Neste mês, Wilson Batista faria 110 anos.

Nos idos de 1968, Ricardo Cravo Albin, diretor do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, tentou gravar um depoimento de Wilson, assim como havia feito com Pixinguinha, João da Baiana e Donga, músicos de uma era mágica do samba e do choro.

Wilson, já no fim, alquebrado e ressentido com a falta de reconhecimento do qual se acreditava merecedor, sofria de doença chamada cardiomegalia, popularmente conhecida como “coração de boi”, que lhe provocava taquicardia, cansaço, falta de ar e náuseas.

Ele consentiu com a gravação, mas acabou por dar o cano, o que não deve surpreender quem conhece sua história de bravatas, polêmicas, decisões tempestivas e imenso talento.

Ocorreu, pelo menos, um registro tocante. A tratativa com o MIS resultou na gravação de Transplante de Coração, em que pede: Por favor, doutor/ Transplante o coração do Chicão. Com o apoio exclusivo de batidas na caixa de fósforo, a voz, que dispensava harmonia, menciona trechos da sua história, justificando seu direito à cirurgia: Porque o sambista quando é grande demais/ Não deve desaparecer.

Wilson Batista morreu semanas depois, mas merece a eternidade.

Transplante de Coração tem um quê de auto-hagiografia: Wilson congratula-se de maneira bem-humorada pela sua trajetória e cobra uma dívida pelas décadas em que compôs sambas belos e inusitados, que deveriam ser pagos por meio da cirurgia, ainda novidade na época.

O dr. Christiaan Barnard havia acabado de fazer, meses antes, o primeiro transplante de coração bem-sucedido entre humanos na África do Sul. A ele, Wilson clamava por uma oportunidade.

Petulante, crítico mordaz, décadas antes ele já cantava: Eu sou assim/ Quem quiser gostar de mim/ Eu sou assim/ Meu mundo é hoje, não existe amanhã para mim/ Eu sou assim/ Assim morrerei um dia/ Não levarei arrependimentos/ Nem o peso da hipocrisia.

Wilson Baptista de Oliveira nasceu em 9 de julho de 1913 em Campos de Goytacazes, no estado do Rio, importante reduto abolicionista de um grande centro escravagista no Brasil do século XIX. Seu avô materno, João Bento Alves, foi, inclusive, uma relevante liderança pró-abolição.

Os negros libertos organizavam rodas que abrigavam a vizinhança, resgatando ritmos da memória que se fundiam, com imensa liberdade, a tudo o mais de música que houvesse no entorno.

Na “Pequena África”, no entorno do que é hoje a Gamboa, perto do centro antigo do Rio, a “Casa da Tia Ciata” exemplifica o cotidiano da comunhão que resgatava a tradição e inventava o que mais de original seria feito na música brasileira: o samba e o choro. As crianças aprendiam em meio aos parentes e amigos, na casa aberta que abrigava músicos de raízes africanas que, por vezes, não tinham onde ficar.

Os avós de Wilson faziam coisa parecida na distante Campos de Goytacazes, organizando o rancho carnavalesco Corbeille de Flores e dando pouso a músicos de passagem. Sinhá Chica, avó de Wilson, era uma espécie de “Tia Ciata” de Campos, “anfitriã para os desajustados”, na definição do clarinetista Coruja. Ainda jovem em busca de trabalho, Pixinguinha foi um deles. Os tios-avôs de Wilson também fundaram a Lyra Apollo na cidade.

Desde cedo ele revelou tino para música. Participou de conjuntos locais e começou a compor — inicialmente paródias, quase sempre jocosas, para as melodias da Lyra. Pequeno, se bandeou para a capital apenas com a roupa do corpo, clandestino num vagão de gado. Tentou ocupações convencionais que a sua história permitia, como trabalhar numa fundição ou acender lampiões nos postes de iluminação para uma companhia de gás.

Mas seu negócio não era pegar no batente, como cantaria depois. Irrequieto, frequentava onde havia arte — foi até sapateiro de uma companhia de dança e claqueur de teatros. Mas o que ele queria mesmo era ser compositor.

Wilson se enturmou com o chamado “Time B” de autores cariocas que ficavam principalmente na Praça Tiradentes, como Roberto Martins, Bide, Benedito Lacerda, Ataulfo Alves e Oswaldo Silva. Já em 1929, Aracy Cortes cantou seu primeiro samba, Na Estrada da Vida, num teatro de revista, gravada, poucos anos depois, por Luiz Barbosa.

