O ajuste fiscal que a dupla Levy-Barbosa está preparando deve conter um elemento forte de aumento de impostos: seja a volta da CIDE nos combustíveis, o fim da “desoneração” do IPI e, se depender de alguns aliados, até uma nova tributação sobre dividendos. Marcos Lisboa 

Esse pacote de maldades tem causado apreensão e desânimo no setor privado, que prefere um Governo criativo que ache onde cortar a um Governo que faça o mesmo de sempre: aumentar uma carga fiscal que já está entre as maiores do mundo.

Mas com o arrocho fiscal com cara de fato consumado, a recusa de cada setor da sociedade em ser ele a pagar a conta do ajuste remete à velha questão da “meia-entrada” no debate econômico.

A evidência mostra que quando todos na sociedade desfrutam de algum benefício particular — como a meia-entrada no cinema para estudantes e idosos — os preços acabam subindo para todos. Como não existe almoço grátis, o que as empresas e governos fazem é deslocar o custo do benefício de um setor para os ombros de outro. No final, cada setor se vangloria de ter a sua vantagem, o seu cartório, mas os custos para a sociedade como um todo sobem.

Traduzindo isto para o debate fiscal: todo mundo é a favor do superávit primário, desde que seus impostos não subam, ou que os benefícios e privilégios públicos recebidos não sejam reduzidos.

O economista Marcos Lisboa tem alertado a sociedade para o problema da meia-entrada, que ele considera um traço marcante do desenvolvimento institucional do Brasil. Hoje vice-presidente do insper, Lisboa trabalhou na agenda de microrreformas sob o então Ministro da Fazenda Antonio Palocci. Na época, a equipe conseguiu avanços importantes como na área de crédito (com o consignado e as letras de crédito), a reforma do mercado imobiliário, a nova lei de falência e a abertura do mercado de resseguros.

Para Lisboa, o debate que se instalou esta semana sobre o custo do ajuste fiscal é uma oportunidade para o País discutir as distorções do regime fiscal brasileiro, que, como na meia-entrada, fazem os impostos serem elevados para a maioria da população.

 

Como você receberia um pacote fiscal que aumente a arrecadação tributando dividendos?

Se esse pacote vier nos termos em que está sendo noticiado, vai ser muito ruim para a economia porque vai tributar mais quem já está pagando imposto alto. É importante separar, neste debate, o dividendo pago pelas empresas que são tributadas pelo lucro real — e muitas pagam mais de 30% — da tributação paga pelas “pejotinhas”, as PJs criadas por profissionais para pagar menos imposto. As de lucro real já pagam muito. Já nas PJs individuais, tem espaço pra uma melhora.

Mas o trabalhador que optou por ser uma PJ abriu mão de todos os benefícios — não tem 13o, nem FGTS, nem plano de saúde — para pagar menos imposto. Não é uma troca justa?

Muitos desses arranjos trabalhistas são na verdade esquemas de elisão fiscal. Um regime fiscal equilibrado deveria ser neutro para as relações trabalhistas e para as decisões de investimento nos diversos setores. Infelizmente, como a gente tem uma série de exceções e uma variedade impressionante de regimes diferenciados, a questão fiscal se torna determinante para essas decisões. A reforma recente do Simples, por exemplo, criou um regime diferenciado para diversas categorias profissionais. Se uma empresa gasta 100 mil reais ano com um advogado, seu funcionário, ele recebe pouco mais de 50 mil. Se o mesmo funcionário constituir uma empresa, no entanto, ele vai receber mais de 95 mil reais. Em um caso, a tributação e as contribuições consomem quase metade dos recursos. Em outro, 4,5%.

Qual deveria ser o princípio fundamental de um regime fiscal ideal?

O regime fiscal equilibrado deveria considerar toda a sua renda bruta e todo o imposto que você já pagou, direta ou indiretamente, e deduzi-lo da sua carga tributária, e aí você paga a diferença. Se todos com renda parecida pagarem impostos parecidos, a alíquota que vale para a maioria poderia ser menor. Os acionistas já pagam impostos e contribuições quando o lucro das empresas é tributado. A incidência legal é sobre as empresas; a incidência econômica é sobre os acionistas. Tributar mais uma vez a mesma renda, agora quando o lucro é distribuído, é penalizar quem compromete seus recursos com o país. Prejudica a produção e a geração de renda e de emprego. O tema da bitributação não é exclusivo do Brasil. O que é peculiar ao Brasil é a elevada carga tributária em comparação com os países em estágio semelhante de desenvolvimento.

E os juros sobre o capital próprio (JCP)? (Glossário: Forma das empresas distribuírem o resultado para seus acionistas, que pagam 15% de IR na fonte sobre o valor.)

Tem gente muito boa com críticas pertinentes ao JCP. Só que, se o JCP cria uma distorção, ele corrige outra. É o seguinte. Se sua empresa precisa de 1 milhão de reais, você tem duas escolhas: ou coloca dinheiro do próprio bolso ou toma um empréstimo no banco. Se você tomar o empréstimo, o custo dos juros vai ser deduzido do imposto de renda a ser pago sobre o resultado, mas se você colocar seu dinheiro na empresa, você vai pagar imposto sobre o resultado integral. O JCP procura corrigir a diferença entre a tributação caso o empresário aumente o capital do seu negócio, ou tome um empréstimo para o mesmo fim.

Quais as maiores meias-entradas no Brasil de hoje?

