Como conselheiro da Petrobras há sete anos, Marcelo Mesquita nunca teve papas na língua quando se trata de defender a companhia e o interesse dos acionistas minoritários que ele representa.
Quando o Governo Bolsonaro tentou mudar a política de preços, Mesquita deu uma série de entrevistas dizendo que o ex-presidente da República teria que mostrar se era ‘comunista ou capitalista’.
Agora, com a gestão do PT tentando mudar o estatuto da companhia para permitir a indicação de políticos e a retenção de lucros excedentes, Mesquita está cada vez mais desconfortável.
Para ele, mudanças na estratégia da estatal e discussões sobre alocação de capital são parte do jogo, mas “questões de governança são discussões que não deveriam estar acontecendo!”
Respeitar a governança deveria ser obrigação de qualquer governo (esquerda ou direita), “senão vamos acabar em outra class action – com a empresa de novo jogando dinheiro no lixo e voltando aos problemas do passado, que foram enormes e péssimos para o País.”
Dos onze conselheiros da estatal, sete votaram a favor da proposta e quatro, contra. Além de Mesquita, os votos contrários vieram de Marcelo Gasparino, José João “Juca” Abdalla e Francisco Petros – todos representantes dos minoritários.
Abaixo, os principais trechos da entrevista:
Depois da reação do mercado à proposta de mudança do estatuto, o CEO da Petrobras, Jean Paul Prates, veio a público dizer que a empresa poderia ter ‘se comunicado melhor,’ que foi apenas um problema de comunicação. É isso?
Não. Eu acho que não. Porque não é inócuo o que está sendo proposto. Este argumento de que ‘tanto faz mexer ou não mexer,’ se for verdade então é melhor não mexer! Aí a ação não cai e não tem essa reação toda. Eles estão mexendo porque tem uma razão para isso – e a razão é o Supremo, a liminar do [Ricardo] Lewandowski que questiona monocraticamente a Lei das Estatais.
Quando você tira do estatuto esses pontos específicos da Lei das Estatais, você abre o caminho juridicamente no Brasil — onde tudo se judicializa, onde o enforcement não é tão claro, onde as coisas são sempre pantanosas juridicamente — para alguém dizer: ‘enquanto tiver uma liminar eu não preciso respeitar a Lei das Estatais.’
Agora, quando está no estatuto, como está hoje, não tem dúvida, está lá. Não é uma questão de Lei das Estatais, é uma questão de estatuto. E aí fica mais difícil de questionar e de discutir. Então essa mudança é relevante sim.
E acho que não deveríamos mexer em coisas que estão funcionando. Por que perder tempo e energia com uma filigrana jurídica? Então não tira, não mexe.
O deputado estadual do Partido Novo de São Paulo, Leonardo Siqueira, está questionando a nomeação de três conselheiros por violarem o estatuto. Essa ação popular está correta no mérito?
Eu acho que sim. O comitê de pessoas e de elegibilidade da Petrobras, por exemplo, analisou os nomes e falou que eles não respeitavam o estatuto e a Lei das Estatais.
No Governo Bolsonaro também houve dois indicados que não foram aprovados pelo comitê, e ainda assim o Governo ignorou e na assembleia colocou o nome que quis. Então isso não é uma questão ideológica. A governança da empresa deveria ser respeitada em prol das instituições do País, da evolução das instituições.
Tem tanta gente boa, tantos nomes bons no País para colocar no conselho… por que você precisa escolher um ou outro cuja indicação viola a lei e o estatuto? Pega outro nome! É desnecessário isso. Ficar tentando afrontar o espírito da Lei das Estatais.
Alguns argumentam que o Governo ‘é dono’ e coloca quem quiser, mas a ideia de não colocar um Ministro, um deputado, um prefeito, é justamente para proteger a empresa. Para ela ter currículos que agreguem no negócio dela. Gente que entende de finanças, jurídico, petróleo, geologia. É um conselho para ajudar a empresa.
