Num dos momentos cruciais de Back to Black, a cinebiografia de Amy Winehouse (1983-2011), a cantora é despertada por um telefonema do empresário Simon Fuller.
Mentor das Spice Girls, o quinteto pop que disseminou um novo conceito de feminino sob o lema “Girl Power”, ele queria integrá-la ao seu cast.
“Girl Power, para mim, é Ella Fitzgerald, Aretha Franklin,” vocifera Amy, antes de desligar o aparelho. No final das contas, ela aceitou a oferta de Fuller, mas criou suas próprias regras de trabalho – bem diferentes do pop acessível (porém bem feito) das Spice Girls.
A cineasta Sam Taylor-Johnson e o roteirista Matt Greenhalgh, por seu turno, não tiveram a mesma opção de escolha de Amy.
O roteiro de Back to Black, que está em cartaz desde quinta nos cinemas, passou pelo crivo da família da intérprete de Rehab. Isso quer dizer que, para obter os direitos de execução do repertório da diva inglesa, Sam e Greenhalgh tiveram de fazer pequenas concessões.
Mitch, o pai de Amy, que nos documentários sobre a cantora foi pintado como um canalha, virou um sujeito que só deseja o melhor para a filha – ainda que este “melhor” o tenha feito apoiar a recusa de Amy em tratar seus problemas com o alcoolismo, que vieram a matá-la. O marido, Blake Fielder-Civil, foi responsável pelo vício dela em heroína. No filme, não fica clara a intenção de fazer dela uma junkie.
Mas a cineasta e o roteirista merecem o benefício da dúvida. Cinebiografias, com raras exceções, trazem uma versão particular da realidade – no caso, a dos produtores, amigos e familiares do biografado.
O Freddie Mercury retratado em Bohemian Rhapsody, que arrecadou mais de US$ 1 bilhão no mundo inteiro, é de uma humildade franciscana. Na verdade, o cantor do Queen jamais se humilhou perante seus companheiros de banda, e momentos importantes de sua trajetória foram mudados a fim de que a história fluísse melhor.
Bob Marley: One Love faz vista grossa para os principais episódios de violência e machismo protagonizados pelo maior nome da música jamaicana. Sam e Greenhalgh também sabem como poucos tirar sentimento de personagens torturados: uma de suas colaborações mais frutíferas foi Nowhere Boy (2009), sobre a juventude de John Lennon.
Em Back to Black, optou-se por mostrar mais o lado musical de Amy Jade Winehouse, nascida em Enfield, cidade ao norte de Londres, e radicada em Camden Town.
Vinda de uma família de músicos, Amy tinha uma ligação especial com a avó paterna, Cynthia, que chegou a cantar profissionalmente. Durante a adolescência, a jovem Amy escutava do jazz de Dinah Washington ao hip hop de Lauryn Hill. (Um dos momentos de maior impacto de Back to Black, aliás, se dá quando ela anda pelas ruas do norte de Londres ao som de Doo Wop (That Thing), o primeiro single de sucesso de Lauryn.)
Amy Winehouse lançou seu disco de estreia, Frank, em 2003. Era um trabalho de apelo jazzístico, que fez relativo sucesso no Reino Unido mas não encantou o mercado americano.
Back to Black, lançado três anos depois, foi o passaporte para o estrelato. O jazz deu espaço para um revival da soul music, decalcado de bandas como Sharon Jones & the DapKings – que cedeu dois de seus integrantes para a gravação.
Inspirado pelos problemas de Amy com o álcool e pelo fim do relacionamento com Blake, o álbum vendeu 16 milhões de cópias. O sucesso potencializou seus problemas pessoais e despertou o interesse dos paparazzi, que registraram todos os deslizes da cantora. Em 23 de junho de 2011, Amy foi encontrada morta em casa, no bairro de Camden Town. O diagnóstico: intoxicação alcoólica.
Back to Black opta pela (arriscada) escolha de álcool e overdose de exposição com os verdadeiros vilões da trágica vida de Amy. Para defender a tese, eles contam com uma talentosíssima troupe de atores.
Marisa Abela interpreta o papel título e se encarrega de fazer todos os vocais. Ela não dubla: canta todas as músicas. Jack O’Connel faz um Blake Fielder-Civil com uma calhordice de proporções “pereioanas” (de Paulo César Pereio). Já Eddie Marsan se destaca por dar um desenho humano a Mitch Winehouse. O pai sanguessuga se tornou um progenitor que tomou as decisões que tomou para defender a carreira da filha. Mesmo que posteriormente elas tenham se revelado desastrosas.
Back to Black difere totalmente de Amy (2015), que rendeu um Oscar de melhor documentário a Asif Kapadia, e que coloca os pingos nos is sobre quem sugou até a última gota de talento da inglesa.
Mas como John Ford professou em O Homem que Matou o Facínora (1962), publique-se a lenda. E nesse caso, a visão de Sam e Greenhalgh é pura fábula.