Quem viaja frequentemente de avião certamente já ouviu o piloto anunciar: “senhoras e senhores, retornem a seus assentos e afivelem os cintos. Passaremos por uma área de turbulência”. Na economia e na política mundiais, estamos atravessando um período de “Trumpulência”.
Pode-se gostar ou não de Trump. Debater se sua agenda é boa para os EUA, o mundo ou o Brasil. Numa ótica de Realpolitik, no entanto, a Trumpulência não é benigna ou maligna. Trata-se tão somente de uma força com a qual teremos de lidar.
Cabe desenhar a estratégia brasileira tendo a Trumpulência como dado concreto do cenário externo. Delinear bem seus principais traços constitutivos. Ponderar sobre seus impactos e, de tais efeitos, buscar vantagens para o interesse brasileiro.
Há exatos 20 anos, o jornalista Thomas Friedman examinava a globalização e decretava: “O Mundo é Plano.” Hoje o relevo é acidentado. A geopolítica é o epicentro.
Até Keynes, os economistas não distinguiam em sua ciência o domínio microeconômico (focado no indivíduo e na empresa) do macroeconômico (a atenção aos grandes agregados). A geopolítica tornou-se tão importante que caberia dividir seu foco em eventos microgeopolíticos (de grande impacto, mas que se desenrolam num arco de tempo mais curto, digamos cinco anos) e os macrogeopolíticos (de duração geracional, de 20 a 25 anos).
Oscilações demográficas são fenômenos macrogeopolíticos: apesar da queda da natalidade na maioria dos países, o mundo deve registrar 10 bilhões de pessoas em 2050 graças ao aumento populacional projetado para Índia, Indonésia, Paquistão e alguns países da África Subsaariana.
Da mesma forma, são temas macrogeopolíticos a renovada busca por segurança alimentar e energética, a crescente onipresença da inteligência artificial ou o reposicionamento territorial das redes globais de valor.
Dentre os acontecimentos microgeopolíticos, nenhum é tão impactante quanto a Trumpulência. Seu conceito é um jogo de palavras com ao menos três vetores: opulência, exuberância e turbulência.
Opulência: Trump 2.0 se inicia numa economia de PIB nominal de US$ 30 trilhões. Das 10 maiores empresas do mundo em valor de mercado, nove são norte-americanas. O valor individual de qualquer uma de suas três empresas mais valiosas (Nvidia, Apple ou Microsoft) é maior que o de todas as empresas negociadas na Bolsa de Frankfurt. Dos 50 estados norte-americanos, o mais pobre, o Mississippi, hoje tem PIB per capita mais alto que o de França, Reino Unido ou Japão. Os EUA lideram em IA. A boca de jacaré entre a trajetória do PIB dos EUA e da China estava se fechando até 2019. Nos últimos cinco anos, voltou a se abrir.
Exuberância: combate à burocracia; incentivo à desregulamentação e à eficiência governamental, viabilização de energia abundante e barata. Todas essas características compõem um objeto de fascinação e inveja de líderes empresariais no mundo todo. Exemplo disso foi a recente comparação feita por Bernard Arnault, a maior fortuna da Europa, ao contrapor o ambiente adverso de negócios em seu país (a França) à atmosfera de entusiasmo empresarial que encontrou nos EUA durante a posse de Trump. Há também a identificação, em muitas sociedades ocidentais, com bandeiras como a guerra à agenda Woke ou à imigração ilegal.
Turbulência: questionamento do papel das instituições multilaterais, revisão de cânones da política externa americana como privilégio a “aliados ocidentais” e acordos de livre comércio, reorientação da presença dos EUA no mundo para bases mais insulares, estilo caótico e a proverbial imprevisibilidade em negociações bilaterais.
A Trumpulência se faz sentir acentuadamente na Geoeconomia. No campo comercial, prevê-se a aplicação da noção de “comércio justo e recíproco”, que escanteia a Organização Mundial do Comércio e bilateraliza as relações. No mano a mano, a mera escala da economia norte-americana tende a fortalecer a posição negociadora dos EUA.
No campo da política industrial, multiplicam-se incentivos ao encurtamento das cadeias de produção, o que levaria a uma volta ao “Made in USA”. Noções como nearshoring ou friendshoring são substituídas por “US-shoring”. Isso tudo acompanhado da busca da queda de impostos como percentual do PIB, o que, se acontecer, aproximará os EUA do patamar de carga tributária observado nas economias emergentes, distanciando-se das elevadas médias de impostos praticadas nos países-membros da OCDE (a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Na Geoestratégia, como bem exemplificado pelo iconoclástico discurso do Vice-Presidente JD Vance durante a Conferência de Munique, os EUA deixam de lado o papel de “polícia do mundo”; diminuem sua presença militar física no exterior e “voltam para casa” — algo parecido com o pós-Primeira Guerra.
