Entre seus 31 e 43 anos, no cargo de diretor-executivo do Banco Nacional, José Luiz de Magalhães Lins era tão bem informado que um presidente da República podia procurá-lo para saber o que se passava em seu governo.

O banqueiro não dispunha de grampos telefônicos, nem de relatórios secretos. Em seu escritório, na esquina da avenida Rio Branco com a rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, simplesmente conversava com as pessoas certas e exercia a arte de guardar segredos.

Magalhães LinsSua influência – sem fronteiras ideológicas – tinha como pilares a discrição e a isonomia. De um lado, financiava a União Nacional dos Estudantes (UNE), celeiro de jovens lideranças de esquerda; de outro, conspirava com oficiais militares engajados na deposição de João Goulart, nas beiradas do golpe de 1964.

Com uma abertura mental incomum no mercado financeiro da década de 1960, Magalhães Lins concedeu linhas de crédito para artistas, produtores e profissionais com baixos salários. Confiante em seu humanismo capitalista, fomentou a revolução do Cinema Novo e a modernização do jornalismo.

Seu nome frequentava os bastidores da política, economia, cultura, Judiciário e imprensa, enquanto ele tomava cuidados para que a extensão de seu poder não ganhasse as manchetes dos jornais financiados por seu próprio banco.

Na ditadura, Magalhães Lins nunca duvidou de que era monitorado pelos militares, e mantinha um telefone especial para conversas sigilosas, que envolviam a embaixada dos Estados Unidos. Nos anos 1990, em sua casa, o major Heitor Aquino Ferreira confessou ter acompanhado escutas do banqueiro feitas pelo SNI com o intuito de informar os generais Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel sobre movimentações de lideranças civis.

No período em que liderou o Banco Nacional, Magalhães Lins vestia sempre paletó preto e camisa branca – um figurino ideal para reunião, casamento ou velório – comia um invariável picadinho no almoço, e, ao longo do dia, controlava a mágica de saber a quem conceder uma linha de crédito, confiando mais em artistas e escritores desregrados do que em figuras da alta sociedade.

À beira da falência, ou de um infarto, o cronista Antonio Maria pedia seu socorro para cobrir dívidas. Maria radiografou o jovem banqueiro: “Muito sério, sem ser triste. Muito equilibrado, sem ser velho.” Mais moderado nos gastos, o romancista Guimarães Rosa contou com a sua assessoria em um projeto de fazenda de café no Paraná. Zé Luiz, como era chamado por amigos, não apenas liberava dinheiro, mas fazia sugestões sobre a estrutura dos negócios.

Em novembro de 2020 e julho de 2022, tivemos dois longos encontros em que Zé Luiz, sempre analítico, transpirava objetividade e um interesse diversificado pelo teatro político.

Nas conversas, ele avaliava personalidades de gerações mais novas, como Lula ou Guilherme Boulos, e pintava um retrato sóbrio e independente, por vezes inesperado para um banqueiro imerso em um universo conservador. Zé Luiz olhava os fatos e deles extraía conclusões lógicas.

Nos últimos anos, permanecia atento às novidades bibliográficas sobre Churchill, De Gaulle, Roosevelt, Stálin e as duas guerras mundiais, mas seu fascínio maior recaía sobre Deng Xiaoping, a seu ver o grande líder do século XX, um conciliador do irreconciliável ao experimentar a fusão de socialismo e economia de mercado.

Suas leituras surpreendiam em abrangência. Ele comprava reedições do “Dicionário Filosófico” de Voltaire e admirava a série de livros do britânico Simon Sebag Montefiore sobre a corte russa. “Um bom livro precisa ter música de fundo,” repetia Magalhães Lins.

Era seu maior elogio a qualquer obra. Por indicação de seu neto, o cineasta Dudi Lins, leu o romance “O Assassinato do Comendador,” do japonês Haruki Murakami, e aprovou o domínio da narrativa. “Murakami escreve com música de fundo. É muito bom,” elogiou.

Em casa, recebia raros amigos e acompanhava o noticiário no rádio, jornal e televisão. Era monoglota e, se quisesse ler um texto em outra língua, encomendava traduções. Em muitas noites, mesmo depois dos 90 anos, acordava às 3h30 e ficava de olhos abertos no quarto escuro.

