No fim de semana passado, o Brazil Journal publicou depoimento de Roberto Campos que integra o primeiro volume de “No Calor das Ideias – Breviário do Bem Pensar”, editado pela Insight Inteligência. A verve de um dos nossos liberais mais ferinos e argutos funciona como chamariz e tanto para o livro. 

Mas quem se dispuser a baixá-lo – ele está disponível de graça na internet – provavelmente se surpreenderá ao ver que a cereja do bolo vem de alguém no campo ideológico oposto ao de Bob Fields: Maria da Conceição Tavares, numa entrevista dada em 2001. 

Sim.  Suspendam seus preconceitos ortodoxos.
 
O depoimento de Conceição é uma aula de civilidade e de respeito a pessoas com posições antagônicas, um tipo de postura que hoje parece impossível, embora seja tudo o que mais nos faz falta no momento.

Conceição talvez dispense apresentações, mas é melhor situá-la na história. 

Ela compôs o primeiríssimo time dos chamados economistas desenvolvimentistas brasileiros, caudatários de Celso Furtado e Caio Prado Junior. Cepalina, devota de Raúl Prebisch, foi voluntária do governo socialista de Salvador Allende no Chile. Crítica extrema e extremada do modelo econômico adotado pelo regime militar brasileiro, dedicou-se como professora, na UFRJ e na Unicamp, a formar gerações de economistas de viés progressista – hoje chamados, sem muito sopesar e quase nenhuma nuance, economistas “de esquerda”.

No fim da ditadura, Conceição integrava a Executiva Nacional e o núcleo de economistas do PMDB. Envolveu-se em políticas e planos de estabilização monetária como o Cruzado, a ponto de derreter-se em lágrimas diante de câmeras de TV em defesa dele. 

Cansada daqueles choques heterodoxos à base de congelamento de preços, em 1994 mudou-se de mala e cuia para o PT, partido ao qual se mantém filiada até hoje. Criticou com fervor a única experiência anti-inflacionária que deu certo no país, o Plano Real, engrossando o coro de erros daquele partido. Ainda assim, ou talvez por isso mesmo, naquele ano elegeu-se deputada federal pelo Rio de Janeiro. Cumpriu mandato até 1999 e desistiu da política, mas se manteve firme no debate nacional pela década seguinte. Hoje, aos 89 anos, aquietou-se. 

Foi esta Conceição que, em 2001, concedeu a Coriolano Gatto e Luiz Cesar Faro um depoimento destinado a fornecer relatos e memórias para uma biografia sobre Octávio Gouvêa de Bulhões que a Inteligência acalentava produzir. O livro não saiu, mas a entrevista foi ao prelo na edição n° 14 da revista. Mas, afinal, o que há de tão sensacional nisso? O título que encima o texto publicado há 18 anos — e agora transformado em um dos 27 capítulos de “No Calor das Ideias” — talvez permita bom entendimento: “Por que amei Octávio Bulhões”.

Nas 37 perguntas e interpelações dos entrevistadores à entrevistada, Conceição derrama-se em elogios àquele que foi um dos artífices do pensamento econômico conservador brasileiro. Junto com Roberto Campos, Bulhões forjou as reformas ortodoxas que formaram os alicerces da política econômica dos governos militares e seu posterior milagre do crescimento. Ele era, de seus ralos fios de cabelo até o dedinho do pé, um liberal de quatro costados. Em suma, portanto, o antípoda de Conceição, o exato oposto de tudo pelo que ela se esgoelava.

No entanto, foi com Bulhões que ela aprendeu boa parte dos cânones da ciência econômica, ao graduar-se na Fundação Getulio Vargas – depois de chegar de Portugal, onde se formara em matemática. Era 1957. Também naquela escola, logo depois, Conceição se tornaria assistente do professor e, anos depois, assumiria, por concurso, a cadeira de macroeconomia que fora dele. 

Declara a polemista exaltada, a desenvolvimentista, a cepalina, a estatista, a esquerdista, a economista heterodoxa, a parlamentar e militante petista sobre o “Dr. Bulhões”, o homem cordial, ortodoxo, conservador, liberal, privatista, fiscalista e esteio dos governos direitistas militares: “Eu tenho muito respeito pelo velho, sim. A independência dele vis-à-vis o establishment. Por quê? Porque ele era servidor público, com “S” e “P” maiúsculos. (…) Foi um grande mestre, um inesquecível ser humano. Faz muita falta hoje”.

Octávio Gouvêa de Bulhões morreu em 1990. Serviu a todos os governos brasileiros de Dutra a Costa e Silva, passando por Café Filho, Juscelino, Jânio, Jango e Castelo Branco, quando, em parceria com Roberto Campos, levou adiante o Paeg, ousado pacote de reformas econômicas que pôs ordem nas finanças públicas, domou a inflação e, com isso, abriu as portas para o crescimento recorde do PIB nacional que viria na década seguinte – além de ter criado, na mesma levada, o Banco Central, o Conselho Monetário Nacional, o FGTS e o BNH.

