Quase três anos atrás, o editor da Intrínseca, Jorge Oakim, comprou a ideia da repórter Maria Luíza Filgueiras de publicar uma biografia da XP Investimentos.

Com o IPO da corretora marcado para daqui a um mês, o timing da Intrínseca não poderia ter sido melhor.

“Na Raça: Como Guilherme Benchimol criou a XP e iniciou a maior revolução do mercado financeiro brasileiro” (240 páginas, R$ 49,90) pode ser encomendado a partir de hoje e deve estar nas livrarias em 26 de novembro, a tempo para ver Guilherme Benchimol tocar o sino da Nasdaq.

Com mais de R$ 300 bilhões sob custódia, milhares de agentes autônomos e mais de 2 milhões clientes pessoas físicas, a XP saiu de uma sala de 25 metros quadrados para se transformar numa empresa que vale dezenas de bilhões de reais, o que certamente faz dela a maior história de empreendedorismo do Brasil da última década.

Uma das repórteres de negócios mais competentes de sua geração, Filgueiras, que passou pela Gazeta Mercantil, EXAME e hoje está no Valor Econômico, entrevistou mais de 60 pessoas e gastou pelo menos um quinto do tempo entrevistando Benchimol.

No prefácio, Jorge Paulo Lemann nota que “todo empreendedor bem sucedido é um fanático” e supercompetitivo, tece comentários sobre a cultura de partnership (que a XP tem em comum com o Garantia) e diz que está tentando aprender sobre a nova economia a partir de casos como o da XP.
 
A capa emula a da autobiofrafia de André Agassi e tem foto de Bob Wolfenson.

Abaixo, o Brazil Journal publica dois trechos do livro. O primeiro é sobre as dúvidas de Benchimol dias antes de celebrar a sociedade com o Itaú.  O segundo, sobre 2013 e 2014, dois anos difíceis para a companhia.

 

*****

São Paulo, 11 de maio de 2017

Faltavam algumas horas para o mais importante centro financeiro do Brasil acordar quando o carioca Guilherme Benchimol começou a correr pela avenida Brigadeiro Faria Lima. Às cinco e meia da manhã, com o ar de outono de São Paulo um pouco mais gelado que o habitual, ele desceu do flat onde morava, iniciou um trote lento e, quando entrou na avenida Juscelino Kubitschek em direção ao Parque Ibirapuera, acelerou. Era seu trajeto rotineiro desde 2014, quando passou a dormir em São Paulo durante a semana, após a mudança da sede de sua empresa, a XP Investimentos. A corrida tinha um valor terapêutico: a endorfina relaxava os músculos, colocava a cabeça no lugar, preparava o corpo para um dia de trabalho intenso. E aquele seria um dia particularmente intenso para ele. Estava marcada para o fim da tarde a assinatura do maior negócio da sua vida, a venda de 49,9% da XP para o banco Itaú. Um acordo que faria de Benchimol um bilionário aos quarenta anos.

Guilherme precisava mesmo da endorfina. Estava exausto após dormir uma média de quatro horas por noite na semana anterior. As negociações com o Itaú haviam sido duríssimas. Cinco dias antes, os dois lados tinham desistido do negócio, para retomá-lo em ritmo frenético em seguida. A XP seria avaliada em 12 bilhões de reais, e o Itaú, além de comprar os 49,9%, faria um aporte de 600 milhões de reais na empresa. Agora, cabia a Benchimol dizer sim, como esperado, e se tornar sócio do Itaú — ou simplesmente dizer não.

Ao terminar a primeira volta no Ibirapuera, decidiu que o trajeto normal de dez quilômetros não seria suficiente. Embalou e deu outra volta ao redor do parque. Ninguém tinha ideia do peso que afundava seus ombros naquelas últimas semanas. As conversas com o Itaú haviam sido um segredo muito bem guardado. Apenas seis sócios da XP sabiam da negociação desde o início. Para os demais sócios e funcionários, o discurso oficial era o de que a empresa faria uma operação de venda de ações na B3, a bolsa de valores brasileira. Com o IPO — sigla em inglês que significa oferta pública inicial de ações —, a XP levantaria dinheiro para investir e seus acionistas teriam a oportunidade de embolsar alguns bilhões de reais. Um dia antes, em 10 de maio, a XP tinha protocolado o registro de oferta de ações na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a reguladora do mercado de capitais. Por quase três semanas, Benchimol e seus sócios mais próximos fizeram jornada dupla: colocavam o IPO de pé durante o dia, em reuniões intermináveis com banqueiros e investidores, e brigavam cláusula a cláusula com o Itaú madrugada adentro.

