Como traduzir “I love her” para o português?
Em Latim em Pó (Companhia das Letras; 232 páginas), livro breve e delicioso sobre a formação da língua que falamos no Brasil, o tradutor Caetano W. Galindo conta que costuma propor esse exercício a seus alunos na Universidade Federal do Paraná.
Compreensível até para quem domina só o inglês básico, “I love her” não parece um desafio à altura de um estudante de Letras. E certamente não se compara às pedreiras linguísticas enfrentadas por Galindo, um mestre do ofício que já traduziu até o Ulysses, de James Joyce, que resenhamos aqui no Brazil Journal.
Mas essa frase tão simples esconde complicações insuspeitas: ela é ao mesmo tempo perfeitamente coloquial e plenamente adequada às normas gramaticais do inglês – e não há modo de conservar os dois atributos em português.
“Eu amo ela”, a tradução mais natural, não está de acordo com a chamada norma culta da língua, segundo a qual o pronome reto “ela” só funciona como sujeito, jamais como objeto do verbo. O “correto” seria empregar o pronome oblíquo: “eu a amo”. Mas quem fala desse jeito? Ao tradutor, só resta contornar o problema recorrendo ao nome da pessoa amada: “eu amo Sandra”.
O exemplo ilustra as dificuldades suscitadas pelas diferenças entre a língua viva e a norma gramatical. Obra de um linguista, não de um gramático, Latim em Pó acompanha as irregularidades e transgressões que configuraram a língua que falamos hoje – e que, como qualquer idioma vivo, segue em transformação.
No primeiro capítulo, Latim em Pó desperta o leitor para a extensão do português brasileiro: vivemos em um país continental “fundamentalmente monolíngue”. Uma hipotética viajante que percorra de carro os seis mil quilômetros entre Pelotas, no Rio Grande do Sul, e Uiramutã, em Roraima, poderá conversar em português com as pessoas que encontrar em qualquer ponto do caminho. A mesma distância na África, observa Galindo, atravessaria centenas de zonas linguísticas. No Brasil, o preço dessa uniformidade foi a extinção de inúmeras línguas indígenas.
Como sublinha o título do livro (uma citação de Língua, canção de Caetano Veloso), esse idioma dominante em nosso país veio do latim, assim como as demais línguas modernas da família românica, como o espanhol, o italiano, o francês e o romeno. A busca das origens do latim abre a porta para que Galindo faça uma apresentação sucinta mas fascinante da evolução da ciência linguística.
Um marco fundamental foi o trabalho que o filólogo britânico William Jones apresentou em 1786, avançando a hipótese ousada de que latim, grego e sânscrito teriam raízes comuns. A partir daí, pela trabalhosa comparação de formas comuns entre diversos idiomas, os linguistas postularam a existência de uma língua-mãe de quase todas as línguas faladas hoje na Europa a oeste da Ucrânia: o protoindo-europeu.
Não há registros dessa língua ancestral. Já o latim que o Império Romano espalhou pela Europa deixou documentos abundantes. Mas o português não veio propriamente da língua literária que os latinistas estudam hoje: ele deve mais à fala popular do que à oratória clássica de Cícero, o senador filósofo do século I a.C.
Galindo mostra que as línguas, como organismos vivos, evoluem sem dar atenção às regras impostas pelos eruditos – elas se enriquecem com a “contribuição milionária de todos os erros”, para usar uma expressão de Oswald de Andrade. No noroeste da Península Ibérica, o latim rude das ruas foi perdendo suas declinações e ganhando novas configurações até não ser mais latim: nascia o galego, língua que ainda se fala naquela região da Espanha.
E o galego, em sua migração rumo ao sul, pelo território que viria a ser Portugal, também foi gradualmente se transmutando: surgia o português, cujos primeiros textos escritos datam da virada do século XII para o XIII.
A língua que os colonizadores portugueses trouxeram para a América carregava ainda marcas de séculos de ocupação moura na Península Ibérica. Dessa influência árabe, herdamos palavras como “açúcar” e “salamaleque” (mas não “esfirra”, que também vem do árabe mas por uma via tardia: o dialeto sírio-libanês que aportou no Brasil com imigrantes no século XX).
Em terras tropicais, o português do colonizador conviveu com a chamada língua-geral, uma variante do tupi que bandeirantes e catequistas jesuítas empregavam para se comunicar com os povos locais. Na história do colonialismo europeu, o uso de uma língua dos povos conquistados é uma singularidade brasileira (não que isso tenha representado muito para os indígenas subjugados e exterminados).
Galindo dedica dois capítulos às línguas africanas que contribuíram para o português brasileiro. Descobre que alguns vocábulos ligados à infância, como “caçula” e “cafuné”, provêm do banto, tronco linguístico africano. Há uma beleza melancólica nesse fato: sob a violência da escravidão, sobreviveram palavras tão caras ao afeto doméstico.
Escrito em uma linguagem informal, que emula uma conversa familiar, Latim em Pó também é atravessado por uma afeição do autor: o amor pela nossa língua do dia-a-dia, carregada de traumas históricos e enriquecida pela criatividade popular.