveu uma nova técnica de conservação, que acabou sendo usada por todas as instituições inglesas por anos. 

Clark dirigia um museu vazio, mas se recusou a fechar as portas para o público. Sem obras nas paredes, criou uma série de concertos musicais. A pianista Myra Hess, que tocou lá várias vezes, dizia que a música tinha devolvido ao imóvel seu verdadeiro propósito: o de proporcionar que a população desfrutasse do belo.

 Os concertos eram um refúgio de sanidade em um mundo em colapso, e fortaleceram a resistência dos londrinos. Na mesma época, Clark instituiu uma atração adicional: tirava do esconderijo do País de Gales uma obra por mês, criando o projeto “Picture of the Month”, uma tradição mantida até hoje (disponível online também).

Outra figura fundamental na história da National Gallery foi Jacob Rothschild, que serviu como chairman entre 1985 e 1991 e morreu este ano. 

Ele foi responsável pelos recursos para a construção da Sainsbury Gallery, cujo design contemporâneo foi criticado na época por muitos, inclusive pelo agora Rei Charles. (Hoje o espaço é usado para exposições temporárias que formam filas em Trafalgar Square.) 

Londres tem um custo de vida altíssimo, e ter um acervo dessa qualidade com visitação gratuita é um presente a residentes e visitantes. 

Perto de uma estação de metrô movimentada, não muito longe da City e das faculdades LSE, UCL e Kings College, centenas de pessoas param na National Gallery antes de voltar para casa. Desde o ano passado, as exposições temporárias, cujo ingresso custa mais de R$ 100, disponibilizam datas gratuitas como forma de ampliar o acesso. A maioria dos frequentadores do museu nunca tinham ido a uma exposição paga até essa iniciativa entrar em vigor.  

Nesses dois séculos, tanto governantes quanto a elite inglesa mantiveram o museu como patrimônio nacional. Não há debate ideológico que coloque em xeque a prioridade dada à cultura. A sociedade britânica parece pactuar com a ideia de Albert Camus: “Sem cultura, e a liberdade que ela pressupõe, a sociedade, por mais perfeita que seja, não passa de uma selva.”