Um pequeno comerciante do interior do Ceará, de 23 anos, ganhava a vida como motorista e abriu um negócio, um bar de espetinhos. Para funcionar, precisava pagar um ‘pedágio’ de R$ 400 por mês para a facção local.

Em agosto, o valor da extorsão subiu para R$ 1.000. O comerciante não aceitou o reajuste e entregou ‘apenas’ R$ 400. Dias depois, foi assassinado – um crime para ‘dar um recado’ à comunidade local.

“Esse exemplo do comerciante na periferia do Ceará deveria preocupar muito a Faria Lima. É a mesma lógica que vai acontecer com os empresários em todas as áreas,” o juiz criminal Carlos Eduardo Ribeira Lemos, autor do recém-lançado livro Terrorismo à Brasileira, disse ao Brazil Journal. (Compre aqui)

Com o avanço do domínio territorial do crime e sua infiltração em diversas atividades, as facções se impõem pela extorsão e pela lei do silêncio – emparedando o Estado.

“Os criminosos vão tomar os negócios, e os empresários não terão o que fazer, porque o Estado não se move,” disse Lemos. “O Estado não está preparado para fazer um enfrentamento a esse tipo de facção.”

No livro, o juiz analisa a evolução do crime organizado e sustenta que já passou da hora de o Brasil classificar as facções como organizações terroristas – o que, aliás, vêm pedindo os EUA e outros países. Sem isso, argumenta, a ação preventiva fica enfraquecida e o crime ganha território.

Lemos conhece o assunto na pele. Há quase três décadas lidando diretamente com a ação de criminosos no Espírito Santo, ele e sua família vivem sob proteção de uma escolta há 23 anos. “Meu filho mais novo já nasceu escoltado,” contou o juiz, cuja esposa por pouco não foi sequestrada.

O cuidado tem razão de ser. Em 2003, um colega de Lemos – Alexandre Martins de Castro Filho, da Vara de Execuções Penais – foi assassinado com três tiros em Vila Velha.

A execução aconteceu depois de outro assassinato a tiros também atribuído ao crime organizado: a morte do juiz-corregedor Antonio José Machado Dias, em Presidente Prudente, no interior de São Paulo.

Há duas semanas, em outro caso semelhante, o ex-delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo Ruy Ferraz Fontes, um dos primeiros a liderar investigações contra o Primeiro Comando da Capital (PCC), foi fuzilado em uma emboscada na Praia Grande, litoral de São Paulo.

“Chegou o tempo de termos olhos e mentes muito abertos para reconhecer que o Brasil já é palco de atos terroristas domésticos e ter coragem de nomear essa violência para enfrentá-la,” afirmou Lemos. “Ou então a gente vai perder essa guerra.”

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Lemos citou um estudo recente que mostra que 26% dos brasileiros moram em áreas controladas pela criminalidade. “Quando temos 50 milhões de brasileiros vivendo sob domínio de uma facção, não é democracia.”

Abaixo, o depoimento do juiz, que participará nesta quarta-feira do evento FOLLOW THE MONEY: O estrago que a economia informal causa ao Estado, à sociedade e às empresas legítimas, organizado pelo Brazil Journal.

Por que o senhor acredita que a atual legislação não é suficiente para combater o crime organizado – e por que a Lei Antiterrorismo precisa ser reformada?

Nos meus quase 30 anos na magistratura, sempre atuei em varas criminais. Durante muito tempo atuei especificamente contra facções que dominaram o sistema prisional. Vi por dentro essas facções comandando o crime, e muito me incomodava ver elas nasceram dentro dos presídios e se retroalimentam dentro do sistema prisional.

O Estado brasileiro sabe disso, porém nada fez e continua não fazendo. Vivemos numa distopia, a banalização da violência.

Não incomoda mais ver uma manchete falando que criminosos botaram fogo em um ônibus. Parece algo comum. Aqui no Espírito Santo, um estado pequeno, fizeram recentemente a apreensão de quatro fuzis. Mais um dia comum.

O meu objetivo com este livro foi justamente fazer uma provocação, fazer o leitor entender que o que a gente está passando no Brasil hoje não existe em nenhum lugar do mundo.

Há tráfico de drogas no mundo inteiro, mas o domínio territorial que as facções exercem no Brasil hoje – e domínio com armamento de guerra – não existe em nenhum lugar.

Só os deputados federais, só os senadores e só o Presidente da República podem legislar em matéria penal. Então, o que eu tento mostrar é que, realmente, a nossa Lei Antiterror é extremamente tolerante.

Foi uma lei equivocada, feita a toque de caixa para atender ao Comitê Olímpico Internacional antes da Olimpíada do Rio.

As facções deveriam ser enquadradas como organizações terroristas?

