Num momento em que o uso da cannabis medicinal tem avançado em todo o mundo, o Conselho Federal de Medicina está indo na contramão do progresso.
A associação de classe publicou na semana passada suas novas diretrizes para o uso de medicamentos derivados da cannabis, numa revisão de normas publicadas em 2014.
A nova resolução é tão restritiva quanto a anterior, liberando o canabidiol apenas nos casos de crianças com dois tipos raros de epilepsia – e, ainda assim, se os pacientes forem refratários às terapias convencionais.
O posicionamento do CFM não é exatamente uma surpresa. A diretoria do conselho foi defensora do uso da cloroquina no combate à covid-19 quando boa parte das principais entidades de saúde eram contrárias.
Agora, no tema cannabis, o conselho remou no sentido contrário mais uma vez.
Quase 50 países já permitem pelo menos algum tipo de uso medicinal da maconha. Nos Estados Unidos, o maior mercado do mundo, a cannabis já está na farmácia em 33 estados e, até 2024, a venda da droga medicinal deve estar liberada em todos os estados.
A decisão trouxe apreensão a milhares de pacientes que usam diariamente esses medicamentos como um alívio para as aflições de males como epilepsia, esclerose múltipla, artrite, distúrbios psiquiátricos e dores crônicas.
O temor é que médicos possam ser perseguidos pelos conselhos regionais e deixem de receitar os remédios para os casos não previstos pelo CFM.
No começo da semana, o Ministério Público Federal abriu um inquérito para averiguar se a resolução do CFM extrapolou os direitos constitucionais de acesso à saúde da população. Ao mesmo tempo, a senadora Mara Gabrilli apresentou um projeto de lei para derrubar as restrições impostas pela entidade.
Ontem, em uma nota conjunta, cinco entidades da indústria de produtos farmacêuticos e fitoterápicos criticaram a resolução do CFM pelo impacto que “terá para o tratamento de milhares de pacientes.”
“Entendemos que a autonomia médica é um preceito fundamental da atuação profissional da classe e que a resolução vai contra esse princípio ao restringir as condições paras as quais o canabidiol pode ser prescrito,” diz o texto.
Ainda segundo a nota, a decisão será prejudicial ao “limitar o desenvolvimento da ciência e de novos protocolos de estudo.”
Logo depois da divulgação dessa nota, o CFM anunciou que vai reabrir a consulta pública para “receber contribuições visando a atualização da resolução 2.324/2022”. A entidade declarou que “compreende os anseios de pacientes e seus familiares”, porém entende que as decisões devem ser tomadas “de forma isenta” – whatever that means.
Apesar das restrições do conselho, executivos da indústria e do comércio da cannabis dizem que a entidade provavelmente acabará sendo ignorada. Foi assim que aconteceu após a publicação de uma resolução anterior, de 2014.
Um investidor em cannabis disse estar tranquilo porque “vai prevalecer a autonomia dos médicos para prescrever o que julgarem melhor para os seus pacientes.”
Um executivo do setor lamenta a insegurança causada pela decisão, mas também acredita que deverão prevalecer as normas da Anvisa, que são menos restritivas.
A primeira autorização da Anvisa veio em 2015. Mas o salto da maconha medicinal veio depois da publicação de uma resolução de 2019 (RDC 327), que trouxe regras mais flexíveis de comercialização e deu mais segurança jurídica para os laboratórios.
Tarso Araújo, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Canabioides (Br Cann), disse que o CFM tem se mostrado muito resistente apesar de todo o conhecimento científico acumulado nos últimos anos.
“Foi uma decisão que vimos como política, vulnerável do ponto de vista técnico e jurídico,” disse Tarso. “Isso traz estresse para os pacientes. Estamos recebendo relato de pacientes que temem um apagão das receitas.”
O CFM aprova apenas o uso do canabidiol, um derivado da cannabis com propriedades de relaxamento e alívio da dor, mas que não causa efeitos alucinógenos. O conselho não reconhece como válido o uso de medicamentos com presença do THC, o princípio ativo que causa o barato da maconha e é também empregado na composição de alguns medicamentos que já contam com o aval da Anvisa.
Hoje a maior parte dos medicamentos usados no País vem de fora. Alguns investidores, entretanto, estão se posicionando para produzir os medicamentos no Brasil em uma operação quase toda vertical. Como o plantio não é permitido no País, o insumo básico vem de fora, de produtores como a Colômbia ou o Canadá.
A GreenCare e a Ease Labs, duas das líderes na importação, iniciaram o desenvolvimento local em laboratórios próprios. Os medicamentos deverão chegar às farmácias depois da aprovação da Anvisa.
“Estamos com estudos clínicos muito avançados,” disse o presidente da Ease Labs, Gustavo Palhares. “A operação verticalizada traz mais segurança para a qualidade final na cadeia de produção. Deverá ajudar a reduzir o preço para o consumidor final.”
Com fábrica em Belo Horizonte, a farmacêutica comprou recentemente a Catedral, uma produtora de fitoterápicos, assim terá mais controle sobre a purificação e padronização dos insumos.
A GreenCare investiu R$ 40 milhões em suas operaçãos, como distribuidora e farmacêutica, inclusive adquirindo uma fábrica. A empresa obteve 3 autorizações da Anvisa para comercialização no varejo, e um dos produtos já está disponível no varejo.
Essas movimentações dos investidores e pesquisadores nesse mercado mostram que o CFM, uma vez mais, não será respeitado caso não reveja suas recomendações.
Melhor para os pacientes – e para a ciência.