O Governo lançou na semana passada um amplo pacote de estímulo ao crédito por meio da Medida Provisória 1.213/24. A motivação é gerar emprego e renda dinamizando a economia, sem custos fiscais relevantes.
Uma das medidas especialmente preocupantes do pacote é a autorização para a Empresa Gestora de Ativos (EMGEA) adquirir créditos imobiliários e tomar dívida no mercado para bancar essas aquisições. A venda de ativos para a EMGEA abriria espaço no ativo dos bancos, liberando-os para fazer mais empréstimos. O resultado seria o aumento do crédito imobiliário total.
A redação da MP gera diversas dúvidas. Dependendo de como a autorização seja implementada, ela pode resultar em custos substanciais para o Erário e na elevação do risco sistêmico no mercado imobiliário.
O mercado imobiliário é delicado. Erros no controle de riscos demoram a aparecer e geram passivos gigantescos de modo abrupto. Vale lembrar a crise dos empréstimos subprime nos Estados Unidos, em parte resultante da leniência com empréstimos para grupos de alto risco, o que permitiu a expansão de operações de crédito sem as devidas reservas de capital ou transparência. Intervenções no financiamento imobiliário precisam ser cuidadosas e sempre calçadas em reserva de capital prudencial e regulação atenta.
A operação como descrita pelo Governo
A EMGEA foi criada em 2001 para absorver créditos imobiliários de alto risco da carteira da Caixa Econômica Federal (CEF). Sua atribuição inicial era tentar vender essa carteira de créditos e recuperar parte dos recursos de difícil realização. Com a operação, a CEF passou a apresentar melhores indicadores prudenciais, e a conta do problema ficou para o Tesouro.
Sendo a CEF e a EMGEA 100% estatais, a operação ficava inteiramente dentro do setor público. Posteriormente, a EMGEA assumiu outras funções, sempre restritas a relações dentro do setor público federal, como a recuperação de créditos das entidades da administração pública.
A novidade da MP 1.213/24 é ampliar a atuação da EMGEA para que ela possa comprar crédito imobiliário de instituições privadas e assumir riscos de descasamento de taxas e prazos. A boa regulação bancária obriga os bancos a provisionar recursos para a ocorrência de perdas. Na medida em que parte dos créditos imobiliários sejam adquiridos pela EMGEA, os bancos passam a ter mais recursos liberados para novos empréstimos.
A intenção aponta para uma intervenção de grande porte da EMGEA, inclusive com ampliação de suas atribuições. O Presidente da empresa afirmou em entrevista ao Valor que “a medida tem como objetivo criar um mercado de crédito imobiliário de ‘segunda geração’ e, com isso, dar liquidez para os bancos alavancarem seus empréstimos voltados para a compra da casa própria.”
Ao mesmo tempo, em tom mais comedido, o governo fala em aplicar apenas R$ 10 bilhões na empreitada. Ainda de acordo com o Valor, “o Palácio do Planalto nega que a União vá fazer algum tipo de aporte para abastecer a EMGEA com recursos federais (…) a empresa estatal deve usar os seus próprios ativos, calculados em aproximadamente R$ 10 bilhões, para financiar essas operações”.
Os créditos comprados pela EMGEA lastreariam a emissão de títulos ou a oferta de fundo de investimentos, uma operação de securitização.
O resultado esperado pelo governo seria um ganha-ganha para todos os envolvidos: a EMGEA lucraria com a operação dos fundos de investimento, os bancos liberariam balanço para conceder crédito, o volume total de crédito imobiliário se expandiria, e haveria mais opções de investimento à disposição dos poupadores. Tudo isso sem que o Tesouro precisasse colocar dinheiro.
R$ 10 bilhões não seriam suficientes
O primeiro problema deste modelo está em uma questão aritmética. Se a EMGEA fizer uma compra de créditos imobiliários de apenas R$ 10 bilhões, o efeito sobre o mercado imobiliário será mínimo. As estatísticas do Banco Central mostram que o estoque de crédito imobiliário é de R$ 1 trilhão. Logo, a EMGEA liberaria apenas 1% da carteira de crédito imobiliário dos bancos.
Não seria possível criar o pretendido “mercado de crédito imobiliário de segunda geração”. A menos que haja a intenção de começar com esses R$ 10 bilhões e fazer operações sucessivas até atingir um volume que tenha impacto no mercado.
E é aí que começa o perigo.
A MP não estabelece um limite máximo de R$ 10 bilhões para a securitização. Por isso, a EMGEA poderia usar os seus R$ 10 bilhões em caixa para uma primeira compra de carteiras de crédito. Com base nesses ativos, ofertar títulos em mercado e, ao vendê-los, recompor seu caixa, passando a dispor de recursos para fazer uma segunda rodada de compra de carteiras imobiliárias. Esse processo pode se repetir várias vezes. Ao final de um ano, a EMGEA terá acumulado elevado volume de créditos imobiliários em seu ativo e de títulos vendidos ao mercado em seu passivo.
