Três anos atrás, Elon Musk foi ao Saturday Night Live e fez a seguinte piada, “Eu reinventei os carros elétricos e estou enviando pessoas para Marte num foguete espaçonave. Você achava que eu também seria um cara tranquilo e normal?”

Na excepcional biografia de Musk, escrita por Walter Isaacson – o biógrafo de Steve Jobs, Benjamin Franklin e Leonardo da Vinci – vêm à mente as figuras de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Apesar de não haver esta referência em suas 656 páginas, o autor não resiste à (óbvia) comparação em entrevistas logo após a publicação do livro.

Musk nunca foi um típico CEO, um cargo que exerce apenas por considerar o único caminho para forjar uma cultura que questiona cada detalhe, controla com mão de ferro o design e a engenharia dos produtos e imprime um ritmo alucinante de trabalho.

Musk já fumou maconha na frente das câmeras, desafiou Mark Zuckerberg para uma luta num ringue e está frequentemente em disputa com governos dado o seu desprezo por regulações e uma defesa da liberdade de expressão (quase) absoluta. A atual disputa com Alexandre de Moraes é apenas mais um capítulo de um histórico de polêmicas que o projeta sob os holofotes, onde gosta de estar.

O respeitável Dr. Jekyll é o Musk empreendedor genial, de energia inesgotável, com conhecimento profundo dos menores detalhes de cada negócio e capaz de realizar feitos incríveis como criar duas companhias que mudaram o mundo. Por outro lado, Musk também é impulsivo — por vezes temerário – atormentado, cruel, de personalidade oscilante e também capaz fazer coisas imorais e brutais, como o Mr. Hyde. 

Quando um usuário do X perguntou se Elon era bipolar, ele respondeu que sim. Isaacson relata que “Musk passou por períodos em que oscilava entre depressão, estupor, vertigem e energia maníaca. Ele ficava num péssimo humor, que o levava a transes catatônicos e a uma paralisia depressiva. Então, como se um interruptor tivesse sido ligado, ele ficava tonto e repetia esquetes antigos de Monty Python que incluíam jeitos esquisitos de andar e debates malucos, e aí explodia numa risada vacilante.”

Todos lutamos contra os nossos monstros internos, mas os de Elon frequentemente ganham as batalhas. Como ensinou Freud: a loucura é, sobretudo, uma questão de grau.

Isaacson teve um raro privilégio para um biógrafo: acompanhou o biografado por três anos em viagens e reuniões, com acesso irrestrito a pessoas e espaços, e sem que Elon tivesse acesso ao produto final antes de sua publicação. O resultado é um ângulo singular para uma biografia brutalmente sincera.

Nascido em Pretória, na África do Sul, Elon teve uma estrutura familiar precária, um pai abusivo e uma adolescência sofrida. Possivelmente como fuga de uma dura realidade, mergulhou fundo na leitura, especialmente de ficção científica. Foi marcado profundamente por ​​O Mochileiro das Galáxias e aprendeu a programar sozinho, encontrando refúgio num mundo binário.

Emigrou para o Canadá com sua mãe trabalhando em subempregos e a família toda dividindo um apartamento (alugado) de um quarto. Nesta época, trabalhou numa serralheria e numa fazenda. Mais tarde entrou na faculdade e conseguiu uma transferência para estudar na Universidade da Pensilvânia, onde se graduou em economia e física em 1997. Foi aceito para um PhD em Stanford, mas declinou dois dias depois para empreender no Silicon Valley. 

Aos 31 anos Elon já havia vendido uma startup, a Zip2 e fundido outra – a X.com – com um concorrente, dando origem ao Paypal. Com mais de US$ 100 milhões no bolso, apostou tudo para fundar a SpaceX naquele mesmo ano. Dois anos depois, comprou uma participação majoritária na Tesla, uma startup cujo carro elétrico estava só na prancheta.

Stefan Zweig disse que alguns empreendedores têm uma “vontade diabólica” de realizar, como Cyrus Field, que lançou o primeiro cabo de telégrafo transoceânico, uma epopéia que começou em 1857 e foi acompanhada de perto por todo o mundo em três tentativas épicas ao longo de uma década. 

Field se lançou neste desafio sem ter qualquer expertise no segmento, sem tecnologia disponível para tal fim e contra as previsões de todos os grandes físicos da época. A distância a ser coberta era 100 vezes maior que a do maior cabo da época, que conectava a Europa continental ao Reino Unido. 