Mas não eram apenas o segredo e o desgaste físico que atormentavam Benchimol. A verdade, que não teve coragem de compartilhar com ninguém, é que ele não tinha convicção de que a venda para o Itaú era o melhor para a XP. Os méritos do negócio pareciam claríssimos. Ter o maior banco privado do Brasil como sócio representava, para a XP, um definitivo selo de qualidade, dando aos clientes mais reticentes a segurança necessária para deixar seu dinheiro investido lá. E o Itaú garantia a Benchimol e seus sócios autonomia para tocar a XP como bem entendessem. Em suas conversas com os sócios mais próximos, ele defendia de forma calorosa a sociedade com o Itaú. Mas, no fundo, nem ele sabia direito se aquele era o caminho certo.

Ao longo dos anos, a XP centrou todo o seu discurso num ataque feroz aos bancos e à forma com que investem (mal) o dinheiro dos poupadores brasileiros. Essa narrativa era a razão de ser da empresa. Como explicar, agora, que justamente o Itaú seria o dono de 49,9% da XP? Guilherme sabia que a transação seria vista por muitos como uma traição. A devoção dos funcionários da XP a essa guerra santa contra os bancos era tanta que alguns chegaram a chorar diante dos chefes quando souberam da negociação que se dava. Em casa, Ana Clara, sua mulher e sócia da XP nos primeiros anos, explicitava sua contrariedade. “Você não precisa do Itaú”, dizia a cada noite após ouvir as últimas notícias das negociações. Guilherme rebatia. Mas a verdade inconveniente é que Ana Clara tinha um argumento poderoso: aceitando a oferta do Itaú, a XP corria o risco de perder sua identidade. Virar o rebelde que aderiu ao sistema.

O sol já raiava quando Guilherme terminou a segunda volta no Ibirapuera e começou o caminho de volta para a Faria Lima. Abrir o capital e seguir sozinho, como defendia Ana Clara, era de fato tentador. Os bancos que assessoravam a XP no processo estimavam que, no melhor cenário, a empresa poderia ser avaliada pelos investidores em 15 bilhões de reais. Guilherme e seus sócios continuariam comandando o negócio, ficariam riquíssimos e não teriam de dormir com o inimigo. Mas, a cada passo que dava em direção ao IPO, Guilherme pensava: “Não é isso que eu quero para a minha vida agora.” Passar horas em apresentações com investidores em Nova York ou Londres, dar satisfações trimestrais a milhares de acionistas e se preocupar com a oscilação diária no valor das ações — tudo isso parecia a essência da perda de tempo para ele.

A venda para o Itaú, por outro lado, tornaria sua vida mais simples. Mesmo desembolsando pouco mais de 6,5 bilhões de reais, o Itaú estava se comprometendo a deixá-lo no comando da XP por ao menos outros dezesseis anos. Ele teria, assim, fôlego renovado para planos de crescimento mirabolantes. A associação com o Itaú, concluiu, faria a XP tirar ainda mais clientes do próprio Itaú. O caminho romântico seria partir para o IPO. Contudo, naquele momento, talvez não fosse o mais pragmático nem o melhor para o futuro da companhia. Depois de dar a segunda volta no Parque do Povo, nas imediações da marginal Pinheiros, Guilherme se deu conta de que passara duas horas e meia correndo. Seu relógio marcava uma distância percorrida de trinta quilômetros. Voltou para o flat, tomou banho e às oito e meia da manhã estava no escritório da XP.

— Galera — disse ao entrar —, ainda dá tempo de desistir.

Mas ele já sabia — havia chegado sua hora de fazer história.

 

———————————————————–


Tecnologia era uma questão sensível para a XP. Com a entrada de Sergio Cardoso do Grupo CMA na XP logo após a compra da Americainvest, a corretora tinha desenvolvido internamente seu sistema. Em um episódio bizarro, a CMA acusou a XP de copiar seu modelo e fez uma queixa-crime. Cardoso tinha, na verdade, criado um novo modelo, mais adaptado às transações de varejo. Novos investimentos foram feitos, mas, à medida que a XP crescia e o volume de operações aumentava, o sistema caía com o excesso de demanda. Seguia-se uma tarde infernal para os operadores, ouvindo todo tipo de palavrão de clientes e agentes autônomos e tentando executar ordens pelo telefone. Encontrar um alvo que fosse uma referência em tecnologia seria um alento.

