Antes pequena e tímida, a indústria de cartões de crédito mudou de patamar depois do Plano Real.
 
Com o fim da hiperinflação, o dinheiro não ‘queimava’ mais na mão do consumidor, que começou a poder planejar suas compras e seu orçamento.

Na época, havia apenas duas credenciadoras de cartões no Brasil, a Visanet (hoje Cielo), então exclusiva da bandeira Visa, a Redecard (hoje Rede) única credenciadora Mastercard. Na prática, elas não concorriam entre si: o lojista que desejasse aceitar Visa e Mastercard era obrigado a contratar as duas credenciadoras.

Os grandes concorrentes das credenciadoras na época eram o dinheiro vivo, o pagamento em cheques à vista e os cheques pré-datados.

Para as credenciadoras de cartão, concorrer com o cheque à vista não era difícil, mas foi preciso investir em um produto para concorrer com os cheques pré-datados. Foi assim que surgiu o ‘parcelado sem juros’. Os bancos nunca gostaram da solução, mas não fizeram nenhum movimento coordenado para impedi-la — talvez porque, na época, os emissores de cartões de crédito, assim como as credenciadoras, por questões fiscais e trabalhistas, eram empresas distintas dos bancos, dificultando um entendimento estruturado.

O comércio logo adotou o produto, pois além de eliminar o trabalho de manuseio, guarda e transporte dos cheques, também transferia os riscos de inadimplência e fraude para os bancos emissores dos cartões.

Sucesso absoluto, o valor das transações ‘Parcelado Sem Juros’ hoje representa mais de 60% de todas as transações com cartões de crédito na média anual e, em dezembro, supera os 80% por conta do Natal.

Mas esta invenção genuinamente brasileira é uma grande distorção.
 
Em primeiro lugar, como não existe ‘almoço grátis’, é claro que há juros incluídos nos preços dos produtos ‘sem juros’.  Quando o varejista te diz, ‘Este é o preço; não dou desconto mas parcelo,’ ele não dá ao cliente a alternativa de se financiar em outro lugar. Um consumidor com histórico de crédito sólido poderia, por exemplo, conseguir uma taxa mais baixa em outra instituição. Mas o parcelado ‘sem juros’ impede a concorrência entre os vários agentes financeiros e veta a possibilidade de barateamento do crédito.
 
Além disso, os juros do ‘sem juros’ incidem em cascata sobre toda a cadeia de valor, inflando os preços em cada etapa: o fabricante prefere vender a prazo ’sem juros’ para o distribuidor, que por sua vez prefere parcelar para o varejista, que por sua vez repete a estratégia. O resultado é francamente desfavorável ao consumidor final. Frequentemente, mesmo que o consumidor queira pagar à vista pelo produto ou serviço, ele só consegue como desconto uma fração dos juros embutidos no preço final.

Como se vê, o grande vencedor do parcelado ‘sem juros’ é o varejo — talvez uma de suas únicas vitórias num mundo de margens cada vez mais comprimidas. Não é à toa que ’não dou desconto mas parcelo’  é o mantra dos lojistas.: o parcelado ‘sem juros’ aumenta o faturamento e as margens do varejo, enquanto os bancos ficam com o risco de inadimplência.
 
Cada vez mais em busca de escala, os bancos já se movimentam para reorganizar as regras do jogo e ficar com um pedaço desse bom negócio.  É claro que os bancos já participam do jogo quando suas credenciadoras (Cielo, Rede e GetNet) fazem a antecipação de recebíveis para os varejistas, mas, se as regras mudarem, os bancos só têm a ganhar.
 
Mas os bancos são beneficiários diretos de uma outra distorção do mercado: o prazo de 30 dias para liquidação das transações com cartões de crédito.

Os dois assuntos aparentemente não tem relação entre si, mas estão interligados.

Os 30 dias para liquidação transferem renda do varejo para os bancos;  o parcelado ‘sem juros’ transfere na direção oposta.
 
O alargamento do prazo de liquidação aconteceu em 1984 quando, por conta de uma inflação crescente, a indústria esticou o prazo de pagamento aos lojistas a fim de eliminar o ‘float’ negativo e evitar a derrocada do sistema. (No resto do mundo, os bancos emissores pagam ao lojista em dois dias, e recebem do portador do cartão, em média, 26 dias após a transação comercial.). Para entender no detalhe, veja o post “30 dias no cartão: uma história de crédito brasileira”, publicado aqui no Brazil Journal.
 
As duas jabuticabas estão aí, cada uma com seus vencedores de um lado e perdedores do outro.  Caberá ao Banco Central organizar a discussão sobre o assunto e propor uma saída que fomente a concorrência e favoreça o consumidor.
 
 
Edson Santos trabalha há 18 anos com meios de pagamento e é autor deste blog.