Nossa sobrinha, Samia, ouviu uma voz no trailer de um filme na internet e comentou: “Minha avó!”
A avó, palestina, mora na Cisjordânia. Tia de Zeina Latif, com quem sou casado.
Era o trailer do documentário Notas sobre um desterro, que será apresentado hoje na Mostra Internacional de Cinema, na Cinemateca Brasileira, na Vila Clementina.
Conversei com o diretor do documentário, Gustavo Castro, que gentilmente me deu acesso a uma versão preliminar do filme.
Em grande medida, o filme trata da família de Zeina, e da cidade de seu pai.
Ibrahim Abdel Latif nasceu em Battir, na Palestina, um vilarejo perto de Belém. Família de pedreiros que não sabiam ler. Não se sabe a data de nascimento de seus pais.
Ibrahim foi levado pelo pai para morar com amigos cristãos em Belém, onde estudou. Era a época da ocupação inglesa.
Após o ensino médio, em meados dos anos 1950, resolveu emigrar para o Brasil. Não falava português, mas um primo distante para cá viera e tornara-se caixeiro-viajante.
Ibrahim fez o mesmo e, em uma das vendas em um vilarejo no interior de São Paulo, conheceu Arminda, uma filha de imigrantes portugueses que mal sabiam as letras mas montaram um comércio e garantiram a educação dos filhos. Arminda se formou em biologia na USP.
Gustavo Castro não sabia de Zeina e de seu parentesco com muitas das pessoas entrevistadas no documentário.
Duro, dolorido, o documentário conta uma história de desterro que muitos talvez não conheçam.
O documentário vai ser apresentado em São Paulo, uma das raras cidades onde ainda há salas para exibir esse tipo de produção. A Mostra de Cinema deste ano apresentou vários documentários sobre a Palestina.
São Paulo é um lugar privilegiado para se entender o drama descrito no filme, uma cidade feita por imigrantes italianos, árabes, judeus, japoneses, portugueses, coreanos, armênios e tantos outros.
Um dos exemplos da coesão das muitas comunidades são os impressionantes hospitais criados por meio de doações e dedicação. Einstein (judeus), Sírio-Libanês (árabes), Oswaldo Cruz (alemães) e Beneficência Portuguesa (portugueses).
Médicos da Associação Médica Líbano-Brasileira (AMLB) têm dedicado dois dias por mês para atender refugiados gratuitamente, realizando cerca de 40 a 60 consultas por dia. Há um pouco de tudo: venezuelanos, egípcios, haitianos, congoleses, afegãos.
Os médicos se revezam e são diversas as especialidades: clínica médica, ginecologia, ortopedia, pediatria, tratamento odontológico… Eles distribuem os medicamentos que recebem como amostras dos laboratórios.
O HCor fornece dois andares para atendimento nesses dois dias, bem como exames de imagem e eventualmente ultrassom e ecocardiograma. Não são fornecidos exames de sangue.
Vários dos médicos que participam deste esforço trabalham igualmente em outros hospitais que fazem procedimentos adicionais, como cirurgias, com base no diagnóstico realizado.
A iniciativa comove, mas a tragédia é muito maior. Existem muitos refugiados que não têm acesso a serviços médicos básicos. E existem muitas vítimas de conflitos e perseguição que desejariam emigrar para o Brasil, mas os muitos pedidos e as restrições de acesso inviabilizam sua vinda. Vários desta fila que não anda estão na faixa de Gaza ou na Cisjordânia.
A solidariedade promovida por médicos do HCor poderia ser ampliada em uma rede que incorporasse em maior escala os hospitais construídos pelas diversas comunidades. Além do cuidado com as vítimas, a possibilidade de abrir um diálogo.
A dor consome ambos os lados: Israel e Palestina. Muitas das divergências talvez sejam irreconciliáveis.
Imre Kertész, um sobrevivente do Holocausto, escreveu a Oração para uma Criança não Nascida, um livro doído e comovente.
Mahmoud Darwish contou da expulsão de sua família das terras na Palestina no poema Eu Pertenço Ali.
O sofrimento não tem calmaria. O massacre de 7 de outubro reviveu o horror do genocídio.
A Nakba expulsou 700 mil palestinos das terras que habitavam há séculos. Houve outros tantos judeus expulsos de países árabes na sequência. Em ambos os casos, com muita violência e destruição.
Pessoas foram assassinadas, outras foram mutiladas. Em ambos os lados. Existem a fome e a devastação.
Não se pode tratar os judeus e seus algozes, nos muitos pogroms do século 19 e no genocídio do começo do século 20, como iguais. Uns são vítimas. Outros, brutos que desafiam a crença na humanidade.
O mesmo deve ser reconhecido no terror vivenciado pelos palestinos, vítimas da ocupação de Israel. Existe a opressão de quem vive na Cisjordânia. Famílias isoladas pelos muros da segregação e pelo racismo. Existem as crianças mutiladas na Faixa de Gaza.
Colonos expulsam moradores de casas em que há séculos moravam na Cisjordânia.
O povo judeu, perseguido, tem reproduzido a brutalidade de seus opressores no passado. Judeus na Palestina foram denominados terroristas no começo do século 20. Lutavam para ter seu país. Os palestinos hoje são muitas vezes identificados como terroristas.
Como descrever o que ocorre na Cisjordânia? Qual palavra melhor descreve o que ocorre em Gaza? O terrorismo do Hamas ameaça os judeus. A Autoridade Palestina persegue seus próprios cidadãos que ousam criticá-la com mais veemência. Há vítimas de lado a lado, mas poucas lideranças inocentes em qualquer dos lados.
“Do rio ao mar” não deveriam ser palavras de ordem de qualquer lado. Estamos falando de dois povos que deveriam reconhecer seu sofrimento mútuo para construir um futuro em paz.
A história delimitou as fronteiras atuais, que devem ser o novo ponto de partida. Alguns conseguiram sua moradia; outros a perderam. Israel deveria reconhecer os acordos da ONU e coibir novas expulsões dos palestinos de suas terras.
Um país ameaçado; outro, que não pode existir. Pessoas amedrontadas com os atos que aterrorizam; outras emudecidas pelos muros e a ausência de cidadania.
O diálogo não será fácil. Pode ser um passo, ainda que pequeno, ampliar o trabalho iniciado voluntariamente pelos médicos da AMLB. As ações valem mais do que as palavras. Talvez o Brasil pudesse receber mais refugiados frente à tragédia que ocorre em Gaza.
Mas o diálogo e a ação precisam ocorrer. São muitas as vítimas. A inação começa a ombrear a brutalidade.
Precisamos perdoar a nossa dor. A empatia requer compaixão.