Wilson também se aventurou como cantor. Primeiro em 1932 com a jazz band Tuna Mambembe e depois com o conjunto de Oliveiras formado com Oliveira da Cuíca e Cartola — Agenor de Oliveira. Fez várias excursões no Brasil e até no exterior com a dupla Verde e Amarelo, formada com o parceiro Erasmo Silva. Chegou a abrir vagas para uma “escola para cantar em microfone”, mas foi um fracasso.

Venda de sambas e direitos autorais

Era outra época e eram outras as práticas. Wilson, como muitos do seu entorno, era um notório vendedor de sambas. Gravado por ninguém menos que Carmen Miranda em 1934, o que seria seu primeiro grande sucesso internacional, O Samba é Carioca, foi negociado e creditado apenas a Oswaldo Silva.

Diversos bambas do passado aproveitavam-se do desejo de aspirantes ao sucesso sem muito talento para descolar uns trocados. Intermediários de grandes cantores — como se notabilizou Germano Augusto, motorista de Francisco Alves — ou mesmo os próprios cantores às vezes saíam na autoria das músicas, mesmo sem tê-las escrito. Os verdadeiros compositores acabavam concordando porque a gravação era a chance de a música fazer sucesso.

O próprio Moreira da Silva, Morengueira, famoso pelo samba de breque, a exemplo de Francisco Alves, fazia muito isso: aceitava gravar desde que fosse creditado como autor. O clássico Acertei no Milhar, que Morengueira começou a cantar já nos anos 1930, foi feita por Wilson, mas o autor concordou em ceder 50% dos direitos ao intérprete, que só não ficou definitivamente com os créditos porque estava devendo para Geraldo Pereira e lhe cedeu sua parte.

Essa história fica ainda mais peculiar com a nossa liturgia que integra imposição legal e malandragem. Com a nova Lei de Contravenções Penais, que substituía a antiga Lei da Vadiagem exigindo a todos os cidadãos “meios bastantes de subsistência”, muitos bicheiros e bookmakers passaram a investir no mercado de composições para comprovar a lisura da sua renda junto ao governo.

Um deles foi José Batista, contraventor conhecido como China, que assina a outra metade do clássico Meu Mundo é Hoje (Eu Sou Assim). Outro, que logo viria a se consolidar como o maior parceiro de Wilson, era Jorge de Castro, um negociador de joias e gerenciador de apostas clandestinas — que, aliás, Wilson adorava.

Não faltaram litígios. Não Tenho Lágrimas, por exemplo, foi registrada por Milton de Oliveira e Max Bulhões, mas Wilson passou a vida inteira reivindicando sua autoria. O que se sabe é que havia uma parceria entre Wilson e Max para ela, mas em 1937 a canção foi gravada por Patrício Teixeira com Wilson substituído nos créditos por Milton.

O sambista ficou indignado. Segundo consta, Max admitiu a malandragem, mas disse que era por uma boa causa: Milton era amigo de Patrício, que tinha ajudado a desenrolar a gravação. Garantiu que, nas próximas, o crédito seria dado corretamente, o que nunca aconteceu.

Pelo relato de Kid Pepe, da rádio Cruzeiro do Sul, Max, sabendo que estava errado, pagou trinta mil-réis para Wilson em forma de reparação. Uma das razões do descontentamento do autor excluído é que Não Tenho Lágrimas foi um grande sucesso, inclusive internacional, gravada até por Nat King Cole — e em português! O fato de Wilson ter aceitado o dinheiro significa concordância com a cessão da autoria? Vai se saber o que de fato ocorreu…

Embora tenha demorado para aparecer uma proibição legal explícita da venda da autoria de músicas, o artigo 13 do regulamento interno do Departamento de Compositores da União Brasileira de Compositores vedava a prática. A questão vinha suscitando acalorados debates desde o lançamento de Pelo Telefone, registrada por Donga mas muito provavelmente produzida coletivamente no quintal da Tia Ciata.

Sinhô, outro célebre sambista diversas vezes acusado de plagiar, tornou célebre a cínica analogia que compara sambas e passarinhos: são, dizia, “de quem pegar primeiro”.