No mundo inteiro, o terrorismo significa matar, dominar, intimidar, com o objetivo de emparedar o Estado.

No Brasil, o que as facções fazem? Dominam bairros e até cidades inteiras, como agora na Bahia, no Rio Grande do Norte, no Ceará. Determinam toques de recolher naquelas comunidades, assassinam para impor a lei do silêncio. Isso que em qualquer lugar do mundo é terrorismo, aqui no Brasil é mais um dia comum.

Nos últimos dois anos, pesquisando para escrever o livro, fui várias vezes ao Rio de Janeiro. Lá vemos, de forma muito mais escancarada, esse domínio territorial por parte do Comando Vermelho, além de outras facções menores e algumas milícias.

Tive a oportunidade de ter algumas experiências que eu acho que todo magistrado deveria ter. Fui acompanhar o BOPE. Fiz amigos nas polícias do Rio, porque eu queria ver de perto o que a gente vê na TV.

Entrei em um “caveirão”, acompanhei incursões em comunidades, tomei tiro de fuzil dentro do caveirão e vi coisas surreais.

Chegando a uma comunidade, no Jacarezinho, o pessoal do caveirão falou para mim, “Doutor, observe, aqui tem uma passarela como uma ‘flecheira’ – os bunkers que eles fazem para dispor os fuzis.”

Não deu outra. Vi os três caras com fuzil, e a gente passando no caveirão, com esses caras apontando para a gente, e os policiais apontando para eles.

Depois os policiais falaram, “Vamos virar aqui e terá uma rua de contenção.”

Quando entramos, vimos uns 80 homens correndo com o fuzil na mão. Uns 80. Isso não tem em nenhum lugar do mundo.

A facção que atua no Jacarezinho não precisa comprar granada. Tem uma fábrica de granada dentro do Jacarezinho.

Essas facções têm todo esse poder bélico, todo esse domínio, e nada que elas fazem é alcançado pela nossa Lei Antiterror.

Porque a nossa lei, lá no artigo 2º, diz que só é terrorismo quando o ato é praticado por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia ou religião. Retiraram tudo que as facções fazem da definição de terrorismo.

Porque as motivações das facções são ganhar poder e dinheiro. Mas os atos que elas fazem para intimidar as pessoas e os agentes públicos não se encaixam, pela nossa lei, na definição de terrorismo.

Atos como determinar toques de recolher, queimar ônibus, assassinar agentes públicos como fizeram agora como o delegado Ruy Fontes, como mataram o juiz Machado, também em São Paulo, como mataram o meu colega Alexandre Martins aqui no Espírito Santo, como tentaram sequestrar a minha esposa.

Vivo escoltado há 23 anos. Minha família e eu vimemos sob a proteção da escolta. O meu filho mais novo já nasceu escoltado. A minha filha tinha 3 anos quando começou a andar escoltada. Ainda bem que se casou e mora no exterior. Não aguentava mais.

Meu filho ainda mora com a gente. Continuamos todos aqui, eu, minha esposa, meu filho, escoltados há mais de 20 anos. Justamente pela atuação dessas facções.

Daqui a dois anos, se eu quiser, posso me aposentar. Como vou cuidar da minha segurança e da minha família?

Parece que o Estado finge que não está enxergando. Chegou o tempo de termos olhos e mentes muito abertos para reconhecer que o Brasil já é palco de atos terroristas domésticos e ter coragem de nomear essa violência para enfrentá-la. Ou então a gente vai perder essa guerra.

Hoje as facções estão muito bem armadas, muito bem treinadas, e o Brasil está sitiado.

Saiu recentemente um estudo de pesquisadores de universidades americanas mostrando que 26% da população brasileira vive em periferias dominadas por facções criminosas. Isso não é democracia.

Quando temos 50 milhões de brasileiros vivendo sob domínio de uma facção, isso não é democracia. O pior: são os mais pobres que moram nessas comunidades, são os que mais sofrem.

Mas os indicadores de homicídios estão melhorando em muitos estados. Não é um sinal de que estávamos ganhando a guerra?

Isso é muito interessante, precisamos fazer uma reflexão um pouco mais profunda sobre essa questão.

No Espírito Santo, os índices de homicídios são de fato os menores em 20 anos. E isso é um sucesso.

É um estado que está economicamente muito bem. Há investimentos bem-feitos na segurança, como na questão de inteligência.

Mas tenho preocupação com um equívoco de análise que a gente pode estar fazendo com relação a esses índices.

Reduzir o homicídio, por óbvio que isso é ótimo. Todo mundo quer. Mas isso não quer dizer que a gente esteja em paz.

Os homicídios acontecem onde as facções estão em conflito. Quando o PCC, que atuava basicamente no porto de Santos e em Paranaguá, migrou para o Rio Grande do Norte e para o Ceará em busca de novos portos, houve explosão de mortes por causa da guerra com a Família do Norte.