Em sua primeira tentativa, a Atlantic Telegraph Company, fundada por Field, usou todo o estoque de cobre da Inglaterra, levou um ano apenas para enrolar os cabos na polia do HMS Agamemnon, um dos maiores navios da época, cedido pelo governo britânico. 

Na sua partida, a expedição contou com a presença de 10.000 populares em terra e uma procissão festiva de 1.800 embarcações no mar. Ao narrar brilhantemente essa história no livro Momentos decisivos da humanidade, Zweig diz que apenas uma vontade diabólica permite a alguém perseguir desafios tão grandes e com tamanha persistência, mesmo diante de dificuldades aparentemente intransponíveis.

Considerado um empreendedor-herói nos dois lados do Atlântico, Field enriqueceu com a operação do cabo transoceânico. Mas seu posterior envolvimento em investimentos controversos e um estilo de vida extravagante o levaram a perder tudo e viver seus últimos anos recluso em sua pequena cidade natal, possivelmente engolido por seus monstros. 

Nos jornais de Nova York circulavam rumores de que estaria insano, o que seus familiares negaram.

Musk tem a vontade diabólica dos grandes realizadores que movem o mundo. A partir de uma startup conseguiu emplacar o carro elétrico em escala industrial, iniciativa então recém-abandonada pela Ford. O resto é história. 

Lançou foguetes, questionando toda a indústria aeroespacial e desafiando os protocolos de uma maneira que beirava a irresponsabilidade. O objetivo era aprender rápido com as explosões esperadas, corrigir e lançar novas versões dos foguetes até acertar. 

Acertou. Hoje é o maior transportador de carga para o espaço – a uma fração do custo da era do ônibus espacial da NASA – e o maior lançador de satélites do planeta, sem falar que a ISS (a estação espacial internacional) depende dele para levar e trazer astronautas e suprimentos.

Mas Elon também é frágil como o menino que viveu em Pretória. 

Às vésperas do lançamento do terceiro foguete da SpaceX, que havia consumido todo o caixa da empresa, o fundador estava tendo mais uma de suas recorrentes crises de estômago, a ponto de quase vomitar enquanto todos faziam a contagem regressiva. (Ninguém sabe o que verdadeiramente se passa por trás dos grandes feitos e o preço emocional que se paga por eles.) 

Num de seus momentos mais difíceis, Elon viu a Tesla e a SpaceX na iminência de quebrar e implorou por dinheiro aos amigos para pagar a folha da Tesla. A família da noiva, sem grandes posses, ofereceu a hipoteca de sua própria casa para ajudar. Ainda estava recém divorciado, com cinco filhos (hoje são onze) e sem residência fixa, um problema recorrente na sua vida. 

A tensão o fazia ter terror noturno: acordava e passava madrugadas no banheiro, gritando e vomitando.

Elon parece estar sempre em busca do reconhecimento que não teve do pai, e pauta sua vida por isso. Tem uma necessidade permanente de provar seu valor e de estar sob os holofotes, e para isso toma riscos desmedidos e se envolve permanentemente em polêmicas e dramas.

O tema de seu aniversário de 42 anos foi steampunk japonês, um subgênero da ficção científica. Elon estava vestido de guerreiro Samurai e, depois de aceitar que um atirador de facas vendado acertasse um balão de festa em sua virilha, o clímax foi uma demonstração de sumô onde um campeão de 160 quilos convidou Elon para “lutar.”

Ao perceber que o lutador estava apenas brincando com ele, como esperado, Elon decide surpreendê-lo e (deslealmente) derrubá-lo, aplicando um golpe de judô com toda sua força apenas para se mostrar aos amigos. 

O resultado para Musk foi o comprometimento permanente de dois discos intervertebrais na base do pescoço. Desde então, já fez três cirurgias sem sucesso e convive com fortes dores a ponto de realizar reuniões deitado no chão com gelo na base do pescoço.

Musk tem de forma exacerbada e (quase) doentia características comuns a muitos empreendedores de sucesso: o poder de articular uma visão e atrair pessoas talentosas para segui-la de forma quase messiânica, um inconformismo manifestado pela rejeição das “coisas como elas são,” um foco obsessivo na resolução dos problemas e uma intensidade de trabalho alucinante.

Quem empreende sabe que a liderança precisa ser exercida em todos os níveis, a batalha se vence nos detalhes (você não conhece nada de sua empresa se não a conhece profundamente) e na intensidade do trabalho. Musk leva isso com maestria e chama a si mesmo de “nano manager” por se envolver nos mínimos detalhes. Pergunte a ele sobre um detalhe de engenharia de um motor da Tesla ou de um foguete da SpaceX e você receberá um minucioso tutorial, transmitindo a segurança de um líder visionário que sabe exatamente o que está fazendo.