Mas o que tudo isso, de remotas décadas atrás, tem a ver com os dias de hoje?

A entrevista de Conceição é um libelo de tolerância que ensinará muito aos que se dispuserem a lê-la nos tempos atuais. É a prova de que opostos podem – e devem – conviver, dialogar, discutir e discordar, civilizadamente, sempre que devotados a um bem maior: o interesse comum da nação. Tanto o professor quanto a aluna dão exemplo de convivência e coexistência pacífica, ambos se aceitando, se respeitando e, por que não?, se amando.

O respeito era mútuo. Rememora Conceição na entrevista: “Eu fiz a minha tese de livre docência para poder disputar o cargo de titular [na FGV]. Era dezembro de 1974, e fui examinar a política Bulhões/Campos. É claro, obviamente, que não concordava! E disse com muita elegância que não concordava. E aí, ele [Bulhões] me respondeu por escrito. Isso é que eu acho fantástico! Como é que o cara se deu ao trabalho de fazer dois artigos para a revista Visão, reafirmando as posições dele sem nenhuma crítica?” 

Até de prisão pelos militares o Dr. Bulhões foi capaz de livrar Conceição, com intervenção direta do Presidente Geisel e de seu ministro da Fazenda, Mario Henrique Simonsen: “Você não vai sozinha para o aeroporto,” obstou o decano, evitando que ela fosse em cana ao embarcar no Galeão para uma missão no México.

 
Esse Brasil ainda existe?

Bulhões também reservava palavras públicas respeitosas para sua ex-aluna ruidosa e contestadora. Entre abril e novembro de 1989, ele concedeu uma série de 20 entrevistas destinadas ao projeto “Memória do Banco Central do Brasil”. Numa delas, perguntaram-lhe os pesquisadores: “Na FEA [Faculdade de Economia e Administração da FGV] o senhor vai ter uma assistente conhecida, e meio surpreendente que tenha sido sua assistente, que é a Maria da Conceição Tavares. Como é que o senhor escolhe a Conceição para ser sua assistente?” Bulhões responde, sem nenhum rodeio: “Porque ela conhecia bem os assuntos e sabia expor. De modo que ela foi escolhida. Eu escolhi.” Ponto. Mais adiante, Bulhões foi instado a listar seus alunos mais brilhantes e, de novo de pronto, incluiu Conceição num curto rol, não sem antes classificá-la como “excelente”. 

É de se perguntar: por que algo que deveria ser tão básico na vida de uma nação virou moeda rara, numa época tão pobre e carente tanto de cabeças brilhantes quanto de soluções pragmáticas? 

O que aconteceu desde que Conceição concedeu aquela entrevista não é novidade: o convívio entre diferentes foi se esgarçando, as concordâncias foram se estreitando e as partes se afastando até que nos sobrassem apenas as margens extremas contra as quais nossas costas estão hoje dolorosamente esmagadas. 

A semente da intolerância não brotou agora. Vem sendo cultivada sobretudo a partir da ascensão do PT ao comando do país. Com sua sanha em forma de guerra santa pela hegemonia política, econômica, cultural e intelectual, o petismo foi cindindo os brasileiros entre bons e maus, entre eles e nós. Deu no que deu. A despeito de tentar apresentar-se como novidade, o bolsonarismo apenas persevera e aprofunda essa colheita maldita, dando-lhe, em certos casos, cores ainda mais vívidas. São, portanto, décadas de descaminho e demonizações. Até onde isso vai?

A entrevista de Conceição nos lembra um tempo em que adversários eram só isso: adversários, e não inimigos mortais. Um tempo em que esquerdistas compunham governos de tucanos – como era notório, por exemplo, com os sanitaristas engajados do Ministério da Saúde de José Serra – ou liberais insofismáveis davam expediente no Ministério da Fazenda do PT ao lado de Antonio Palocci. No Congresso, cerravam fileira, entre outros, em favor dos medicamentos genéricos ou da mudança das regras de aposentadoria de servidores públicos.

Esse tempo — o tempo do diálogo, do respeito e da racionalidade — infelizmente ficou para trás. Mas não significa que não possa voltar. Basta que estejamos dispostos a novamente abrir espaço para o conflito educado (ainda que duro) de ideias, a convivência pacífica, o respeito mútuo e a busca do bem comum. Não é difícil. Conceição e Bulhões nos ensinam que é possível.

André L. Lacerda é jornalista e consultor especializado em comunicação e marketing político e eleitoral. Escreve o blog Economia e risco político.