Quando se tornou líder sindical em meados da década de 1970, Luiz Inácio Lula da Silva se apresentava, em plena ditadura, como alternativa ao chamado “sindicalismo de Estado” instituído por Getúlio Vargas entre 1931 e 1943.

Como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, Lula bradava contra o “peleguismo”, defendia a autonomia política dos sindicatos e se manifestava contrário à cobrança do imposto sindical.

Lula era, por assim dizer, o anti-Getúlio. Este, influenciado pela Carta del Lavoro, lançada em 1927 pelo Partido Nacional Fascista de Benito Mussolini, trouxe o sindicalismo brasileiro para o controle estatal. Até a década de 1920, os sindicatos eram autônomos e inspirados no ideário anarco-comunista (ou sindicalismo revolucionário).

Com a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) em 1943, Getúlio atingiu três objetivos: assegurou aos trabalhadores urbanos benefícios e proteções nas relações com o capital, instituiu um imposto para financiar os sindicatos e, assim, os manteve sob as rédeas do Estado.

O “novo sindicalismo” ou “sindicalismo autêntico” defendido por Lula nunca rompeu com a CLT – mas caracterizou-se por ter independência em relação ao Estado, aos sindicatos patronais e, antes da fundação do PT em 1980, a legendas políticas.

O plano de Lula nunca foi confrontar os patrões. O mais importante era negociar e chegar a um acordo no menor prazo possível, já que cada dia parado era um dia a menos no salário do grevista. O então líder sindical cultivou um bom relacionamento com representantes das multinacionais da indústria automobilística, como Mario Garnero, que presidiu a Anfavea, e Gerhard Schröder, que, antes de se tornar primeiro-ministro da Alemanha, participou de negociação com Lula quando foi dirigente da Volkswagen AG.

Se por um lado cultivava boa relação com o capital, Lula tomava sempre o cuidado de inteirar-se das expectativas da maioria dos trabalhadores que representava. Antes de iniciar as assembleias convocadas para deliberar sobre as greves, caminhava no meio da multidão para tomar pé do sentimento dominante entre os operários.

Em abril de 1980, enquadrado por um dos expedientes mais autoritários do regime militar – a Lei de Segurança Nacional –, o então dirigente sindical foi preso pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).

A prisão aumentou a notoriedade nacional de Lula, que, naquele ano, decidiu fundar o PT. Três anos depois, criou o braço sindical da nova sigla: a Central Única dos Trabalhadores (CUT).

Quando chegou à Presidência, Lula deu pouco espaço, no primeiro escalão, aos antigos companheiros do sindicalismo. Questionado, disse: “O sindicalista do governo sou eu”. No início de 2005, depois de colher os primeiros frutos do austero ajuste imposto às contas públicas, Lula achou por bem enviar ao Congresso proposta de reforma sindical.

Uma das medidas previa o fim do imposto sindical. Dizia-se em Brasília que somente Lula, um ex-sindicalista, tinha condições de desmontar o “sindicalismo de Estado” de Getulio e reformar a CLT. O fim do imposto tinha o apoio da CUT, que chegou a orientar seus sindicatos a devolverem os recursos arrecadados com o tributo.

Lula queria aprovar também uma lei para disciplinar as greves do funcionalismo. Não se conformava com o fato de os dias parados, durante as greves dos servidores, não serem descontados dos salários. “Greve de funcionário público é férias,” dizia.

A reforma sindical começou a tramitar na Câmara, mas em abril daquele ano eclodiu o mensalão, um escândalo de proporções épicas que dois meses depois derrubou José Dirceu, o ministro mais forte do governo e o principal artífice da ascensão de Lula.

Acuado pela abertura de três CPIs, Lula enviou emissários ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para saber se a oposição estava disposta a propor seu impeachment. Apesar de terem protagonizado a mais civilizada transição de poder da história do País, o petista e o tucano não viviam o melhor momento de sua relação.

Magoado com a narrativa da “herança maldita” entoada pelas claques petistas, o presidente de honra do PSDB não se comprometeu a ajudar Lula, mas mandou uma mensagem ao petista. O recado era uma pequena aula de como funcionam as coisas em Brasília.