Isso não seria um problema se houvesse adequada regulação, repartição de risco e boa governança na EMGEA. Contudo, esses elementos podem não estar presentes.
Ambiguidades no texto da Medida Provisória
Se a EMGEA vai atuar como uma securitizadora dos créditos imobiliários, ela deveria se subordinar às regras já existentes para esse tipo de atividade, que estão na Lei 14.430/22:
Art. 18. As companhias securitizadoras são instituições não-financeiras constituídas sob a forma de sociedade por ações que têm por finalidade realizar operações de securitização.
Parágrafo único. É considerada operação de securitização a aquisição de direitos creditórios para lastrear a emissão de Certificados de Recebíveis ou outros títulos e valores mobiliários perante investidores, cujo pagamento é primariamente condicionado ao recebimento de recursos dos direitos creditórios e dos demais bens, direitos e garantias que o lastreiam. (grifo nosso)
Na securitização prevista nessa Lei, o pagamento dos compradores dos títulos fica condicionado ao recebimento dos créditos originais utilizados como lastro da operação. Em caso de inadimplência maior do que o esperado na carteira de crédito, os compradores desses títulos são sócios no prejuízo.
A MP 1.213/24, ao autorizar a EMGEA a fazer securitização de créditos imobiliários, não faz explícita referência à Lei 14.430/22, acima citada. Além disso, sua redação deixa a dúvida se não estaria estabelecendo uma nova modalidade de securitização, em que o risco pode permanecer com a EMGEA, enquanto os compradores de título serão pagos independente da inadimplência na carteira de crédito. A MP estabelece que:
Art. 7º
……………………
§1º-A – EMGEA tem por objetivos:
……………………
II – fomentar o crescimento do mercado imobiliário nacional, provendo maior liquidez aos ativos com base em crédito imobiliário.
…………………….
§1º-B – De forma a cumprir o objetivo de que trata o inciso II do §1º-A, a EMGEA poderá:
I – adquirir créditos imobiliários concedidos por instituições financeiras, públicas ou privadas, para incorporação em carteira ou para posterior venda ao mercado;
II – adquirir, no mercado financeiro, títulos e valores mobiliários lastreados em crédito imobiliário; e
III – ofertar instrumentos financeiros que permitam a proteção de instituições financeiras, públicas ou privadas, a exposições de remuneração e prazos oriundos de concessão de crédito imobiliário.
§1º-C – A EMGEA poderá atuar como securitizadora, securitizando os créditos imobiliários adquiridos conforme o inciso I do §1º-B em títulos e valores mobiliários, que poderão ter remuneração, prazos e montantes diferentes dos créditos imobiliários originais. (grifos nossos)
Note-se que, além de não subordinar explicitamente a EMGEA aos termos da Lei 14.430/22, o §1º-C autoriza a Empresa a emitir títulos “que poderão ter remuneração, prazos e montantes diferentes dos créditos imobiliários originais”. A redação é vaga e pode ser interpretada como exceção à regra da Lei 14.430/22, em que o pagamento dos títulos securitizados é condicionado ao recebimento dos créditos originais.
Se adotada essa interpretação, a EMGEA poderá estruturar a securitização de forma a absorver todo o risco da operação: ela compra créditos imobiliários, com o risco de que parte deles ficará inadimplente, e vende ao mercado um título sem qualquer relação com o risco de inadimplência dos créditos imobiliários. No limite, pode lançar uma letra que renda IPCA mais juros, similar a um título do Tesouro. Esse papel seria integralmente devido no vencimento, independentemente de haver inadimplência na carteira de crédito imobiliário.
A leitura do inciso III do §1º-B, acima citado, reforça a possibilidade de que esse tipo de operação venha a ser feita. Esse dispositivo estipula que caberia à EMGEA oferecer ao mercado instrumentos financeiros para reduzir a exposição de instituições financeiras ao risco do crédito imobiliário. Uma forma de fazê-lo seria, justamente, trazendo para si todo o risco da inadimplência.
Estaria a MP 1.213/24 estabelecendo uma nova modalidade de securitização, específica para a EMGEA, e fora da regra geral? Se não for este o caso, por que não dizer explicitamente na MP que essas operações ficam subordinadas à Lei 14.430/22?
O efeito desejado de dinamizar o mercado imobiliário requer injeção de recursos muito acima dos R$ 10 bilhões iniciais, uma expansão que implicaria riscos consideráveis.
Uma trava natural a esse processo seria o baixo apetite do mercado por títulos emitidos pela EMGEA. Porém, se eles forem, como aventado acima, títulos sem risco de inadimplência, não há motivos para haver restrição na demanda.
Além disso, a EMGEA tem 100% do seu capital nas mãos do Tesouro. Como tantas vezes no passado, o Tesouro se responsabilizaria pelo pagamento do passivo?
Tampouco se pode dizer que o espaço para a EMGEA expandir a compra de crédito imobiliário ficaria limitado pela inadimplência nos créditos adquiridos. Podem se passar anos entre a compra do crédito e uma inadimplência significativa em uma carteira com milhares de contratos. Enquanto a inadimplência não se agravasse, a EMGEA poderia continuar multiplicando as suas operações.
