O aniversário de Fernando Henrique Cardoso, que hoje completa 92 anos, nos permite refletir sobre seu legado na política e nas instituições brasileiras. Sua presidência deu ao País políticas sociais inclusivas, e ainda que tenha cometido sua parcela de erros, os acertos foram muito mais numerosos – particularmente tendo em vista tudo que ocorreu no País nos últimos 15 anos.

Fernando Henrique é o primeiro a admitir que foi um ‘presidente acidental’.

Intelectual admirado por seus pares, a política nunca lhe foi estranha. Sempre hábil nas conversas, desde os tempos de faculdade congregava grupos de trabalho com uma surpreendente capacidade de seduzir e, ao mesmo tempo, de cutucar o interlocutor.

Seus principais trabalhos na academia sempre trataram das peculiaridades do Brasil – desde o começo como assistente de Florestan Fernandes, quando estudaram a mobilidade social e raça no Brasil meridional.

A USP dos anos 1950 valorizava a pesquisa aplicada, a análise de arquivos e dos dados na análise social com um rigor raro naquela época. Houve os franceses, como Fernand Braudel e Roger Bastide, de quem FHC foi assistente, e havia historiadores brasileiros de mão cheia, como Alice Canabrava, com quem ele também trabalhou.

Nos anos seguintes, perseguido pela ditadura, Fernando Henrique teve que se exilar. Foi nessa época que escreveu o clássico sobre a dependência da América Latina com Enzo Falleto, criticando as visões convencionais da relação entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, ou entre centro e periferia, como se dizia então.

O livro argumentava, na contramão da tradicional (e esquemática) Teoria da Dependência, que era possível superar o atraso adotando políticas públicas que aumentassem o dinamismo da economia doméstica.

O sociólogo e o político já caminhavam juntos.

No exterior, continuou escrevendo sobre o Brasil, com artigos importantes em que tenta compreender a peculiar relação entre o Estado e o setor privado no nosso país. Um amigo seu, Luciano Martins, escreveu um livro antológico sobre o tema: Estado Capitalista e Burocracia no Brasil pós-64.

FHC nem sempre acertou. Nos anos 1970, Carlos Langoni publicou dois livros sobre a relevância da diferença no acesso à educação para analisar a desigualdade de renda no Brasil. Ambos embasados em micro dados com um rigor e cuidado talvez inéditos no País.

A polêmica que os livros provocaram foi ampliada pelas circunstâncias da época: concordar com as conclusões parecia eximir a política econômica do seu impacto na desigualdade, quase uma complacência com a ditadura.

Não era nada disso. Podia-se concordar com a evidência que indicava a elevada correlação entre escolaridade e renda das pessoas. E podia-se combater a ditadura. Mas naqueles tempos divididos, qualquer problema central cuja evidência apontasse que não fosse culpa do regime opressivo parecia conivência.

O pior, contudo, é que os livros de Langoni indicavam exatamente o oposto. O regime militar, além de oprimir a liberdade, errava ao privilegiar subsídios a empresários de diversos setores. Melhor seria destinar os recursos para cuidar da educação.

A conclusão dos trabalhos de Langoni era uma crítica severa à política econômica da ditadura militar. Fernando Henrique, contudo, acabou levado pelo embate polarizado e superficial da época, e criticou, sem o cuidado da USP onde se formara, os trabalhos de Langoni. Era um argumento com muita política e pouca ciência.

Pode-se discordar de FHC por suas escolhas aqui e acolá, mas há que se admitir sua impressionante capacidade de reconhecer erros e corrigi-los.

No seu primeiro mandato, a universalização do ensino tornou-se prioridade. E essa é parte de uma história que deve ser contada em maior detalhe: a revolução na política pública que começou com seu governo.

Uma dupla no Palácio do Planalto teria passado despercebida, não fossem suas realizações: Ruth Cardoso e Vilmar Faria. Ambos lideraram uma impressionante agenda de políticas públicas em prol dos brasileiros mais vulneráveis.

Houve de tudo. A lista de programas sociais experimentados no governo FHC é de tirar o fôlego: Comunidade Solidária; DLIS, Desenvolvimento Local Sustentável; PETI, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil; Agente Jovem; Auxílio Gás; Cartão Alimentação; e muitos, muitos outros. O Bolsa Família deu seguimento a estes programas, unificando muitos deles.

O governo também criou o Cadastro Único, que procurava identificar os mais pobres, criando o NIS, Número de Identificação Social, que garante o acesso aos programas sociais, permitindo um atendimento adequado às necessidades de cada família.

Ministro da Educação, Paulo Renato implementou o Bolsa-Escola, que transferia recursos às famílias cujos filhos estivessem estudando, entre muitas outras medidas para universalizar e melhorar o aprendizado.

No Ministério da Saúde, José Serra permitiu os medicamentos genéricos, em meio a outras medidas para garantir um melhor acesso à saúde.

Fernando Henrique tinha um jeito sutil de provocar quem trabalhava com ele. Na época do governo, comentava com leveza: “Ah, fulano é o meu melhor ministro. Veja o que ele fez. Que medida fantástica”. E com isso despertava a inveja no ministro que ouvia, provocando-o a fazer melhor.

