Quando a Livraria Cultura comprou a Fnac, há pouco mais de um ano, surgiu a pergunta inevitável: seria um abraço de afogados?

Os documentos da recuperação judicial da Cultura, arquivada hoje, sugerem que sim.

O atrativo na transação foram os R$ 130 milhões que a matriz francesa da Fnac pagou à família Herz ficar com o negócio. Era capital de giro na veia – um produto em escassez para a Cultura, que vinha sofrendo com queda nas vendas e endividamento bancário alto há pelo menos quatro anos.

Mas o que a Cultura não contava era com o tamanho do ralo de caixa que a operação da Fnac logo se revelaria.

Depois da aquisição, além de dever aos bancos, a Cultura passou a dever a fornecedores com quem antes estava em dia. Os Herz fecharam 2017 devendo R$ 17 milhões aos fornecedores e, este ano, a dívida saltou para R$ 92 milhões.

A lista de credores dá uma dimensão de como os problemas se somaram. Além de dever para uma série de editoras, a Cultura passou a ter dívidas milionárias com fabricantes de eletrônicos, a operação que herdou da Fnac. A Companhia das Letras é a editora com o maior papagaio a receber: R$ 7,5 milhões. Lenovo e Dell tem outros R$ 10 milhões e R$ 5 milhões, respectivamente.

O resultado operacional da Cultura – antes do pagamento de dívidas – tinha ficado no zero a zero em 2016. No ano passado, foi para o vermelho em R$ 77 milhões. A previsão, segundo os documentos, é que o buraco encerre o ano um pouco menor: R$ 57 milhões.

Neste ano, a Cultura fechou 11 das 12 lojas que pertenciam à empresa francesa no Brasil. Só uma, em Goiânia, permanece aberta, e não se sabe até quando. Recentemente, ex-funcionários da Fnac protestaram na tradicional loja da Cultura na Avenida Paulista, exigindo o pagamento de salários e indenizações.

Além das dívidas com fornecedores, no fim de setembro a Cultura tinha R$ 63 milhões em dívidas bancárias e devia R$ 12 milhões em aluguéis (segundo o Valor, já há credores entrando com ação de despejo).

A dívida bancária só não é maior porque algumas instituições financeiras estão retendo recebíveis de cartões de crédito e débito. Os advogados entraram com pedido judicial para bloquear essa retenção e liberar os recursos para serem usados na recuperação da companhia.

Outros passivos incluem R$ 32 milhões de títulos a vencer de compras realizadas a prazo com fornecedores e R$ 8 milhões de dívida em moeda estrangeira relativa a produtos importados.

As dívidas arroladas na RJ somam, ao todo, mais de R$ 285 milhões.  A 3H, holding da família Herz que detém 100% das ações, é solidária em várias das dívidas. Não há sócios financeiros.

O Felsberg Advogados, que representa a companhia, resume a situação no documento:  “para cobrir custos de operação, fazem-se dívidas com os bancos; para equalizar as dívidas com os bancos, contraem-se dívidas com fornecedores – as quais, por sua vez, aumentam os custos de operação”.

O fluxo de caixa está negativo há quatro anos.

Na petição inicial, a companhia afirma que foi vítima da crise econômica e da ‘crise de leitores’ – um termo usado pelo próprio Pedro Herz, filho dos fundadores da companhia, alegando um baixo interesse do brasileiro por literatura. Não há menção a eventuais problemas trazidos pela compra da Fnac ou erros de gestão da família.

No mercado editorial, a avaliação é de que a Cultura – tocada por uma família de literatos – está há anos em estado de negação.

“Eles achavam que podiam turbinar as lojas da Fnac e que iam ganhar sinergia”, diz uma fonte próxima à companhia. “E que a entrada em eletrônicos poderia ser uma boa ideia com a economia se recuperando. Não deu certo”.

No pedido de recuperação, a Cultura argumenta que o caminho para reerguer o negócio é a redução da estrutura física e a aposta no online.

O CEO Sergio Herz não respondeu a um pedido de entrevista.

A petição para recuperação judicial começa com uma frase de José Saramago narrando sua visita à Cultura, em 2008:

“A última imagem que levamos do Brasil é a de uma bonita livraria, uma catedral de livros, moderna, eficaz, bela. Uma livraria para comprar livros, claro, mas também para desfrutar do espetáculo impressionante de tantos títulos organizados de uma forma atrativa, como se fosse não um armazém, como se uma obra de arte se tratasse. A Livraria Cultura é uma obra de arte”.

Resta saber como – ou quem – vai financiá-la.

 

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