Inexistência de limitação prudencial
As operações do mercado financeiro podem resultar em crises, como a que ocorreu em 2008. Nos Estados Unidos, existem instituições com participação do governo que compram o crédito concedido pelo mercado (securitização). Desde o fim da década anterior, com forte apoio do governo americano, essas instituições passaram a adquirir crédito de famílias com maior risco de inadimplência, denominado de “subprime”. Anos depois, a inadimplência em massa foi o gatilho para uma crise econômica de dimensão global.
Para reduzir a possibilidade desse tipo de crise, a regulamentação do Sistema Financeiro impõe uma série de normas prudenciais. Por exemplo, os bancos devem estimar a perda esperada das carteiras de crédito, além de aportar capital para certo volume de perdas inesperadas. Caso perdas relevantes ocorram, as instituições estão mais bem-preparadas para garantir suas obrigações com depositantes e investidores.
Uma forma de evitar que a EMGEA viesse a multiplicar operações de risco seria uma limitação imposta por um órgão regulador. Mas aí surge uma nova dúvida. Se, de fato, a MP 1.213/24 estabeleceu uma nova modalidade de securitização, específica para a EMGEA, também deixaria de valer para ela o art. 19 da Lei 14.430/22, que estipula que a CVM é o órgão regulador desse tipo de atividade?
Dependendo das respostas às dúvidas suscitadas pela redação da MP, a EMGEA teria em mãos um instrumento financeiro com potencial de gerar perdas elevadas no médio prazo, sem fiscalização, supervisão ou regulação por uma agência independente das suas atividades. A liberalidade da redação da MP é tal que permitiria, por exemplo, operações de swap em que as instituições financeiras receberiam IPCA e pagariam TR.
O que a MP 1.213/24 parece estar montando é um sistema em que a EMGEA fará o que, nos EUA, fazem o Federal National Mortgage Association (Fannie Mae) e o Federal Home Loan Mortgage Corporation (Freddie Mac). Essas instituições têm a função de ser uma fonte confiável de liquidez e funding para o financiamento imobiliário. Desde a crise de 2008, essas agências estão sob a supervisão, regulação e fiscalização do Federal Housing Finance Agency, uma agência independente.
Seria a nova EMGEA uma espécie de Fannie Mae, mas sem estar subordinada a um órgão regulador que garanta a prudência e a solvência das suas operações?
Também faltam governança e transparência
A EMGEA é uma empresa pública de capital fechado. Não está obrigada a publicar balanços e fatos relevantes com a frequência e o rigor exigidos de uma empresa de capital aberto. Não há regra que estabeleça uma governança segura, para limitar o apetite ao risco, a captação excessiva de recursos em mercado ou decisões politicamente motivadas.
O incentivo dos bancos, por sua vez, é de se livrar dos créditos mais problemáticos. Se a EMGEA não fizer uma seleção adequada dos ativos, ela poderá comprar uma carteira de créditos de difícil recuperação. Como serão avaliados os riscos dessas operações?
Haveria problema, também, na negociação do preço pelo qual a EMGEA adquirirá as carteiras de crédito. A própria atipicidade desse desenho tornaria difícil obter sinais do mercado como padrão para suas securitizações. O valor pago tenderá a ter um componente discricionário.
A MP amplia o espectro de ação da EMGEA para que possa adquirir bens e direitos não apenas da União, mas também de estados, municípios e das entidades de administração indireta de todos os entes da federação, assim como de fundos públicos ou privados nos quais a União tenha aportado recursos (art. 7º, §1º). A EMGEA fica autorizada a participar de estruturas organizacionais, como fundos de investimento, SPEs e PPPs, dos quais participem todos esses entes.
Com isso, amplia-se a possibilidade de transferência de ativos de baixa qualidade para a EMGEA, com risco potencial a ser arcado, em última instância, pelo Tesouro.
Como a empresa não está no orçamento fiscal, suas operações não afetam o resultado primário. Em consequência, ela passa a ser um instrumento versátil de medidas parafiscais, que não afetam imediatamente as contas públicas.
A depender da qualidade da gestão de risco, cedo ou tarde a conta poderá aumentar a dívida, seja pela necessidade de capitalização do Tesouro à empresa, seja pela sua dissolução e absorção do patrimônio negativo pelo Erário.
Vale lembrar, ainda, que os R$ 10 bilhões de recursos da EMGEA não são dinheiro que caiu do céu. Ela é uma empresa pública que, até há pouco, estava na fila para ser liquidada. Havendo essa liquidação, o patrimônio da empresa reverteria para o Tesouro e poderia ser usado para abater dívida pública. Portanto, usar esse dinheiro em outra finalidade elimina a possibilidade de melhorar as contas do Tesouro.
Marcos Lisboa é economista.
Marcos Köhler é economista pela UFMG e consultor legislativo no Senado Federal.
Marcos Mendes é doutor em economia e pesquisador associado do Insper.