Em mais de 50 anos de vida acadêmica, José Alexandre Scheinkman fez contribuições inestimáveis à ciência econômica. O conjunto de sua obra é de tirar o fôlego.
Da Teoria do Crescimento Econômico à Organização Industrial, de Finanças e Bolhas Especulativas à Economia Urbana e Interação Social, sua pesquisa já recebeu quase 50.000 citações científicas.
Esta série de quatro artigos que o Brazil Journal começa a publicar hoje busca reconhecer o escopo e mensurar o legado deste cientista brasileiro.
Após concluir seu doutorado em 1974, Scheinkman foi contratado como professor assistente no Departamento de Economia da Universidade de Chicago, onde passaria os próximos 26 anos. Em 1999, trocou Chicago por Princeton, onde ficou até 2013, quando foi para a Columbia University, em Nova York.
Um de seus alunos de doutorado, Paul Romer, ganhou o Nobel pelos estudos sobre crescimento econômico. Outro, Edward Glaeser, professor de Harvard, tornou-se o principal pesquisador sobre os temas de economia urbana. Em ambos os casos, as agendas de pesquisa começaram nas suas teses de doutorado.
Hoje com 75 anos, José Alexandre é conhecido na profissão pela sofisticação técnica e profundidade na análise dos problemas.
Alguns dos instrumentos desenvolvidos por ele, algumas vezes com coautores, permitiram a expansão tanto de pesquisas em teoria econômica como em estimações econométricas, com resultados surpreendentes.
Em todos os casos, sua contribuição se destaca por uma rara combinação de erudição com argumentos precisos que permitem verificar a robustez das conjecturas.
Os argumentos técnicos — sejam os instrumentos da matemática em diversos campos, sejam os mecanismos empíricos para identificar causalidade — estão subordinados à análise do problema econômico.
Seu trabalho é tão extenso que chega a ser difícil sistematizá-lo.
Há 10 anos, na celebração dos seus 65 anos, Columbia organizou um seminário no qual seus coautores e amigos apresentaram artigos originais tratando de temas que José Alexandre estudou.
No jantar de encerramento, com menos de 30 pessoas, havia pelo menos quatro recipientes do Nobel – alguns já agraciados na ocasião, outros que o receberiam nos anos seguintes.
Na década que transcorreu desde aquela homenagem, José Alexandre produziu nada menos que 11 artigos científicos relevantes – mais de um por ano – três dos quais foram publicados pelo Journal of Finance, a bíblia da pesquisa em finanças.
Como figura humana, José Alexandre é imensamente generoso com alunos e amigos, sempre disposto a trocar, ouvir e contribuir. Incessantemente curioso, começa com perguntas, tentando entender o problema. E a conversa acaba invadida pelo seu argumento cirúrgico, tecnicamente impecável e aberto à divergência.
Este artigo nasce de nossa gratidão e desejo de contar alguns de seus feitos e contribuições à economia.
Um exemplo simples
No começo dos anos 1980, dois resultados sobre competição entre firmas sugeriam um paradoxo e pareciam contradizer o que se observava nos mercados.
Eram resultados clássicos – ambos da segunda metade do século 19 – num ramo da economia denominado Organização Industrial, que estuda o comportamento estratégico das firmas.
No modelo de Cournot, a grande variável estratégica das firmas é a quantidade que será produzida, e os preços de mercado equilibram oferta e demanda. Na maioria das vezes – ou, como dizem os economistas, “em condições bem gerais” – as firmas obtêm lucro.
Bertrand reagiu a esse modelo propondo que, em mercados onde há poucas firmas, a variável estratégica das empresas é outra: o preço pelo qual o produto será vendido. A firma com preço mais barato vende primeiro o quanto deseja, a segunda vende a seu preço para o quanto quiser da demanda restante, e assim sucessivamente.
Mas o modelo de Bertrand gera um resultado surpreendente: em equilíbrio, as firmas não dão lucro: ficam apenas no breakeven.
