José Luiz de Magalhães Lins, um personagem tão importante quanto misterioso da vida brasileira, nos deixou na sexta-feira aos 93 anos.

O mineiro da pequena cidade de Arcos dirigiu brilhantemente o Banco Nacional, do qual se tornou CEO aos 31 anos e onde primou pela inovação. Foi um grande mecenas do Cinema Novo e da literatura, e conselheiro de poderosos como Roberto Marinho.

Mas para mim, o mais importante é que Zé Luiz era meu mentor e amigo desde 1975, quando me recebeu a pedido de meu pai, seu amigo e médico de longa data.

Mal sabia eu o extraordinário presente que meu pai me deixava.

Na época, era dado como certo por mim e minha família (repleta de médicos ligados à UFRJ) que no final daquele ano eu entraria para a Faculdade de Medicina da UFRJ.

Jose Luiz de Magalhaes LinsOcorre que em algum momento no meio do ano eu descobri que não tinha a vocação para a medicina de meus parentes. Me vi assim um tanto perdido quanto ao que estudar.

Disfarçando a tristeza, meu pai sugeriu que eu conversasse com algumas pessoas para ter uma ideia dos possíveis caminhos a seguir. Zé Luiz foi uma delas, certamente a mais marcante.

Nossa primeira conversa – eu com 18 recém feitos e ele com 46 muito bem vividos – foi simplesmente extraordinária. Lembro-me bem de subir a longa escada da casa na Rua Icatu onde ele morou até o último dia: eu estava ansioso, com o coração batendo mais forte do que a escada demandava.

Do início da conversa pouco me restou, tamanha a tensão, mas em algum momento ele de forma muito simpática começou a me fazer umas perguntinhas, como quem não quer nada.

Era um homem encantador, sempre bem humorado e atencioso, e eu, ao responder, comecei a me sentir à vontade. Em geral, perguntas geram tensão, mas com ele foi o oposto. Quis saber quais assuntos me interessavam (muitos), por que não medicina (não me sinto bem em hospitais), minhas leituras (os que a escola recomendava, mistérios, jornais), se gostava de escrever (não muito, mas peguei o gosto), se me dava bem com a matemática (sim).

Eu estava levando de goleada nas perguntas, mas encaixei algumas sobre negócios e finanças. Comecei a me animar. Aí veio uma mais direta: dinheiro importa para você?

Eu disse que sim. Estava engarrafado dentro de mim, e ele me destampou. Sempre ouvi de meus pais que o mais importante era fazer algo que se gosta. Fazendo com gosto se faz melhor e, quem sabe, até se ganha algum.

Eu mesmo ao longo da vida sempre disse às pessoas que o dinheiro não é um bom conselheiro, o que mantenho sobretudo para casos acima da subsistência. Ainda assim, me assustei um pouco com a minha resposta. Mas logo ficou claro na conversa que era possível uma convivência entre os objetivos de gosto e ganho.

Procurei me informar um pouco mais e fiquei entre administração e economia. Com a benção dele fui para economia, pela formação geral, pensando em um MBA mais adiante, após estagiar e trabalhar um pouco. Que alívio, tinha achado um caminho!

(Mais tarde, meu pai me contou que, após a primeira conversa, Zé Luiz lhe disse que se necessário bancaria minha pós-graduação nos Estados Unidos.)

Comecei na PUC em 1976, antes portanto do salto de qualidade que o departamento de economia deu a partir do segundo semestre de 1977. Voltei a Zé Luiz rapidamente, buscando um estágio. Na época ele era conselheiro da Atlantica Boavista de Seguros, presidida por seu cunhado Antonio Carlos de Almeida Braga. Braguinha acatou a recomendação de Zé Luiz e me ofereceu um estágio a partir do segundo semestre, na área técnica, comandada pelo professor Sousa Mendes, um atuário de mão cheia e um professor nato. Foi uma escolha perfeita e lá fiquei um ano proveitoso.

Em algum momento naquele período comecei a virar o placar das perguntas com Zé Luiz; agora, eu perguntava mais.

Foi uma constante da minha vida daí para frente, e mais uma prova da generosidade dele com seu tempo. Alguns aspectos de nossas conversas começaram a tomar forma na minha mente ainda confusa.