Quando a extorsão está sedimentada, com domínio territorial controlado, eles não precisam matar mais. É muito mais inteligente trabalhar com medo – por exemplo, extorquindo comerciantes e empresários.

Outro dia vi essa notícia que me chocou muito. Tinha um comerciante, no interior do Ceará, que pagava R$ 400 por semana a uma facção para que ele pudesse vender o churrasquinho dele. Aí reajustaram para R$ 1.000. Quando foram cobrar, ele pagou R$ 400. Mataram esse comerciante e exibiram para toda a comunidade para que todos obedecessem as ordens deles.

Quando há o domínio pela extorsão, há menos mortes. O medo controla tudo, e as comunidades não se sentem protegidas pelo Estado.

Jacarezinho, no Rio, tem nove entradas. Sete foram fechadas pelo tráfico. Assim eles têm o controle, e a polícia não entra.

O faccionado fala assim, “Daqui para dentro você é meu, a Justiça do Estado não chega aqui, a polícia do Estado não chega aqui, aqui é a gente que aplica a lei.” E as comunidades curvam isso.

Como na ação das máfias?

Certamente. Uma prática muito comum nas ações mafiosas é a lei do silêncio. Então, quando você consegue esse domínio, você precisa matar menos. Os índices de homicídio podem cair, mas as extorsões podem estar disparando.

Esse exemplo do comerciante na periferia do Ceará deveria preocupar muito a Faria Lima. É a mesma lógica que vai acontecer com os empresários em todas as áreas.

Eles vão tomar os negócios deles e eles não terão o que fazer, porque o Estado não se move. O Estado não está preparado para fazer um enfrentamento a esse tipo de facção.

No Espírito Santo, os homicídios caíram 20%. Mas olha para a apreensão de fuzis. No ano passado, apreendemos 19 fuzis, 260 submetralhadoras, 88 metralhadoras, 39 carabinas, 57 rifles. Ou seja, o armamento de guerra está aqui e os homicídios diminuíram – justamente porque as comunidades estão dominadas.

A gente olha o índice de homicídio e acha que isso reduziu a ação das facções. Ao contrário. Eles não querem chamar atenção.

Temos dois PCCs muito distintos. Aquele PCC que está com um fuzil dominando comunidades, e o outro, ganhando territórios.

Tem uma guerra de territórios no Brasil, entre PCC e a Família do Norte, ligada ao Comando Vermelho. Essa guerra está dentro dos presídios, como naquele episódio de 2017 que aconteceu lá em Manaus.

Aquela facção pequena lá de Manaus, que só era usada como, digamos, um Uber da cocaína para passar cocaína através da floresta, de repente falou assim: “agora a cocaína é nossa,” e se aliaram ao Comando Vermelho. Aí o PCC começou a guerra contra a Família do Norte e o CV na disputa dessa rota da cocaína.

Tivemos mais de 200 mortes dentro dos presídios nos últimos meses. Então isso me preocupa muito.

Por isso não adianta o Espírito Santo investir, sozinho, em segurança. Precisamos de algo feito nacionalmente.

Já interceptamos traficantes aqui sendo treinados por criminosos do Rio. Pegamos armamentos carimbados por facções do Rio, que são emprestados para que aqui haja ganho territorial.

Então, se não for feito algo em escala nacional, a gente não vai conseguir resolver o problema. Não tem jeito.

O PCC hoje já não é mais considerado uma facção, é considerado ou organização mafiosa ou cartel.

É uma organização militarizada, organizada internacionalmente, tem comando central, normas rígidas, punições internas, capacidade de infiltração nas estruturas públicas. Atua em mais de 20 países.

O Brasil, além de ser o segundo maior consumidor de cocaína – perde apenas para os EUA – tem toda a rota de escoamento da droga. 

Praticamente toda a cocaína que sai dos três países produtores obrigatoriamente passa por nós, são nossos vizinhos. A cocaína que vem da Bolívia passa pelo Paraguai, que é do PCC. 

O PCC hoje é dono do Paraguai. E a maconha consumida no Brasil vem quase toda do Paraguai. O Brasil produz pouca maconha.

As outras rotas de cocaína, que vem do Peru e da Colômbia, passam pelo Mato Grosso e pelo Amazonas. Ou seja, os três únicos países produtores de cocaína do mundo são nossos vizinhos.

Isso é um grande problema para o Brasil. Os nossos portos são usados para mandar cocaína para a África, para a Europa, para a Ásia também agora, e para as Américas.

O PCC hoje é o grande cartel – além de ser exportador de cocaína, é o produtor da maconha. Não é à toa que vários países ficam pedindo para a gente reconhecer o PCC como organização terrorista.