Seu sono ainda obedecia ao horário do velho despertador das madrugadas em que assumia o posto de fiscal de barreira de caminhões, na Rio-Petrópolis. Ele tinha 14 anos e se virava em três empregos.

“Eu morava na Praia do Flamengo. Acordava às 3h, pegava um bonde até o Largo do Machado e outro até a Leopoldina. Tomava um café com pão canoa. Pegava o trem das 5h para Duque de Caxias. Invariavelmente, era o único passageiro. Pegava no serviço às 6h e ficava até as 11h. Depois pegava uma carona em algum caminhão até o centro do Rio e chegava no banco ao meio-dia para trabalhar como datilógrafo,” ele me disse.

José Luiz de Magalhães Lins nasceu em 12 de abril de 1929 no ramo pobre de uma família tradicional, na cidade mineira de Arcos, mas viveu desde os quatro anos no bairro do Engenho Novo, no Rio.

Único filho não diplomado de um ministro do STF, Edmundo Lins, seu pai sobrevivia de um pequeno emprego na estrada de ferro Leopoldina. Aos 25 anos, executivo de banco, Magalhães Lins passou a se considerar rico.

Sob proteção de seu tio, o político Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais entre 1961 e 1966, assumiu o comando do Nacional e modernizou sua gestão.

Num primeiro lance, ofereceu crédito a comerciantes e industriais, sem esquecer os lojistas do centro do Rio, seduzidos pelas abordagens dos gerentes. O próprio Magalhães Lins chegou a bater na porta de estabelecimentos de imigrantes portugueses.

Alinhado aos planos de Magalhães Pinto de ser eleito Presidente da República, Zé Luiz estendeu a concessão de crédito a setores tratados até ali aos pontapés. O apoio ao setor cinematográfico marcaria para sempre sua imagem pública.

“Assalto ao Trem Pagador” (1962), de Roberto Farias, foi o primeiro filme a conquistar uma linha de crédito em pessoa física. Sem demora, cresceria a mística dos “papagaios” de Zé Luiz, como eram conhecidas as promissórias renovadas ao infinito, com juros de mercado. Ele ignorou a nuvem de “negócio de risco” que envolvia qualquer projeto cultural, e abriu horários para audiências com intelectuais.

O produtor Luiz Carlos Barreto garante que, sem seu apoio, não haveria Cinema Novo, o movimento de representação crítica da realidade brasileira liderado pelo diretor baiano Glauber Rocha, visto desde então como um protegido de Magalhães Lins.

Do Banco Nacional voariam papagaios para filmes marcantes do cinema moderno: “Vidas Secas” (1963), de Nelson Pereira dos Santos, “Os Fuzis” (1964), de Ruy Guerra, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), de Glauber.

Para financiar “Terra em Transe” (1967), Glauber não precisou sequer falar em roteiro ou apresentar umas folhas soltas de projeto. Zé Luiz lhe ofereceu dinheiro suficiente para a pré-produção. Numa cabine especial de “Deus e o Diabo,” o banqueiro ignorou os comentários de assessores conservadores, que apontaram comunismo no longa, e confiou em sua visão pessoal sobre a força do filme.

O escritor Otto Lara Resende, a quem ouvia em questões culturais, estimulava sua simpatia por cineastas e escritores.

“O nosso cineminha já está com ares de macarthismo!”, disse Glauber em carta ao cronista José Carlos Oliveira. “Eu, de um momento para outro, me vejo acuado, sem possibilidades de trabalhar. Acordo de manhã já pensando nas fofocas que poderão fazer nos ouvidos do Zé Luiz: ‘Cuidado, que o Glauber Rocha é louco, irresponsável, transviado, anarquista, demagogo e até homossexual! O Cinema Novo é isto! Cuidado!’”

Em novembro de 2020, Magalhães Lins comentou que o cineasta teve uma conduta íntegra em todos os seus contratos. “Glauber era meio amalucado, mas era uma pessoa diferente. Falava muito. Tudo o que ele fez lá, ele pagou,” atestou.

O raio de sua atuação alcançava as companhias aéreas e os jogadores de futebol. Um dia, no meio de um almoço com Otto Lara Resende e Nelson Rodrigues, alertou: “Sabe quem vem aí? O Garrincha!”