Economia é muito interessante, mas vale a pena dominar algumas ferramentas mais práticas e indispensáveis, como contabilidade e finanças. Ambas de extrema utilidade quando conectadas com a vida real, como estamos vendo nas manchetes ultimamente. Mas a sugestão dele que mais me chamou atenção foi o uso de sistemas de computação, seu potencial e seus riscos.

Para me motivar, Zé Luiz me deu um livro intitulado O Arlequim, de Morris West, a trama de um banqueiro envolvido em crimes ligados a sistemas de computação, certamente um alerta precoce quanto aos cyber-riscos de nossos tempos. Aqui, mais uma marca de Zé Luiz: o grande interesse pela leitura e o prazer em presentear os amigos com livros, sempre acompanhados de um cartão contendo algum comentário interessante e afetuoso.

Seguindo a recomendação de meus professores, trabalhei por dois anos no departamento e me dediquei mais aos estudos. Em 1979, ele assumiu a espinhosa missão de presidir o Banerj e me ofereceu um estágio. Meu pequeno papel era fazer análises de mercado e outras.

O que mais me marcou a memória foi o estado precário das informações sobre o caixa, que, se não me falha, não era conhecido com precisão em tempo real, algo inaceitável para um banco. À época o Banerj tinha investido em computadores, que não estavam instalados…

Fiz o que pude, de forma um tanto artesanal. Zé Luiz, à la Nelson Rodrigues, me mostrando a vida como ela é. Deixou em mim uma desconfiança dos bancos públicos que me foi útil em duas passagens pelo Banco Central.

A essa altura a trilha apontada por Zé Luiz estava consolidada – ela acabou sendo mais acadêmica do que havíamos imaginado, mas a conexão pragmática com a realidade da economia se manteve. Mas mais importante para mim, a conexão com ele se manteve e seguiu se aprofundando.

Em agosto de 1981 ele aceitou ser meu padrinho de casamento. Pouco tempo antes da data, meu pai teve que operar o coração, o que nos levou a casar no apartamento de minha noiva e hoje esposa. Àquela altura eu já tinha percebido que Zé Luiz quase nunca ia à rua, mas ele e Nininha compareceram ao casamento, para nossa alegria.

Nos vários anos em que vivi fora do Brasil, estudando ou trabalhando, sempre que passei pelo Rio estive com ele. Foram vários almoços, sempre no escritório dele no Tribunal de Contas do Estado ou, terminado seu mandato, em sua casa. O cardápio raramente variava, um delicioso cozido.

Hoje eu entendo melhor o porquê dos cuidados que ele tinha com a privacidade: tendo me exposto publicamente ao longo da vida, ao contrário de meu mentor, pude após algum tempo concluir que em restaurantes ficam inviáveis as únicas conversas verdadeiramente interessantes: sobre coisas sérias ou bobagens! Mais uma lição do mestre.

Esse hábito quase obsessivo com a privacidade, dele e dos amigos, explica o papel praticamente invisível de consiglieri que ele desempenhou durante toda sua vida. Nos negócios bancários, na política, nos grandes temas públicos, Zé Luiz oferecia algo muito raro: total confiança.

Mas ele oferecia muito mais, como pude testemunhar em meus 47 anos de aprendizado e amizade. Em primeiro lugar, a capacidade de ouvir e entender os interesses e preocupações de seus interlocutores. Não foi à toa que grandes líderes e personalidades confiaram cegamente nele.

Em segundo lugar, uma raríssima capacidade de identificar o que era realmente relevante em situações frequentemente muito complexas, nos mais diversos ramos, e assim poder decidir ou aconselhar da melhor maneira possível.

Aliada a essa habilidade, ele temperava tudo com um bom senso surreal. Não é à toa que construiu uma base de conhecimento e uma rede de relações sem paralelo, e sem a facilidade dos instrumentos e veículos do nosso tempo – bem, sem seus vícios e custos também. Tudo isso ao vivo ou, com cuidado, por telefone ou bilhetes.

Ao saber de sua partida, imediatamente pensei, ‘Puxa, ainda tenho tantas perguntas…’ No entanto, passado o choque maior, me dei conta de que as mais importantes ele já tinha respondido todas. Muita sorte a minha.

Arminio Fraga foi presidente do Banco Central.

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MEMÓRIA:  José Luiz Magalhães Lins, um século (e um suco) de Brasil