Polêmica com Noel Rosa e os “bons costumes”

Meu chapéu de lado/ Tamanco arrastando/ Lenço no pescoço/ Navalha no bolso/ Eu passo gingando/ Provoco e desafio/ Eu tenho orgulho em ser tão vadio.

A provocação com os “bons costumes” foi uma questão recorrente na obra de Wilson. Lenço no Pescoço originou uma polêmica com Noel Rosa, que respondeu: E tira do pescoço o lenço branco/ Compra sapato e gravata/ Joga fora essa navalha, que te atrapalha.

Wilson replicou com a canção Mocinho da Vila, a Vila Isabel de Noel. Que respondeu com o clássico Feitiço da Vila, levando ao retruque de Wilson em Conversa Fiada. Noel reagiu com mais um clássico do samba, Palpite InfelizQuem é você que não sabe o que diz/ Meu Deus do céu, que palpite infeliz.

As respostas de Noel acabam levando a tréplicas pouco inspiradas de Wilson. Algumas foram bem mais do que infelizes, como mencionar a deficiência no rosto de Noel, nascido com o auxílio de fórceps, o que lhe deformou a região da mandíbula tornando difícil o ato de comer — mas não o de cantar.

Noel parou de responder aos insultos de Wilson, que ficou brigando sozinho. Em pouco tempo, contudo, Noel resolveu a polêmica escrevendo letra alternativa para a última provocação de Wilson, chamada Terra de cego. Rebatizada, Deixa de ser convencida era um recado para uma moça que ambos haviam cortejado. Foi o fim da refrega entre os dois, mas não o fim da censura às músicas provocadoras de Wilson Batista.

A canção Lenço no pescoço foi execrada pela crítica. Considerada uma apologia da malandragem, acabou censurada pela Confederação Brasileira de Radiodifusão, que, entre os itens passíveis de veto, condenava a “ofensa à moral e aos bons costumes”.

Wilson sabia de música, mas também de ironia e da crítica ao seu entorno. Sei que eles falam deste meu proceder/ Eu vejo quem trabalha andar no miserê/ Eu sou vadio porque tive inclinação/ Eu me lembro era criança e tirava samba-canção. Décadas depois, Lenço no Pescoço permanece um clássico do samba.

Entre os temas frequentes na música de Wilson Batista estava a crítica ferina às condições de vida dos trabalhadores à época, ainda mais para um jovem negro. A malandragem petulante como uma resposta. Outro tema era a liberdade pessoal, mesmo que na contramão dos “bons costumes”. Tudo isso cimentado pela sua certeza de que desde sempre tivera talento para a música.

Em seu Oh, Seu Oscar (coautoria com Ataulfo Alves), originalmente gravada por Cyro Monteiro, Wilson conta a história de um homem que foi abandonado pela esposa que preferia a gandaia. Era 1939 e muita gente não gostou.

Mas, depois de quase ser barrada, a canção acabou passando pela censura e ganhou o concurso “Noite da Música Popular”, promovido por ninguém menos que o DIP, departamento de propaganda da ditadura varguista. “Seu Oscar” virou um personagem popular, gíria para otário, quase sinônimo de corno, refletindo a cultura de então.

Em Lealdade (coautoria com Jorge de Castro), três décadas e meia antes da Lei do Divórcio, admitia-se a possibilidade de separação apenas pela falta de amor: Serei leal contigo/ Quando eu cansar dos teus beijos, te digo/ E tu também liberdade terás / Pra quando quiseres/ Bater a porta sem olhar pra trás.

Mãe Solteira (outra coautoria com Jorge de Castro) foi provocada por uma manchete de jornal que noticiava um caso de suicídio de uma mulher envergonhada pela gravidez fora do matrimônio. Houve protestos indignados. O apresentador da TV Tupi Flávio Cavalcanti começou sua cruzada pela moralização da música brasileira quando sua filha lhe perguntou o que era uma “mãe solteira” em razão da música.

A despeito da intensa censura durante o Estado Novo, parte relevante dos músicos apoiava Vargas por considerá-lo um benfeitor das artes. Wilson chegou a assinar Nosso Presidente Continua com Haroldo Lobo diante dos rumores de uma derrocada em 1944.

Renegando os tempos de Rapaz Folgado, compôs com Ataulfo Alves O Bonde de São Januário, jingle pró-ideologia do trabalho que caiu como uma luva para Getúlio, mas não sem deixar sua assinatura de gozador bem registrada.