A tributação é o primeiro exemplo, um tema que os técnicos da Receita tem alertado há muitos anos. O mesmo ocorre com o crédito, onde há setores com acesso a empréstimos subsidiados, que pagam juros abaixo do mercado, enquanto outros têm que tomar linhas a custos altíssimos. Isso leva à crítica de que os spreads bancários são altos (glossário: a diferença entre a taxa que os bancos pagam pelos recursos e que cobram dos tomadores de crédito). Isso é parcialmente verdade. Muitos pagam cerca de 20% de spreads, enquanto outros pagam 3%. O spread médio, por sua vez, fica na casa de 11%. A história se repete. Alguns pagam mais caro, para privilégio de um grupo beneficiado. Como no caso da meia-entrada do cinema. Infelizmente, esses exemplos são mais comuns do que deveriam ser na nossa economia. O Brasil avançou muito nos últimos 20 anos, mas infelizmente não avançou na redução do tratamento privilegiado a grupos selecionados.

Qual é o tamanho do ajuste fiscal que o País tem que fazer?

O tamanho do ajuste é muito forte, e a equipe econômica sozinha não tem instrumentos para fazê-lo. Tem que ser uma agenda de governo. Antes de mais nada, não tem essa de ‘superávit primário mas aí tira o PAC e depois tira mais não sei o quê’. Isso é truque. Muda o número reportado sem mudar os fatos e o endividamento bruto do governo, a conta que todos nós temos que pagar. Quem se debruçou sobre os números diz que temos um déficit primário recorrente de cerca de 0,5% do PIB, com uma piora adicional já contratada para o ano que vem.

Para irmos de -0,5% para +1,2% em 2015, como prometido pela nova equipe, é ajuste de cerca de 100 bilhões de reais! Não vai ser com CIDE, com um aumento aqui outro ali que vai se chegar lá. Infelizmente, o tamanho exato do ajuste não é fácil de ser estimado em decorrência da piora da qualidade das informações e dos inúmeros artifícios que foram ampliados nos últimos anos.

O ministro da fazenda, com autonomia, pode fazer esse ajuste?

Os gastos sob controle do Executivo são de cerca de 8% da receita, o que é insuficiente para o ajuste anunciado. Esse número inclui todo o investimento público, o Minha Casa Minha Vida, e muitas despesas essenciais para o funcionamento da máquina pública. Fazer esse ajuste requer uma agenda de governo, com medidas em várias áreas além da Fazenda, incluindo mudanças que requerem aprovação pelo Congresso. O Governo deveria esclarecer as medidas que vai propor e mostrar um plano de ação.

E o humor do mercado nessa história toda?

Eu jantei outro dia com um grupo de pessoas, a maioria do mercado financeiro. Você via nitidamente que eles estavam ali querendo ouvir notícia boa, mas na medida em que eu detalhava o tamanho do ajuste, os olhos deles iam murchando… Tem gente que não entende isso, mas o mercado torce — e muito — para este governo dar certo. Os preços estão muito baixos, muitas empresas enfrentam dificuldades. Se o ajuste for bem sucedido, tudo vai se apreciar, a solidez da economia aumenta, e se reduz o risco da gente ser afetado por uma mudança no cenário externo.

Um ajuste bem anunciado, com credibilidade e transparência sobre os números e instrumentos a serem utilizados, vai ajudar na recuperação rápida da economia. Claro que, se não for cumprido, a melhora terá vida curta.

A dificuldade é enorme, mas temos que dar o benefício da dúvida, até porque o Joaquim é um cara impressionante. Mas, repito, não pode ser um ministro só, tem que ser uma agenda do Governo.

O que temos de concreto de ajuste até agora?

Há a escolha do Joaquim, o que significa muito. Além disso, antes do anúncio dos novos ministros, o Nelson Barbosa defendeu publicamente diversas medidas importantes de ajuste. Por outro lado, tudo o que saiu de concreto até agora, desde a eleição, foi no sentido de piorar o quadro fiscal. Teve aumento do Fundo de Participação dos Municípios, ainda mais recursos para o BNDES, e a revisão dos juros das dívidas dos governos locais, com ônus para o governo federal, para citar apenas alguns exemplos.

A Presidente e a equipe econômica falam em ajuste e metas ambiciosas. E o mundo real sai tudo ao contrário. É um cenário esquizofrênico. Para o bem de todos, tomara que isso não dure muito.

O ajuste será suficiente para a retomada do crescimento?

Essa é uma dificuldade adicional. Um forte ajuste fiscal é apenas parte do necessário. Essencial, fundamental. Mas, depois dele, a retomada do crescimento requer uma agenda de melhora do ambiente de negócios e desfazer as distorções introduzidas nos últimos anos. Retomar a agenda de melhora do crédito, sobretudo para os investimentos de longo prazo, reduzir os custos de transação da nossa economia e a proteção sem a contrapartida de metas de desempenho de setores selecionados são essenciais para aumentar nossa capacidade de crescer.

Sobretudo, é essencial uma agenda de transparência e avaliação das políticas públicas. A sociedade deve ter o direito de saber quem recebe benefícios e tratamento privilegiado do governo. Os dados sobre a transferência de recursos públicos para grupos selecionados, que sejam distintos dos critérios dos adotados para o restante da população, deveriam estar disponíveis para o debate democrático. Quais grupos ou empresas foram privilegiados pelos créditos subsidiados? Quem foi beneficiado pelas políticas de proteção setorial? Quais os seus resultados? Dessa forma a sociedade, informada, poderia deliberar sobre as políticas que deveriam ser expandidas e as que deveriam ser extintas.