Pergunta maldosa: e os políticos não entendem de negócios?
Os políticos foram eleitos para levar o desejo do povo ao Parlamento, não para dar conselhos para uma empresa que tem acionistas privados, que tem que dar lucro.
Os políticos são importantíssimos para levar a voz do povo ao Parlamento. Agora, colocar o Ministro de Minas e Energia, ou alguém do ministério no conselho, por exemplo, é muito complicado, porque eles têm um papel de regulador. Eles têm o papel de desenvolver o setor de energia no País. Quando você tem empresas privadas concorrendo com a Petrobras, quando ela não é um monopólio mais, você cria uma situação complexa onde existe um conflito de interesses difícil de administrar.
É complexo o regulador estar sentado dentro do regulado porque isso afeta o tipo de discussão que você pode ter e o nível de detalhe da discussão que você pode ter – mesmo que ele se abstenha, mesmo que ele saia da sala de reunião quando determinados temas vão ser discutidos.
Por exemplo, o representante dos funcionários na Petrobras, quando tem uma discussão sobre coisas de RH, de salários, de fundo de pensão, esse conselheiro sai da sala. Mas é muito difícil fazer isso no caso de um regulador, porque em teoria ele estaria conflitado quase sempre.
O ponto é o seguinte: não precisa complicar. Tem tanta gente boa que pode ser escolhida, por que insistir nessa complicação?
Mas pelo jeito parece que mexer nisso é muito importante, e que tem alguma coisa por trás que a gente não está entendendo.
Você está no conselho da Petrobras desde 2016, então você pegou os governos Temer, Bolsonaro e agora o Lula. O que mudou do último governo para este na forma como a Petrobras está sendo gerida?
Acho que tem várias coisas. A primeira é que claramente a orientação desse governo é de não vender os negócios da empresa que não são rentáveis, ou que são pequenos, ou que do ponto de vista estratégico não fazem muito sentido que ela opere. Esse Governo não quer vender ativos da empresa como o anterior.
A outra coisa que mudou é essa visão de investir em outros negócios, que esse Governo tem dito que quer fazer. A questão da transição energética, por exemplo. Transição energética, na minha opinião, o País pode fazer com o setor privado, com empresas privadas como a Eletrobras. Eólico, solar, tudo isso são investimentos baixos, projetos pequenos. A Petrobras é muito eficiente em projetos grandes, em coisas no offshore. Em coisas que você não tem empresas no Brasil com a escala, conhecimento e capacidade para fazer.
A visão de mundo deste governo é bem diferente do anterior.
Mas no dia a dia, o que mudou?
Tanto no Governo Temer quanto no Bolsonaro você tinha o presidente da empresa muito independente, com carta branca do Ministério da Fazenda para fazer a empresa eficiente, lucrativa, e assim poder pagar dividendos para o Governo usar como achasse correto — pagar dívidas, investir em educação, saúde, no orçamento.
Nesse Governo, parece diferente. Eu não sinto essa proteção, digamos assim, à independência do presidente vindo do Ministério da Fazenda. Acho que a ligação da Petrobras hoje é muito mais direta com o Lula e com o Ministério das Minas e Energia do que com o Ministério da Fazenda. No passado o Paulo Guedes dizia: ‘A Petrobras faz o que tem que fazer,’ e ela tocava a vida.
Havia tentativas indevidas de interferência do Bolsonaro na empresa? Havia. Mas ela era um pouco blindada pelo Paulo Guedes e pelos seus presidentes. Agora, a empresa tem uma outra orientação.
Mas acho que é muito importante separar o seguinte. Essa mudança de estratégia, de onde vai alocar o dinheiro, se vai vender ativo ou não, acho que podemos discutir isso. Tem muito mérito essa discussão, e em muitos casos não tem certo e errado: só o tempo dirá. Quando você trata de investimentos, não há uma certeza. Você pode fazer um bom ou mau investimento.
