Antonio Delfim Netto completou ontem 90 anos. A convite do Brazil Journal, o economista Marcos Lisboa escreveu sobre o homem que tem sido um ator central da economia política brasileira desde os anos 60.
Pode-se discordar de Delfim. Pode-se criticar muitas de suas escolhas na vida pública. A ditadura foi deplorável. Em vários momentos, critiquei severamente opções de política econômica que ele defendeu com o maneirismo usual. Mas não se pode deixar de ler Delfim.
O velho economista conhece o seu ofício. Em sua longa carreira, quase toda fora da universidade, Delfim permaneceu atento à pesquisa acadêmica e a seus resultados sutis. Um dos seus esportes prediletos é criticar propostas ligeiras que desconhecem a complexidade dos casos particulares ou pouco embasadas pelas evidências.
Mais de 50 anos depois, a sua tese de doutorado ainda surpreende pela análise cuidadosa dos dados e os efeitos surpreendentes da política de proteção do café na República Velha.
Um trabalho cuidadoso como o de Delfim não era esperado. O debate público no Brasil era dominado pelas teses da Cepal em que havia muitas conjecturas e pouca análise dos dados. “Romance ao invés de economia”, como dizia uma professora da USP.
Mas a USP dos anos 1950, onde Delfim se formou, se beneficiava de historiadores notáveis pelo cuidado com a evidência, como Sergio Buarque de Hollanda e Alice Canabrava. Além disso, o Brasil da época recebeu a visita de muitos acadêmicos estrangeiros que ajudaram a construir a USP. No Rio de Janeiro, Eugenio Gudin convidava regularmente pesquisadores estrangeiros que estudavam com cuidado os determinantes do desenvolvimento econômico, como Jacob Vinner.
O Brasil da curta República mediada por duas ditaduras usufruía do diálogo com os pesquisadores de outros países. Em meados dos anos 1960, o país se beneficiou de uma agenda modernizadora na economia, com diversas reformas institucionais que permitiram a expansão do crédito privado e do mercado de capitais, além de uma reforma tributária bastante avançada para a época.
Em sua gestão no ministério da Fazenda, Delfim teve o mérito de liderar uma política bem-sucedida de promoção das exportações em um momento de expansão do comércio mundial. Vale a pena resgatar o seu artigo com Nathaniel Leff publicado no The Journal of Development Studies. O artigo mostra que uma política de substituição de importações pode resultar em maior crescimento, mas, paradoxalmente, fracassar em resolver o déficit no balanço de pagamentos.
Desde então, fomos ladeira abaixo. O país se fechou e passamos a inventar que, por aqui, a economia seria diferente. Não deu certo.
A criatividade que prometia desenvolvimento a partir de meados dos anos 1970 não foi bem-sucedida, assim como não foi a sua repetição mais desastrada na última década. Delfim não foi exceção. Sua tentativa heterodoxa de controle dos desequilíbrios macroeconômicos no começo do governo Figueiredo fracassou e resultou numa das maiores crises da nossa história. Para seu mérito, nos anos seguintes, ele e sua equipe fizeram ajustes e a economia começou a se recuperar, ainda que com uma inflação disfuncional. (O que já era ruim no fim do governo Figueiredo pioraria depois com a sequência de planos heterodoxos).
Aos 90 anos, Delfim ainda impressiona pelo seu vigor em continuar a se atualizar sobre a produção acadêmica em economia e a contribuir com o debate público. Ele e Affonso Celso Pastore. Não obstante as suas muitas diferenças, ambos surpreendem por continuarem a ler com cuidado os trabalhos mais recentes depois de vidas tão longas e carreiras tão bem-sucedidas.
Os artigos de jornal de Delfim na segunda metade dos anos 1980 são notáveis por anteciparem muitos dos problemas que nos afligiriam anos depois decorrentes de um Congresso que distribuía benefícios sem saber quem pagaria a conta. Em 2013, Zeina Latif e eu escrevemos sobre o ‘rent seeking’ na economia brasileira. Ao ler a coletânea de artigos de Delfim recém-publicada, descubro que ele já escrevera sobre os caçadores de renda 25 anos antes, elegantemente traduzindo o termo para o português.
Sua erudição faz justiça à impressionante biblioteca que ele doou para a USP. Delfim conhece (e bem) de Marx a Keynes, além da teoria econômica mais recente. Quando fiz um artigo comentando a impressionante influência de Kenneth Arrow na economia, recebi um email gentil de Delfim em que compartilhava a mesma admiração. Virou brincadeira entre nós dois e, no fim, chegamos a um compromisso em que consideramos Keynes o maior economista da primeira metade do século XX e Arrow, o da segunda.
Delfim tem o mérito adicional da prosa sinuosa, elegante e sutil. Sua crítica parece um truque de mágico. Convida-nos a olhar sua mão direita, quando a surpresa vem pela esquerda. Com discrição paulista, tão diferente dos arroubos cariocas, resta sempre a dúvida sobre quem o velho economista está a criticar. Em algumas de suas colunas, acho que fui a vítima. Não havia jeito. Terminava de lê-las rindo-me a roldão.
Marcos Lisboa é economista.
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