Com isso, evitam aquilo que o historiador Paul Kennedy chama de “imperial overstretch” (algo como “fadiga imperial”), que em geral precede o colapso das Grandes Potências. Caso haja uma Guerra Fria 2.0 na qual o antagonista é a China, a fronteira é tecnológica, não física, e portanto pode ser travada remotamente. Reedita-se assim um mundo de esferas de influência.
Há algo também de “Geoideologia” na Trumpulência. Não apenas os EUA, mas também a civilização ocidental arrisca-se à erosão pela imigração ilegal e a dissipação dos valores nacionais. Estas são mais disruptivas do que o desafio de potências autoritárias. O ambientalismo é uma amarra que esmorece as democracias liberais. Muitos desses pontos encontram enorme ressonância no Velho Continente e também na América Latina.
No desenho da estratégia brasileira — mais uma vez, sem julgamento de valor — cabe examinar o horizonte de uma perspectiva realista para dimensionar as consequências factuais ou potenciais da Trumpulência. Sugiro quatro pontos que podem servir de referência para o desenho desta estratégia realista:
— O multilateralismo está paralisado. A OMC, inoperante. O mundo é tabuleiro para a ascensão das relações bilaterais.
— Países geopoliticamente pendulares, capazes de uma abordagem “à la carte” entre EUA, China e Europa — de que são exemplos Arábia Saudita e Singapura — estão muito fortalecidos. Tornam-se atores-chave.
— Os EUA de Trump tendem a reintroduzir a Rússia nas mesas de negociação do mundo. Nessa mesma linha, podem orquestrar uma espécie de détente geoeconômica com a China. Aliás, a ideia de détente não é incompatível com uma Guerra Fria mais estrutural e prolongada. A détente foi parte constitutiva de um longo período da confrontação bipolar entre EUA e União Soviética.
— As burocracias tradicionais de cada Estado-Nação são vistas como morosas e “agnósticas”; o equacionamento de problemas se dá no plano pessoa-a-pessoa, onde o networking informal ganha imensa força.
As investidas da Trumpulência não ficarão sem reação.
Os chineses, historicamente ressabiados em relação aos japoneses, reexaminam novos horizontes para Pequim-Tóquio. Os europeus, que há pouco fomentavam uma “bifurcação” no que toca à China, voltam-se novamente ao intercâmbio com o gigantesco mercado chinês.
Ademais, muitos analistas, como o cientista político Ian Bremmer, passaram a computar os EUA como um ator de instabilidade e risco, o que tende a gerar efeitos desorientadores. Fareed Zakaria, o conhecido comentarista internacional, sempre criticou a interpretação dos que entendem que a China quer exportar seu modelo. Ele argumenta que a China tem um modelo único e confuso, que mescla Marx e Confúcio.
Na mesma linha, muitas diretrizes de Trump parecem contraditórias. A combinação, por um lado, de um ambiente interno de negócios desregulamentado e desburocratizado, e, por outro, de uma política de substituição de importações faz pensar num improvável encontro entre Milton Friedman e Raul Prebisch.
Isso tudo carrega múltiplos significados para nós — e em patamares que vão muito além de respostas em termos de política externa. Difícil pensar num momento nos últimos 40 anos em que EUA e Brasil — as duas maiores democracias do Ocidente e as maiores economias do continente — estiveram tão distantes.
Não há ninguém fazendo pontes.
Tempo então ao menos de uma lição de casa interna. Os EUA, assim como os países mais dinâmicos do mundo, estão fazendo de tudo para atrair ricos e riqueza. Desregulamentar e desburocratizar. Aumentar a participação da empresa privada em P&D (pesquisa e desenvolvimento). Fortalecer o mercado acionário interno. Profissionalizar e perseguir excelência em empresas com participação estatal. Diminuir carga tributária como percentual do PIB de modo a capturar elos das redes globais de valor que, sobretudo no setor industrial, estão diminuindo exposição a risco na China.
E nós? Num mundo de movimentos ágeis, o Brasil está lerdo e pesado. No mínimo, a Trumpulência deveria representar para nós um urgente chamamento à competitividade da economia brasileira.
Será que é nisso que estamos focados?
Marcos Troyjo é economista, cientista politico e diplomata. Foi presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, Secretário Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia e Professor-Adjunto em Columbia, onde fundou e dirigiu o BRICLab. É um Distinguished Fellow do INSEAD e da Universidade de Oxford.