Com uma carteira de 6,5 mil investidores e abrindo quinze contas por dia, a Clear se destacava. A negociação com a corretora deu à XP uma ideia. Aquela era uma oportunidade de fazer da XP uma operação “multimarca”. Tendo várias corretoras sob um mesmo chapéu, a empresa poderia obter as sinergias de custos com a fusão das operações, mas mantendo políticas de preços e ofertas de serviços diferentes para clientes de perfis diferentes. Claro, a aquisição seria também uma forma de evitar que um concorrente o fizesse.

O negócio foi fechado em julho por 90 milhões de reais, metade em dinheiro, metade em ações. Lee e Mason se tornariam acionistas da XP e continuariam na operação — alguns meses depois, Lee assumiu a área de tecnologia de toda a XP.

O anúncio da compra da Clear deu ao mercado uma impressão errada do momento da companhia. A XP faturava 400 milhões de reais, tinha 80 mil clientes e 12 bilhões de reais sob custódia. Além disso, estava comprando um concorrente. Tudo parecia estar bem. Mas o ano de 2014 foi o pior da história da empresa. A tensão causada pela saída de Marcelo [Maisonnave] tornou o clima pesado, sobretudo em São Paulo. O principal motivo, no entanto, foi financeiro. Pela primeira vez em seus treze anos, a XP teve uma queda de lucro, e uma queda importante.

Já em 2013 não tinham cumprido a meta estabelecida no acordo com a General Atlantic. O lucro foi de 68 milhões de reais, 2 milhões a menos que o estipulado. Cumprir a meta era necessário para que os sócios recebessem cerca de 25 milhões de reais referentes ao earn-out combinado com a GA. E boa parte desse dinheiro referia-se à venda das ações que possuíam, ou seja, dependiam do earn-out para embolsar alguma grana da transação.

— Martin, a gente não bateu a meta, mas deu o sangue, ralou para cacete, a gente merece isso.

— Se você tivesse batido a meta por acaso, por sorte, eu não ia te ligar e falar que não ia pagar porque era sorte. Não rola, Guilherme, o contrato é claro.

— Pô, Martin, ajuda a gente, cara. Eu te garanto que no ano que vem o número vai ser muito melhor. A gente tá na virada desse negócio.

Martin Escobari, após muita insistência, decidiu dar uma colher de chá e pagou o que tinha combinado. O boliviano estabeleceu ali um incentivo de médio prazo. Em dois anos, a XP teria que dobrar aquele resultado não alcançado e lucrar 140 milhões de reais. Escobari pagaria uma caixa de Vega Sicilia, o melhor vinho da Espanha (safra 1998), a Guilherme e Julio caso cumprissem o retorno estabelecido. Caso contrário, eles pagariam os vinhos a Escobari.

Em 2014, o negócio degringolou. Preparada para uma fase de crescimento acelerado, a XP inchou. Num período marcado pela turbulência eleitoral e pela depressão econômica, os resultados não apareceram. Os custos altos pesaram, e o lucro da empresa foi de 43 milhões de reais, uma queda de pouco mais de 35%. Pela primeira vez na história da XP, o lucro caía de um ano para outro. A meta era um lucro de 110 milhões de reais, o que deu ao resultado obtido cara de vexame. Após tantos anos de crescimento sem parar, aquele revés foi um trauma — será que a XP tinha perdido a mágica?

[…]

Guilherme enfrentou o vexame de 2014 dobrando a aposta. Sugeriu ao conselho de administração que a meta de lucro de 2015 fosse estabelecida tendo como base o resultado não obtido no ano anterior. A meta não batida tinha sido um lucro de 110 milhões de reais. Guilherme propôs que a meta de 2015 fosse um lucro de 140 milhões de reais, exatamente aquele sugerido na aposta do Vega Sicilia com Escobari. Ou seja, três vezes mais que o resultado de 2014.

Justificava aquela meta com uma de suas frases favoritas — é matar ou morrer.