Elon se move por grandes missões e não faz plano de negócios, inicia o negócio e depois busca um caminho de viabilizá-lo financeiramente. Na SpaceX, trata-se de permitir que os humanos vivam em outros planetas. Tudo o que realiza antes (como lançar uma rede de mais de 5 mil satélites oferecendo internet em qualquer canto do planeta, a Starlink) é um mero objetivo intermediário para viabilizar sua visão. Embarcou no Twitter acreditando estar lutando pela liberdade de expressão, algo que se mostrou bem mais complexo que seu habitat natural de zeros e uns.

Uma outra característica é estabelecer prazos irreais – sem combinar com ninguém — como forma de pressionar e motivar o time a alcançar sua visão. O carro completamente autônomo da Tesla foi prometido para até 2017 mas não está funcional até hoje, apesar dos notáveis avanços especialmente nos últimos anos quando mudou a abordagem para o uso intensivo de inteligência artificial.

Por outro lado, existe o Elon Musk que demite de forma cruel um jovem engenheiro, que era seu grande fã, em uma de suas vistorias na linha de produção da Tesla, pelo simples fato de não conseguir responder a perguntas técnicas, talvez pelo nervosismo que ele mesmo gera em seus interlocutores. A grande maioria dos funcionários evita o contato visual para escapar da sua fúria e crueldade. Musk também tem o péssimo hábito de apontar culpados publicamente (e, muitas vezes, equivocadamente), humilhando seus funcionários. 

Musk diz ter síndrome de Asperger, o que o impediria de ter empatia, mas entende isso como uma vantagem no mundo dos negócios, pois acredita que qualquer afetividade na relação profissional impede que se obtenha o máximo dela. Em suas palavras: “querer ser amigo de todo mundo faz com que você se importe mais com as emoções das pessoas na sua frente do que com o sucesso do empreendimento como um todo.”

Elon desafia a todos, faz tudo a sua maneira e está sempre disposto a ir às últimas consequências para provar seu ponto. Logo após a aquisição do Twitter, hoje o X, ele promoveu a demissão de 75% do pessoal – sem prejudicar a continuidade nem disponibilidade do serviço – e revirou todas as pedras. Em uma reunião, em um 22 de dezembro, decidiu mover 5.200 racks de servidores de um datacenter baseado em Sacramento, Califórnia, para o de Portland para economizar 100 milhões de dólares por ano. 

O time estimou que o projeto levaria de 6 a 9 meses. Elon, indignado, deu duas semanas para executarem, caso contrário todos seriam demitidos, ameaça que faz usualmente. No dia seguinte, Elon decolou seu avião rumo a Austin para passar o Natal com a família. No meio do voo, atormentado, Elon pede a seu piloto que mude a rota para Sacramento. 

Ao chegar no aeroporto da cidade, coloca seu segurança na direção, sua esposa no seu colo e aperta o resto do time no banco de trás de um Corolla alugado rumo ao datacenter. Depois de uma luta para obterem acesso numa visita inesperada e inusitada, Elon chega até as máquinas do “X” e decide começar a mudança imediatamente, cortando os fios com um canivete do primeiro dos 5200 racks de 1 tonelada e empurrando pelos corredores. Assim é Elon Musk.

Michael Marks era um experiente e bem sucedido investidor da Tesla que Musk convidou para ser o seu CEO, o que não funcionou por muito tempo. Marks foi perguntado por Isaacson sobre a relação entre o comportamento de Musk e seu sucesso como empreendedor: “Se o preço que o mundo paga por esse tipo de realização é ter um imbecil completo por trás disso, bem, provavelmente é um preço que vale a pena pagar,” disse ele.

Elon tem a força para mover o mundo adiante, mas está permanentemente lutando contra seu monstro interno que teima em vir à tona e o faz reproduzir a crueldade do seu pai que tanto repugna e chora ao lembrar. As consequências são nefastas para si mesmo e para aqueles que estão ao seu redor.

O sucesso e a glória podem ofuscar essa montanha de sofrimento, mas ela é tão real quanto os méritos do empreendedor. Sua loucura é indissociável de sua genialidade e é o preço que todos pagamos, alguns mais outros menos, pelos avanços que ele traz ao mundo. Quantos outros gênios já não brindaram o mundo com a sua obra e nos espantaram com a sua loucura? Elon Musk é mais um desses.

Guilherme Pacheco é empreendedor e investidor em tecnologia, foi co-fundador do Bondfaro, da Mosaico e da Tessera Ventures.