Agora, as questões de governança são discussões que não deveriam estar acontecendo. Porque tanto governos de esquerda quanto de direita têm que respeitar a boa governança. Ou seja, não pode ter corrupção, tem que ter decisão bem feita, colegiada, explicada. Tem que ter diligência nas decisões. Transparência nas decisões. Respeito aos minoritários, e tem que evitar os conflitos de interesse.
Senão vamos acabar em outra ‘class action’, com a empresa de novo jogando dinheiro no lixo e voltando aos problemas do passado, que foram enormes e péssimos para o País.
É isso que me deixa muito angustiado: quando começamos a discutir governança, política de preço, essas coisas que não são uma questão de direita ou esquerda.
Direita ou esquerda é o seguinte: ‘vamos privatizar ou não a empresa?’ ‘Vamos vender ativos ou não?’. Eu entendo essa discussão ideológica. Agora, o resto deveria estar pacificado.
Tem havido discussões de alocação de capital no conselho que te preocupam?
Sim. Atualmente está sendo discutido o novo plano estratégico da empresa. Ele ainda não é público, mas deve vir com um investimento maior que os anteriores — o que pode ser saudável se a empresa achar projetos que dão bons retornos e criam valor. Agora, eu não acho saudável tirar o foco da Petrobras das águas profundas e ultraprofundas e da exploração e produção de petróleo. São coisas que, se ela não fizer, ninguém faz.
E ela tem que fazer direito, porque, no passado, a empresa prometia uma curva de produção incrível, com números fantásticos de crescimento – e era muita promessa e nenhuma entrega, porque ela queria fazer tudo. Quem quer fazer tudo acaba não fazendo nada direito. Isso é importante. Acho que ela não deveria perder seu foco.
Investir em outros setores, como fertilizantes na Bolívia, pode até ser um investimento interessante. Mas o nosso histórico na Bolívia foi péssimo. Foi péssimo! Quando houve o impeachment da Dilma, o presidente da Petrobras na Bolívia foi preso pelas autoridades bolivianas. A gente teve ativos encampados na Bolívia que eles não pagaram o valor justo pelo que a gente tinha lá.
Então, infelizmente, a evolução institucional da Bolívia até agora não deu provas de que é um lugar com um risco minimamente razoável para a gente investir lá. Além disso, uma ‘estatal brasileira’ deveria focar seus investimentos no Brasil. Para gerar emprego no Brasil e fazer o Brasil crescer.
Por que a Petrobras quer criar uma reserva de capital?
É uma reserva de procrastinação que eles querem criar. Uma reserva para dar liberdade para acumular o dinheiro na empresa e depois fazer o que quiser com ele. No fundo é isso. Como hoje não tem essa reserva, o lucro excedente que não é investido — que tem sido grande, porque está sobrando dinheiro já que a empresa está muito eficiente e o preço do petróleo está alto — é distribuído aos acionistas.
Na falta de uma reserva, a distribuição do resultado excedente é automática?
Quase isso. A gestão tem que propor isso aos acionistas na assembleia. Você joga a decisão para o acionista.
Qual o problema de se criar essa reserva, na sua visão?
Acho que o problema de mexer na política de dividendos e de criar essa reserva é que quanto mais você dá liberdade para a administração da empresa fazer o que quer, você tira a previsibilidade do mercado e introduz uma variável ruim para o valor do negócio e para a institucionalidade da empresa e do País.
Quando uma pessoa decide as coisas, ela tem capacidade de criar e destruir valor sozinha. Isso cria a possibilidade de pessoas estarem ganhando ou perdendo com esse tipo de movimento. Quando você segue um padrão pré-determinado — X% do lucro e o que exceder vai ser distribuído — ninguém fica esperando a decisão de A ou B para saber o que vai acontecer, e todo mundo tem uma isonomia de informação.
Está havendo uma mudança de rumo, para uma direção pior, ou está havendo mais fumaça do que fogo?