A hipótese comportamental é correta (as empresas realmente escolhem o preço como uma variável estratégica), mas o resultado é estranho: como assim, em um mercado oligopolizado as empresas têm lucro igual a zero?
O modelo de Cournot gera um resultado de lucros positivos, mas tem uma suposição estranha quanto à variável de escolha das empresas: a quantidade a ser produzida, não o preço a ser cobrado.
Durante um século, alunos e professores discutiam em seus cursos esses resultados curiosos e anômalos, registrados como excentricidades, apesar de matematicamente bem simples e muito gerais, aparentemente um na contramão do outro.
Por que simplesmente trocar a variável de escolha das firmas – quantidade ou preço – pode gerar equilíbrios tão distintos?
Depois de um seminário no Departamento de Economia da Universidade de Chicago, David Kreps – um futuro ganhador da medalha Bates Clarke, o mais importante prêmio de Economia fora o Nobel – permaneceu na cidade por mais um dia. José Alexandre, seu anfitrião, o convidou para tomar café da manhã.
Em algum momento, discutindo o aparente paradoxo, os dois se perguntaram sobre o que ocorreria, pelo modelo de Bertrand, caso as empresas tivessem que, por meio de uma decisão do quanto de capacidade produtiva constituir, determinar a produção antes de fixar os preços do que iriam vender.
Entusiasmados com a conversa inicial no café, voltaram ao quadro negro e provaram, em pouco tempo, que o paradoxo seria resolvido caso as firmas tivessem que determinar a capacidade de produção antes de escolher preços: um modelo de Bertrand gerava resultados de Cournot, incluindo lucros positivos.
José Alexandre e Kreps perceberam que a diferença não está na determinação dos preços, se por meio de um “leiloeiro” que equilibra oferta e demanda, como em Cournot, ou pela escolha das firmas, como em Bertrand. Há um segundo aspecto crucial: quando as quantidades são determinadas.
No modelo de Bertrand, as firmas fixam preços e depois produzem para atender toda a demanda existente. Neste caso, o lucro é zero.
Porém, se as firmas primeiro determinam a capacidade de produção e, depois, ao se defrontar com os mercados, os preços que irão cobrar, como em Bertrand, o resultado é um equilíbrio com lucro positivo e produção como previsto por Cournot.
Quanto maior a capacidade instalada, contudo, mais próximo será o resultado daquele obtido na versão original de Bertrand, com menores preços e lucros.
Esse resultado ilustra a importância de compreender todo o contexto que delimita as decisões estratégicas das firmas.
Nada mal que, com isso, tenham explicado uma “excentricidade” que incomodara a profissão por cerca de um século. O tema não é apenas se firmas competem via preços ou quantidades a serem produzidas. Mas sim como o processo ocorre, a sequência das decisões. Isso sim determina o resultado da concorrência.
Ao contrário do que se poderia esperar, ambos não ficaram animados: o resultado era matematicamente trivial, e achavam que ninguém daria atenção. Conversaram com Sandy Grossman, um dos maiores teóricos em atividade, que lhes disse: “esse resultado está errado”.
Sandy também ganharia a Bates Clarke anos depois. Como se não bastasse, três prêmios Nobel em economia foram dados a economistas mencionando artigos que escreveram em coautoria com Sandy.
Foi quando a dupla se deu conta de que tinha de fato um resultado importante (hoje, com quase três mil citações em revistas científicas, e dos resultados mais importantes em Organização Industrial).
José Alexandre Scheinkman (“Zé Alexandre” para os amigos e “José” nos EUA) não é um economista de OI. A história do artigo com Kreps revela sua polivalência e curiosidade intelectuais, além de sua enorme capacidade de achar soluções para problemas econômicos extremamente relevantes.
Marcos Lisboa e Vinicius Carrasco são economistas.
Esta série continua aqui.