Encarregado de levar a letra para censura, Ataulfo não percebeu que, de última hora, seu parceiro havia trocado os versos para lhe pregar uma peça: um trecho originalmente dizia O bonde São Januário/ Leva mais um operário/ Sou eu que vou trabalhar. Mas a versão final trocou o termo “operário” por “otário”. O presidente chamou Ataulfo pessoalmente ao Catete para cobrar explicações.

Já sob os ventos da democracia, Wilson escreveu a marchinha Pedreiro Waldemar (coautoria com Roberto Martins) que faz tanta casa e não tem casa pra morar. A censura quis barrar a música por considerá-la comunista — mas Vargas a adorava.

Por meio das idiossincrasias tipicamente brasileiras, o eloquente anticomunista Carlos Lacerda citou o personagem durante discurso em comemoração aos 400 anos do Rio de Janeiro em 1º de janeiro de 1965, já durante os primeiros meses de regime militar: “O Rio das injustiças e das incompreensões, até ele, até esse Rio nublado e duro é amorável se conseguimos furar a carapaça em que ele se defende dos abandonos e das ingratidões. O Rio é o próprio pedreiro Waldemar, que faz casa para os outros e não tem onde morar”.

Por favor, doutor

Wilson Batista partiu cedo, ressentido pela falta de reconhecimento que lhe achava devido. Foi por pouco. Poucos anos depois da sua morte, Paulinho da Viola, em A Dança da Solidão, gravou Meu Mundo é Hoje (Eu Sou Assim).

Encantado com o que encontrou numa fita caseira cantada pelo próprio autor, Paulinho chegou a dizer que Wilson foi o maior sambista de todos os tempos. Ele também regravaria Nega Luzia (com Jorge de Castro), Mulato Calado (com Germano Augusto e registro de Marina Batista e Benjamin Batista) e Chico Brito (com Afonso Teixeira).

Nas últimas décadas, a obra de Wilson Batista tem sido resgatada por um número impressionante de músicos brasileiros.

Algumas dessas gravações estão sistematizadas no apêndice deste artigo.

Rodrigo Alzuguir escreveu a monumental biografia Wilson Batista – O samba foi sua glória!, editada pela Casa Natura, que embasa boa parte deste artigo.

Como cantou Wilson no fim da vida: Porque o sambista quando é grande demais/ não deve desaparecer.

 

Marcos Lisboa é apaixonado por samba.

Murilo Cleto é músico e historiador.

 

Nota de Marcos Lisboa:

Conheci Murilo Cleto por meio de uma rede de amigos no WhatsApp. Descobrimos a paixão comum pelo samba e o choro, passando a trocar mensagens, além de muitas gravações dos que nos assombram: Jacob do Bandolim, Pixinguinha, Clementina, Cartola — e Wilson Batista, que Murilo homenageou em um belo tributo audiovisual neste ano. Da troca de mensagens sobre a obra de Wilson, e da bela homenagem feita por Murilo, saiu este texto. Obrigado, Murilo.

Gravações mais recentes da obra de Wilson Batista:

Em 1981, João Nogueira lançou o disco Wilson, Geraldo, Noel.

João Gilberto registrou interpretações magistrais ao vivo de Louco (Ela é Seu Mundo)” (com Henrique de Almeida), Preconceito (com Marino Pinto) e Lealdade (com Jorge de Castro), além de Largo da Lapa, que gravou na TV Tupi com Caetano e Gal, e até Mariposa (com João da Baiana), uma bucólica marchinha que cantou à capela nos bastidores de um especial que foi ao ar pela TV Cultura em 1994.

Em 2000, Cristina Buarque puxou nova fila de tributos, gravando o primeiro álbum exclusivamente dedicado à obra de Wilson, Ganha-se Pouco, Mas é Divertido.

Rodrigo Alzuguir produziu em 2011 o disco duplo O samba carioca de Wilson Baptista, com novas interpretações de seus sambas e até dramatizações envolvendo sua trajetória e os processos de composição.

Ele lança agora pelo Selo Sesc outro álbum duplo chamado Wilson Baptista – Eu Sou Assim, com 30 canções, algumas cantadas pelo próprio autor com arranjos modernos, outras por Marcos Sacramento, João Bosco, Ney Matogrosso e Mônica Salmaso. A propósito, desde 2018 Salmaso tem realizado um belíssimo concerto em homenagem a Wilson.