O Brasil tem hoje duas agendas em conflito.
 
Na primeira, o governo tenta privatizar estatais e atrair capital para setores como infraestrutura, energia e saneamento. Na outra agenda, que corre paralela, o empresariado se ressente do ativismo regulatório de várias agências, que, em vez de incentivar a concorrência — seu objetivo declarado — estão aumentando a insegurança jurídica de quem já está exposto ou ainda pretende investir. 
 
O problema não é novo. 
 
Desde os governos do PT, sob o pretexto de incentivar a concorrência, as agências reguladoras tem sido em grande parte intervencionistas — mais preocupadas com quanto o empresário está ganhando do que com a concorrência que dizem querer estimular. 

Nas últimas semanas, as duas agendas entraram em conflito, produzindo pelo menos um caso concreto. 
 
Dona de mais de 20% do mercado de gás liquefeito, a Liquigás era vista como um ativo disputadíssimo, e a Petrobras esperava pelo menos cinco grupos concorrendo pela empresa. 
 
Na semana passada, soube-se que três propostas foram apresentadas, incluindo uma da Itaúsa em consórcio com a Copagaz (que teria sinergias imensas com a Liquigás), e outra do fundo soberano Mubabala. Mas o Brazil Journal apurou que mesmo estes investidores indicaram à Petrobras que, se a mudança na regulação for adiante, suas propostas perdem validade.
 
Boa parte do barulho está vindo da Agência Nacional do Petróleo (ANP).
 
A agência tem nada menos que nove propostas de mudanças na regulação de setores como gás liquefeito e distribuição de combustíveis.
 
A ANP quer permitir, por exemplo, que o botijão de gás de uma empresa seja preenchido por outra.   Outra proposta permitiria ao usuário do botijão comprar o gás de forma fracionada, desembolsando menos dinheiro a cada vez, em vez de ter que “zerar” seu botijão e pagar por outro cheio, como acontece hoje.  

Numa terceira inovação, a ANP quer permitir que o chamado Transportador-Revendedor-Retalhista (TRR) — que hoje leva diesel a localidades que as distribuidoras não alcançam — possa também vender gasolina nos postos já atendidos pelas distribuidoras.
 
Todas essas medidas, na superfície, parecem pró-consumidor, pró-concorrência, pró-mercado — até que se desça ao detalhe de como funcionam esses setores.
 
Talvez o caso mais emblemático seja o do GLP. 

Como qualquer produto comoditizado, o gás de cozinha se beneficia de economias de escala, e a ideia de permitir sua venda fracionada trabalha contra essa lógica. A opção de enchimento fracionado exigiria a instalação de novas centrais para reabastecimento e aumentaria o preço por quilo, encarecendo o produto em vez de barateá-lo.
 
À primeira vista, a coisa parece simples: o consumidor levaria o botijão até um posto de reabastecimento e injetaria a quantidade de gás que desejasse.  Mas as distribuidoras têm especificidades logísticas que a proposta de enchimento fracionado parece ignorar. 

Hoje, uma distribuidora enche de 1.500 a 1.800 botijões por hora numa planta.  Esta planta tem que estar afastada da população e obedecer a regras do Inmetro e do Corpo de Bombeiros.  Onde seria feito o enchimento parcial?  

Os 120 milhões de botijões que circulam hoje pelo Brasil sequer são aptos ao enchimento fracionado.  

“Você teria que trocar a válvula para um modelo que trava automaticamente quando chega nos 13 kilos,” diz Pedro Zahran Turqueto, diretor da Copagaz e membro da família controladora.  “Se você sobreencher, ele espirra gás.”
 
Mas por que não permitir, por exemplo, que a Ultragaz encha um botijão vendido pela Liquigás?  

O primeiro problema tem a ver com segurança. Hoje, a distribuidora que vende o gás ao cliente tem responsabilidade civil e criminal sobre qualquer acidente.  Ao permitir que uma empresa preencha o botijão da outra, tornando os botijões fungíveis, quem fica responsável em caso de acidente?  

Há também uma razão econômica:  as distribuidoras compram os botijões por volta de R$ 130 e os revendem por R$ 80 em média a seus revendedores. Há um ‘custo afundado’ logo na largada.  Se as marcas não tiverem mais importância, quem arcará com o custo inicial da compra do botijão? 

Finalmente, cada empresa faz a manutenção do seu botijão: pintar, desamassar, verificar a segurança das válvulas. Como ficaria essa obrigação quando um passa a encher o botijão do outro? 

(A manutenção de botijões é uma indústria à parte: 15 anos depois da data de fabricação, o botijão tem que ser ‘requalificado’, e depois disso, mais uma vez a cada 10 anos.  Se bem cuidado, um botijão brasileiro tem vida média de 45 anos — quase o suficiente para se aposentar.  Quando o botijão está velho e em más condições de uso, ele é sucateado.)

Para a Copagaz, “as propostas de enchimento fracionado e desrespeito à marca não param de pé do ponto de vista econômico, técnico e jurídico,” diz Turqueto.
  
No caso dos retalhistas de combustível, a ideia da ANP é criar concorrência com as distribuidoras — um negócio de escala em que as margens de lucro líquido rodam entre 3% e 4%. 

“As exigências para se abrir uma distribuidora são muito maiores que para um TRR,” diz Leonardo Gadotti, presidente da Plural, que reúne Raízen, Ipiranga e BR Distribuidora. “A distribuidora tem que ter tancagem, bases, tem controle de qualidade etc.  Se a regulação muda, é melhor as distribuidoras virarem retalhistas.” 

Tanto a sonegação quanto a adulteração de combustíveis tendem a aumentar, porque “qualquer um — você e um amigo — podem arrumar um caminhão e passar a vender combustível aos postos,” diz Gadotti. 

A agenda pró-concorrência tem que estar nas prioridades do governo mas, como regra geral, convém não reinventar a roda — nem mexer em time que está investindo.