Com a exatidão de suas hipérboles, Rodrigues descreveria o encontro do banqueiro com o ponta-direita: “Foi um quadro de Pedro Américo o aperto de mão do Zé Luiz e de Garrincha”. No filme “Garrincha, Alegria do Povo” (1962), de Joaquim Pedro de Andrade, o craque da seleção brasileira visita o Banco Nacional, e as imagens foram menos encenadas do que se poderia imaginar. As visitas de Mané eram frequentes. Em 1968, o banqueiro evitou sua prisão ao pagar em juízo as pensões que Garrincha devia à ex-mulher.

Em seu microcosmo, a sede do Banco Nacional condensava as questões do País. Graças às artes diplomáticas do sobrinho, o conservador Magalhães Pinto conquistou a simpatia da esquerda e a boa-vontade de setores da direita contrários ao seu crescimento na UDN (União Democrática Nacional).

Além de torná-lo mais poderoso, Zé Luiz o deixou mais rico. Em 1948, ao ingressar no banco, a família Magalhães Pinto possuía somente 1% das ações. Em 1972, ao deixar a direção indisposto com os herdeiros de seu mentor, ela controlava 48% do capital, um salto construído com as fusões de bancos.

Na saída do Nacional, sentindo-se injustiçado pelos primos, Zé Luiz limparia as gavetas e nunca voltaria a falar com Magalhães Pinto, que o tratava como filho.

Na estratégia de Zé Luiz, o projeto de poder do tio não se viabilizaria sem a conquista da imprensa. Passo a passo, o banqueiro conquistou a intimidade de mandachuvas da mídia, sobretudo de Adolpho Bloch, Chagas Freitas, Nascimento Brito, Octavio Frias de Oliveira, Roberto Marinho, Samuel Wainer e Carlos Lacerda.

Em 1971, em uma noite dramática no desfecho do acordo da Globo com o grupo americano Time-Life, Marinho pediu a Zé Luiz um empréstimo milionário que manteve a emissora sob seu controle.

“Eu fui conhecendo, convivendo, trocando ideias. Fiquei amigo deles todos. Só não tive relação íntima com ‘O Estado de S.Paulo’. Não consegui, mas depois tive contatos posteriores, porque eles tiveram momentos de falência”, lembrou Magalhães Lins, em 2020.

“Com todos os outros jornais eu tinha muito boas relações. Financiava. Nunca perdemos dinheiro. Isso é uma coisa importante. Samuel morreu e não me devia um tostão. O Adolpho quebrou e com ninguém perdemos dinheiro”.

Em 1962, a pedido do Presidente João Goulart, Wainer o convidou para ser o coordenador da campanha do presidencialismo no plebiscito do ano seguinte. “Samuel Wainer me procurou e disse: tem o negócio do plebiscito, Jango está preocupado, porque é uma eleição solteira, não tem voto obrigatório, não tem partido. Portanto, não tem transporte, nem alimentação. Ganhar, não tem dúvida. O problema é o comparecimento. Porque se ficar com 40%, desmoraliza, vai entrar fraco. Ele quer o comparecimento,” recordou Zé Luiz, que pediu licença a Magalhães Pinto antes de assumir as luvas de um adversário.

“Magalhães tinha interesse também de que houvesse a eleição (em 1965)”, me disse o banqueiro. “Todo mundo tinha. Carlos Lacerda, todo mundo. Magalhães era candidato. Desde menino era candidato. Então, eu fui conversar com João Goulart no Palácio das Laranjeiras. Fui, sentei lá com ele. Vale até fazer um perfil dele. Porque Jango, ao contrário do que se pensa, era uma pessoa doce. A índole boa. Era uma pessoa que não machucava ninguém. Mas era dominado pelo cunhado (Brizola).”

Darcy Ribeiro, ministro de Goulart, deu uma declaração que orgulhava o banqueiro: “José Luiz foi o melhor, mais competente e honesto tesoureiro de campanha que jamais vi.”

Nada despertava mais sua sede de memorialismo do que sua participação nos bastidores da crise militar do governo Jango e das conspirações que levaram ao golpe de 1964, no qual reconhecia um contragolpe.