Impeachment, disse FHC, depende da combinação de três fatores: apoio das ruas, maioria no Congresso e um motivo que juridicamente justifique a abertura do processo. No primeiro caso, o alarido das manifestações promovidas nas capitais e cidades de porte médio já era escutado em Brasília.

Justificativa técnica havia aos montes: o uso de recursos de caixa 2 no financiamento da campanha presidencial de 2002 foi revelado pelo publicitário Duda Mendonça e admitido pelo próprio presidente. Essa prática, alegou em entrevista, é “sistematicamente” adotada nas eleições brasileiras. “E apoio político [para um impeachment], Presidente, já existe?”, indagou um dos emissários de Lula. “Não, mas ainda pode haver,” respondeu FHC.

No momento mais tenso do mensalão, a oposição fez chegar ao Planalto a seguinte proposta: se o presidente desistisse de se candidatar à reeleição em 2006, não haveria pedido de impeachment. Então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, acompanhada de dois ministros, foi ao encontro de Lula no Alvorada, numa manhã quente e seca de agosto de 2005.

Sem rodeios, Dilma disse ao presidente que, após o depoimento de Duda, o governo chegara ao fim da linha, restando-lhe apenas a renúncia. Pela primeira vez desde que chegou à tão sonhada Presidência, com quase 53 milhões de votos, Lula se sentiu profundamente solitário no centro do poder.

Em vez de abatê-lo, as palavras de Dilma o despertaram. Lula entendeu que, para salvar seu mandato, teria que buscar ajuda fora de Brasília. “Vocês não me conhecem,” reagiu o Presidente.  (A “sugestão” de Dilma foi testemunhada por dois ministros que não sabiam que a então ministra cometeria tamanho sincericídio naquela visita.)

A “aula” de FHC, a “oferta” da oposição e a ousadia de Dilma obrigaram Lula a retornar à sua origem sindical. Já que as imagens das ruas projetavam a ideia (falsa, mas vigorosa) de amplo apoio popular à sua queda, ele recorreria então ao poder de mobilização do “seu” pessoal – os sindicalistas – para mostrar força. O Presidente chamou a Brasília os líderes das centrais sindicais, inclusive das rivais da CUT, acusadas desde sempre por ele de peleguismo.

Defensor histórico do fim do imposto sindical, Lula seduziu “seu pessoal” com uma oferta irrecusável: a inclusão das centrais na repartição da receita do tributo. Além disso, nomeou um sem-número de sindicalistas para cargos no alto escalão do governo. Em troca, pediu-lhes empenho absoluto na defesa do mandato.

Os sindicalistas concordaram, mas fizeram uma exigência: “Presidente, o senhor precisa nos prometer que, reeleito, não fará nenhuma privatização. Porque, se depender do [Antonio] Palocci [então, ministro da Fazenda], o governo vende tudo, IRB, Infraero etc”.

A estratégia tinha três objetivos: neutralizar as manifestações de rua contra o governo; mostrar às “elites” que os trabalhadores estavam mobilizados para impedir a deposição do operário que chegou ao poder pelo voto popular; fazer um aceno às esquerdas, insatisfeitas com a política econômica “neoliberal” que sua gestão vinha adotando desde 2003.

Unir o movimento sindical foi uma jogada de Lula que surpreendeu a classe política. Em Brasília, manda quem tem poder real, e este é dado pelo capital político, isto é, pelo número de votos obtidos nas urnas. Esse capital, como tudo na vida, não é perene. Crises drenam capital; conquistas, como inflação baixa e crescimento econômico, o ampliam.

Incluir em sua defesa um elemento com capacidade de mobilização de milhões de pessoas que vivem do trabalho foi, além de uma novidade, um elemento externo ao jogo tradicional da política. Lula colocou os trabalhadores de prontidão, mas não precisou levá-los às ruas. Ora, quem antes foi capaz de fazer isso na história do país? Getulio Vargas.

