Num país onde o Fisco e os contribuintes vivem em pé de guerra, o combate à sonegação contumaz é um raro consenso em termos tributários.
A sonegação – que não se confunde com o inadimplemento circunstancial de tributos – subtrai valores importantes da economia, prejudica sobremaneira a arrecadação tributária e provoca uma concorrência desleal desregulando os preços – dado que, sem pagar impostos, vende-se qualquer coisa mais barata.
Na semana passada o Brasil celebrou o sucesso da Operação Carbono Oculto, deflagrada para combater crimes de natureza tributária e de lavagem de dinheiro no setor de combustíveis. Mais de mil postos de gasolina foram usados para lavar dinheiro, com movimentações de R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024 – até então, tranquilos como uma vaca na Índia.
Este é um cenário que se repete em diversos outros setores da economia, como por exemplo os de bebidas, brinquedos, perfumes e cigarros. A Receita estima que aproximadamente 1.100 empresas se valem desse modus operandi, sendo responsáveis por uma dívida tributária de R$ 240 bilhões.
Num levantamento realizado em 2024, o Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade – FNCP constatou que empresas consideradas devedoras contumazes vendiam maços de cigarros a R$ 4,93, abaixo do preço médio dos produtos regulares, que à época era de R$ 7,94, e até mesmo abaixo do valor praticado para produtos contrabandeados, cujo preço médio era de R$ 5,05, fazendo com que o mercado ilegal representasse mais de 40% do total de vendas no País.
Numa piada pronta, existem no Brasil fábricas que falsificam o cigarro paraguaio, de tão forte e consolidada a marca do produto contrabandeado.
A situação é gravíssima, mas não surpreende. A resposta sobre como chegamos a este caos repousa em uma inexplicável tolerância – ou na melhor das hipóteses, omissão – do nosso ordenamento jurídico para com os devedores contumazes, pessoas físicas e empresas que utilizam a sonegação de tributos como modelo de negócio, levando brutal vantagem concorrencial.
Estabeleceu-se, no Brasil, um ecossistema favorável à formação e manutenção de estruturas voltadas para o cometimento de uma variedade de crimes contra a ordem tributária.
Segundo o STF, devedor contumaz é aquele que “pratica a inadimplência reiterada, sistemática, contumaz, e a utiliza como verdadeiro modelo negocial de seu empreendimento, seja para enriquecimento ilícito, para lesar a concorrência ou para financiar as próprias atividades.”
Embora a decisão que fixou esse conceito seja de 2019, de lá para cá pouco avançamos. Mas não seria difícil endereçar o problema. Existem projetos de lei que preveem a tão necessária regulamentação da figura do devedor contumaz em âmbito nacional, estipulando punições pesadas para as empresas que fazem da inadimplência um modelo de negócio. Contudo, lamentavelmente, tais projetos não têm recebido a devida atenção do Congresso Nacional.
Para citar um bom exemplo, o projeto de Lei Complementar nº 125/2022, oriundo da Comissão de Juristas para Reforma dos Processos Administrativo e Tributário Nacional – que tive a honra de integrar – prevê, dentre outras hipóteses, que a utilização de empresas com intuito fraudulento poderá acarretar penalidades que vão desde a proibição de realização de parcelamentos, utilização de benefícios fiscais, até a baixa da pessoa jurídica, com a responsabilização consequente das pessoas físicas.
Regras semelhantes são previstas pelo PL nº 164/2022, em trâmite no Senado, que prevê inclusive um regime especial de fiscalização para os setores mais afetados pela sonegação reiterada.
Por que o Congresso não vota tais projetos?
Passa da hora de termos um marco legal que permita que os entes tributantes sejam mais duros e eficientes contra a prática criminosa de sonegação de tributos.
Obviamente que a definição de regras de combate ao devedor contumaz, repito, não objetiva enquadrar o contribuinte de boa-fé, que paga seus tributos mas que pode, eventualmente, se encontrar em situação de inadimplência, seja em razão de dificuldades financeiras, seja porque decidiu legitimamente questionar a incidência de determinada cobrança.
Pelo contrário, é justamente o pagador de impostos que se pretende proteger das práticas desleais dos fraudadores. Afinal, a estranha tolerância do sistema com tais práticas tem gerado prejuízos não só para o Fisco, mas também para as empresas que honram com suas obrigações fiscais, já que é inquestionável a vantagem concorrencial obtida pelos delinquentes.
Luiz Gustavo Bichara e Guilherme Morandi são sócios do Bichara Advogados.