Acho que tem um pouco dos dois. Por exemplo, a criação de uma diretoria de transição energética para investir dinheiro em coisas que não são petróleo, águas profundas, na minha visão é um desvio de atenção, uma falta de foco, e uma coisa ruim. Mas eu entendo quem ache que isso é bom. Não tem certo ou errado. Tem visões de mundo diferentes.
Na questão da política de preços, que se dizia que ia mudar tudo, mudaram o nome… mas o fato é que os preços estão seguindo os preços internacionais. E está havendo importação por players privados, o que denota que a política está correta. Então, apesar da narrativa de grandes mudanças, o fato é esse.
Agora, tem coisas que estão mudando para pior na minha visão. Mexer em governança eu acho que é muito sério. Querer mudar estatuto, reserva, isso tudo, é um início de uma mudança de governança, que seria péssima.
Uma coisa que não parece ser narrativa é que houve muita troca nos escalões médios da empresa. Temos relatos de muita gente que foi trocada, cargos de chefia. A empresa está trocando gente técnica por gente mais ligada ao PT?
Isso é uma pena, porque a empresa tem mais ou menos 100, 150 pessoas, que são os gerentes gerais, gerentes executivos, que estão num nível hierárquico abaixo da diretoria e que são as pessoas-chave da empresa. Lógico que quando você troca o Governo, é normal ter uma mudança nesses níveis também – mas não uma faxina generalizada como houve com a entrada dessa nova gestão.
Quando o Pedro Parente entrou, por exemplo, ele manteve muitos diretores que eram da época do PT. Porque eram pessoas com uma carreira dentro da empresa, respeitadas, que tinham uma história na empresa. É como no Itamaraty, no Exército. São pessoas que têm uma carreira, independente se elas são de direita ou esquerda, elas são primeiro funcionários da Petrobras. São geólogos, engenheiros…
Esse desrespeito ao currículo e ao conhecimento técnico das pessoas é muito ruim para a empresa, porque há vários funcionários de carreira, jovens, que tinham alcançado uma posição de sucesso por mérito e que foram trocados, saíram. Uns foram para o setor privado, outros estão estudando, ou isolados em áreas irrelevantes. Isso é uma perda de cérebros e de conhecimento para a empresa, e é um problema para o País e para a companhia no longo prazo.
A diversidade não pode ser só racial, de gênero, ela também tem que abarcar a diversidade de opinião, de conhecimento técnico. É uma diversidade muito mais ampla. Você não pode dizer que é a favor da diversidade e querer que todo mundo na empresa vote no Lula. Não existe isso. Como vamos pacificar o País assim? Como vamos construir um País com um mínimo de consenso?
Qual é o risco hoje, com a estratégia que a empresa está adotando, da Petrobras voltar a ter resultados ruins como já teve no passado?
Eu acho que as mudanças na Petrobras não são rápidas, porque ela é um bicho muito grande e muito complexo. Então as mudanças que estão sendo feitas hoje vão impactar o resultado da empresa daqui a dois, três anos. Mas o descontrole de custos já está começando a aparecer.
Tem um pouco de descontrole de custos que é da indústria, que é normal. Quando o preço do petróleo sobe, os fornecedores que estavam com margens apertadas começam a aumentar o preço: aluguel de barco, serviço de manutenção, e por aí vai. É normal aumentar o preço. Mas acho que o descontrole de preço vem pelo exemplo. Quando você começa a criar diretorias, criar cargos, criar assessorias, aumentar o número de pessoas, e achar que colocar muita gente é bom, você vai dando um exemplo de que custo não é o foco.
As gestões anteriores se preocuparam muito mais com a questão de custo do que eu estou vendo na atual, e isso já vai começar a afetar resultados no curto prazo.
Agora, quando o preço do petróleo sobe US$ 3, US$ 5, US$ 10, esses custos somem, porque o faturamento cresce e a margem melhora, então fica um pouco mascarado. Mas no dia que o petróleo cair de US$ 90 para US$ 50 de novo, você vai ver o problema em que a gente vai estar.