Fernando Collor e Dilma Rousseff perderam seus mandatos em processos de impeachment porque o capital político com que desembarcaram no Planalto minguou em meio à combinação dos três fatores apontados por FHC. Isoladamente, cada um desses motivos pode influir positiva ou negativamente nos outros dois. Além disso, tem a economia: o apoio popular e parlamentar à queda do Presidente é avassalador quando a economia vai mal – principalmente, quando isso acontece por obra do próprio governo.

Em dezembro de 2005, após oito meses de crise política, a popularidade de Lula caiu ao menor nível de seus dois mandatos, abaixo de 25%. Quando acordou para a gravidade do vendaval que atingiu seu governo – no início, assessores se preocuparam ao vê-lo “governando” como se nada estivesse acontecendo – o petista enfrentou cada vetor da crise.

No terceiro trimestre de 2005, o período mais tenso do mensalão, a atividade econômica desacelerou fortemente. Palocci quis responder à crise com mais arrocho fiscal – o então ministro acreditava que somente assim a oposição baixaria as armas. Lula desautorizou o ministro, mas ouviu com atenção “profecia” que lhe foi feita pelo então presidente do BC, Henrique Meirelles.

“Presidente, no ano que vem, durante a campanha da reeleição, a inflação estará num dos menores níveis da história, o PIB em plena aceleração e o desemprego em queda livre. Basta manter o rumo do que já foi feito,” aconselhou Meirelles.

De fato, em 2006 a inflação, que nos 12 meses até abril de 2003 atingiu 17%, caiu para 3,16%, o PIB avançou 4% e o desemprego, que bateu em 13% em 2003, recuou para 8,4%. Ao longo daquele ano, Lula recuperou paulatinamente a aprovação e foi reeleito. No novo mandato, cumpriu o trato feito com os sindicalistas. Abortou, por exemplo, um plano de privatização dos aeroportos que Dilma pedira ao BNDES para formular.

A reforma sindical foi esquecida num escaninho da Câmara e, por isso, o imposto sindical ganhou uma sobrevida de 12 anos.

Em 2017, por iniciativa do governo Michel Temer, o Congresso mudou a legislação trabalhista e, de roldão, eliminou o tributo. Sem essa fonte, a arrecadação total dos sindicatos caiu de R$ 3,6 bilhões para R$ 68 milhões por ano.

Agora, eleito pela terceira vez em meio a uma polarização política aguda, a um forte sentimento antipetista na sociedade e a uma assombração chamada “golpe de Estado”, Lula quer ressuscitar o imposto sindical que tanto combateu no passado.

Para o Presidente, o ataque às sedes dos Três Poderes, em Brasília – por uma turba financiada por empresários, sob o olhar negligente das forças do Estado – é motivo suficiente para ele mobilizar novamente o “seu pessoal”.

Negar a gravidade do acontecido, acredita, seria tão grave quanto não lutar contra a possibilidade de impeachment em 2005.

Os símbolos da República foram profanados apenas oito dias após a posse de Lula, reconduzido à Presidência pela vontade de 60,3 milhões de brasileiros.

A discussão sobre o retorno do imposto sindical não diz respeito, portanto, às relações capital-trabalho no Brasil, e sim à acirrada disputa política entre o lulismo e o bolsonarismo.

Lula acredita que só não foi apeado do poder durante o mensalão graças à mobilização de “seu pessoal”. Em janeiro, ele subiu a rampa do Planalto contra a vontade de 58,2 milhões de brasileiros. Na Câmara, o PL de Jair Bolsonaro elegeu o maior número de deputados. No Senado, a base de apoio ao governo tem menos votos do que a maioria antipetista. O bolsonarismo está vivo.

O imposto sindical, ao reduzir de forma irrecorrível a renda disponível, é nefando para o trabalhador. Enquanto o imposto antigo tirava R$ 3,6 bilhões por ano do bolso dos assalariados, a nova contribuição vai subtrair quatro vezes mais: R$ 14 bilhões.

A volta do imposto será mais um estímulo à pejotização e à precarização das relações de trabalho, mas fará Lula se sentir mais forte politicamente.  É um preço que, se a sociedade não reagir, o Brasil será forçado a pagar.