“Nas vésperas, as coisas estavam esquentando, o marechal Denys nos aconselhou a procurar o marechal Dutra. Ele morava na mesma rua do Castello Branco, que era a Rua Redentor, em Ipanema. Fomos eu, o Magalhães, o secretário de Justiça e o secretário de segurança (de Minas Gerais). Estava lá o marechal Dutra com o filho. Expusemos a situação. Ele estava aposentadíssimo. Ele nos disse: ‘vocês vão lá no Castello Branco’. Nós não tínhamos tido contato ainda. Ele telefonou. E fomos pra casa do Castello Branco, lá conversamos com ele. Bom, começamos a conversar”, testemunhou em 2020. Zé Luiz integraria esse núcleo de conspiradores até o desenlace de abril de 1964.

O ímpeto memorialista era uma marca do banqueiro. Nas noites insones, ele ia para seu gabinete e datilografava notas soltas sobre episódios de sua vida.

O homem de trajetória enroscada na história de seu país, com vivências exuberantes, ainda que discretas, chegou a anotar frases com tintas de melancolia. “A realidade é pior que a ficção”. Ou: “De modo geral, a vida é muito triste”.

Mas aparentava felicidade na vida familiar, na mansão ao pé do Corcovado, no Humaitá. Com sua esposa, Nininha Nabuco, neta do abolicionista Joaquim Nabuco, o banqueiro teve cinco filhos: Ana Cecília, Maria Cristiana, José Antonio, José Luiz Filho (morto aos 43 anos, de um tumor cerebral) e João Paulo.

Até os dias finais, Magalhães Lins controlou suas finanças e, apesar de sucessivas pneumonias, não abandonou os charutos dominicanos. Emocionava-se com a perda de amigos.

Em julho de 2022, através de José Antônio, seu filho e braço-direito, ele me chamou à sua casa para falar da modelo e escritora Danuza Leão, então recém-falecida.

Pela primeira vez em trajes informais, narrou um encontro com a amiga em 1964, na sequência da morte de Antonio Maria, seu ex-marido. Eles se conheciam desde o casamento dela com Samuel Wainer, nos anos 1950. De Paris, Danuza telefonou para o banqueiro, avisou que pegaria um avião para o Rio e perguntou se poderia marcar uma audiência.

No dia seguinte, ela entrou com uma bolsa em seu gabinete. “Não vim pedir dinheiro. Eu queria que você me fizesse um imenso favor. Isso aqui é tudo o que eu tenho. São as minhas joias. Eu queria que você entregasse aos filhos de Antonio Maria. Estou lhe dando tudo o que eu tenho,” pediu Danuza.

Zé Luiz parecia emocionado. “Desculpe a imodéstia. Eu conheci muita gente na intimidade. Vinham pedir dinheiro. Você sabia da vida. Danuza foi a pessoa que eu conheci de melhor caráter. Eu não conheci ninguém de melhor caráter do que ela. Pode ter. Mas eu não conheci,” disse.

Na ocasião, preservava o faro político na análise dos meses finais do governo Jair Bolsonaro, prenunciando espasmos golpistas. “Estou me convencendo de que vão tentar alguma coisa”, comentou, espantado com a reunião do presidente com embaixadores para questionar o sistema eleitoral brasileiro.

“O Brasil está uma coisa que dá medo. Eu tenho medo. O discurso com os embaixadores, aquilo é de uma gravidade. É a intenção dele. Ele mostrou pro mundo que pretende dar o golpe”. Zé Luiz para e fica um tempo em silêncio.

“Pessoalmente, eu convivi muito com os militares. Devo ter uma lista de militares que eu conheci. A autoridade existe. O número 1 mandando, vão obedecer. Se ele justificar, dão um golpe. Quem conhece militar, como eu conheci… Se houver decisão, vão fazer. Meu medo é esse. Não tenha dúvida disso. Quem decide é o número 1. Tenho medo de haver. Vão arranjar alguma coisa pra ficar mais um período.”

No dia 8 de janeiro, ao assistir pela TV os atos de vândalos e terroristas em Brasília, considerou tudo aquilo “uma palhaçada.”

Magalhães Lins morreu em 3 de fevereiro, aos 93 anos, deixando nos filhos a impressão de que se despedia aos poucos, como se escrevesse seu desfecho com música de fundo.

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