Em suas escolhas de política pública, FHC não ficou refém de ideias passadas. A privatização de estatais era um tema rejeitado na esquerda com a qual o Presidente se identificava. No entanto, em seu primeiro mandato, percebeu o atraso do País em telecomunicações e a necessidade de atrair recursos privados para o setor.

FHC mudou de mão e conseguiu universalizar o acesso à telefonia, de quebra reduzindo a barganha por cargos em estatais que caracteriza boa parte do nosso patrimonialismo.

Na política externa, seu governo optou pela linha “autonomia com participação”, construindo à larga acordos com outros países, em vez da “autonomia pelo isolamento,” tão típica da antiga esquerda latino-americana.

Seu governo também enfrentou a crise fiscal dos Estados, cujos gastos eram financiados indevidamente pelos bancos estaduais, descumprindo a legislação em vigor. Os bancos insolventes foram liquidados em meio a críticas severas de aliados que se beneficiavam das velhas práticas.

A renegociação das dívidas dos governos estaduais evitou que os problemas se avolumassem como ocorreu na Argentina, e a Lei de Responsabilidade Fiscal deu um freio de arrumação nas contas públicas por mais de uma década.

Foi extinta a Legião Brasileira de Assistência, até então o braço populista que cabia à primeira-dama. A gestão FHC, e de Ruth Cardoso, não combinava com assistencialismo. Melhor optar por políticas públicas que aumentassem as oportunidades e a autonomia das pessoas.

Houve erros graves, como a aprovação da reeleição em seu primeiro mandato, da qual se valeu para conseguir mais quatro anos de presidência. Aceitar mudanças das regras do jogo para benefício próprio destoa, e estou sendo gentil, da natureza das imensas reformas institucionais de seu governo, que procuravam fortalecer os mecanismos impessoais do Estado a serviço do bem comum.

Seu governo enfrentou ainda a crise asiática de 1997, o default russo de 1998, e nosso próprio ajuste cambial em 1999.

Mas, na famosa frase cunhada pelo jornalismo político, “as crises saíam de seu gabinete no Planalto menor do que entravam.” Isso porque FHC sempre mantinha a tranquilidade, independentemente das circunstâncias. Por maior que fosse o problema, parecia dizer, ‘melhor conversar com serenidade e encontrar a solução possível.’

Virou Senador numa eleição improvável (era suplente de Franco Montoro, que assumiu o governo de São Paulo em 1982). Perdeu para Jânio Quadros a eleição para a prefeitura de São Paulo, o que fez muita gente apostar em seu ocaso na política. Erraram.

Acabou ministro das Relações Exteriores de Itamar Franco. Em meio a uma viagem, soube pelo presidente que mais um ministro da Fazenda havia caído e que ele teria que assumir o posto. Recusou, com a delicadeza e ambiguidade usuais.

Acordou no cargo, comunicado por um telefonema meio irritado de sua esposa, Ruth. Assumiu e escalou o que de melhor havia no campo da economia. Delegou a tarefa de controlar a inflação à equipe, cuidando dos inevitáveis conflitos entre técnicos com sapiência apenas equivalente à sua autoestima. E foi para a rua explicar o que estava por acontecer.

Veio o Plano Real e Fernando Henrique tornou-se presidente. Não ocorreram poucos conflitos no seu mandato, mas, como disse, os problemas entravam no gabinete na temperatura de ferro avermelhado, e saiam como um chá inglês, quase frios. Não foram anos fáceis, mas havia Fernando Henrique, que convidava ao diálogo e administrava os conflitos.

Seu governo criou diversas instituições de Estado, como agências reguladoras, e fortaleceu outras, como o Banco Central. Não havia perseguições a quem o criticasse. Fernando Henrique sempre preferiu a conversa, ainda que ela pudesse ser repleta de ironias e provocações gentis.

Os últimos dois anos na presidência foram particularmente difíceis. Houve a crise de energia em 2001. Tempestivamente, Pedro Parente assumiu a condução da encrenca e o governo enfrentou o problema com transparência e eficácia.

A eleição de 2002 trouxe novas dificuldades. A inflação aumentava e as contas externas estavam a ver navios.
O governo conversou com os candidatos, negociou auxílio do FMI e pôs a cara a tapa, garantindo que os temores eram infundados.

E assim foi a única transição de governo da qual participei. Auxílio integral por parte do governo que saía. O comportamento da equipe era o reflexo do presidente. Todos disponíveis para ajudar, com os números transparentemente postos à mesa. Havia uma agenda comum de País: viabilizar que a passagem de governo fosse a mais produtiva possível.

Tenho imensa gratidão pela equipe econômica de FHC: Pedro Malan, Arminio Fraga, Amaury Bier, Pedro Parente e muitos outros permitiram que conduzíssemos a partir de 2003 a política econômica que serenou o país.

Notável, ainda, o exemplo de Gustavo Franco, cujo cuidado com os detalhes jurídicos do Plano Real viabilizou sua implementação sem as usuais contestações judiciais e utilizamos mais tarde nas reformas microeconômicas.

Não consigo imaginar um presidente de saída que tenha transmitido o cargo com tanto prazer àquele que havia sido um de seus maiores críticos.

Com seu sorriso imenso, FHC comemorava a consolidação da democracia. Seus gestos abraçaram, calorosamente, a escolha da maioria.

Feliz aniversário, querido Presidente.

Muito obrigado.

Marcos Lisboa é economista.