Em 1945, uma das personagens mais influentes do século passado criou algo explosivo que mudaria a sociedade para sempre, tornando-se assunto de um filme blockbuster.

Mas não é Oppenheimer.

O J. Robert Oppenheimer da Barbie foi Ruth Handler, uma workaholic de batom vermelho e conversível rosa – uma inovadora digna da sua própria cinebiografia. Enquanto os homens testavam bombas atômicas no deserto, Ruth abria uma empresa na garagem – e a boneca mais famosa da história nem foi sua ideia mais valiosa.

Nos primórdios da Mattel, a startup que ela fundou com o marido e que se tornaria a maior empresa de brinquedos no mundo, Ruth tomou várias decisões ousadas ao levar a mercado uma metralhadora de brinquedo chamada Burp Gun; essas decisões culminaram na Barbie, no filme homônimo e em todo o universo Barbie. O que ela aprendeu vendendo milhões de Burp Guns fez com que ela vendesse bilhões de Barbies.

MattelRuth quebrou as regras de três formas: comoquando e para quem vender brinquedos.

Ela percebeu – muito antes de qualquer pessoa neste setor – que as crianças (e não os pais) é que eram o público-alvo. Ela também gastou uma fortuna para anunciar em programas de TV o ano inteiro – e esta estratégia acabou se revelanndo revolucionária.

Se você quer entender a Barbie, primeiro entenda Ruth Handler.

“Ela estava disposta a fazer o que ninguém mais havia feito,” disse Robin Gerber, autora de Barbie e Ruth, a biografia de 2009 da mulher por trás da boneca icônica. “Sua principal qualidade como líder foi a capacidade de assumir riscos. O que você está arriscando é o fracasso. Mas sem arriscar, nunca se terá sucesso.”

Esta tolerância ao risco necessária para criar empresas e dobrar as regras de mercados não é o único traço que Ruth, que faleceu em 2002, tinha em comum com os titãs que dominam outros setores hoje em dia. Talvez eles se reconheçam na mulher intrépida de um metro e meio de altura que subia na boleia dos caminhões de entrega usando vestido, salto alto e cabelo perfeitamente penteado.

Sua fome por dados era insaciável. Ela tinha obsessão por lançar novos produtos todo ano e era ávida por adotar novas tecnologias para conseguir vantagens competitivas. Para chegar onde chegou, teve que ser implacável.

Ela também quebrou as regras de maneiras que não eram exatamente legais. Em 1978, Ruth e outros executivos da Mattel foram acusados pela Securities & Exchange Commission de vários crimes de colarinho branco, inclusive fraude e relatórios falsos. Ela não contestou as acusações; foi multada e sentenciada a serviços comunitários.

O começo de Ruth na Mattel foi mais notável do que o fim. Nascida em 1916 como a caçula de dez filhos de um casal de imigrantes poloneses, Ruthie Mosko se casou com Izzy Handler contra a vontade da família e convenceu o marido a trocar de nome. “Elliot” – seu nome do meio – soava ‘menos judeu’ numa época marcada por um antissemitismo virulento.

Ruth e Elliot se mudaram para Los Angeles e foram morar numa kitchenette infestada de baratas. Ruth trabalhava como estenógrafa na Paramount, e Izzy era um pobre estudante de arte, testando um novo tipo de plástico transparente.

Em dado momento o casal abriu uma empresa em uma garagem com um sócio, Harold “Matt” Matson, e batizaram-na de Mattel – combinando Matt e Elliot. A fundadora com o papel mais relevante era Ruth: Elliot se ocupava do design, ela cuidava dos negócios. “If he can make it, I can sell it,” ela dizia.

Foi então que esta visionária vislumbrou a oportunidade da sua vida em um setor ineficiente e inexplorado. Em 1955, três anos depois do Mr. Potato Head fazer história como o primeiro brinquedo anunciado na televisão, a Mattel teve uma reunião de uma hora com um representante de vendas da ABC, que apresentou a Ruth e Izzy uma maneira de cativar quase todas as crianças dos Estados Unidos: um novo programa de televisão da Disney chamado “O Clube do Mickey Mouse.”

O problema era que a Disney queria que os patrocinadores se comprometessem a anunciar por um ano, o que custaria cerca de U$ 500.000. Era uma proposta tão indecorosa para um fabricante de brinquedos que a Disney sequer incluíra as empresas do setor na lista de possíveis patrocinadores do programa infantil.

A Disney sabia que a Mattel e outros fabricantes só compravam espaço na TV em alguns meses do ano. Os fabricantes viam o mercado de brinquedos como muito sazonal e concentravam seu investimento de marketing nas vendas de Natal. (No resto do ano, vender brinquedos era como dirigir um caminhão de sorvete no inverno.)

“Qualquer fabricante de brinquedos que descobrisse uma estratégia de vendas para o ano inteiro teria uma enorme vantagem sobre a concorrência,” Robin explica na biografia.

Ruth viu naquele programa da Disney uma estratégia de vendas durante o ano inteiro. Ao sair da reunião, sua cabeça já estava feita.

Ela apostaria todo o capital da Mattel nos comerciais do “Clube do Mickey Mouse” – e já sabia o produto que valeria o risco de investir US$ 500.000.

Ruth pediu à agência de publicidade da Mattel para fazer comerciais para um violão de brinquedo que tocava uma música de faroeste, o Cowboy Ge-tar, e para o brinquedo que mais a empolgava na época: a Burp Gun.

Para a Mattel, o risco de promover uma metralhadora de brinquedo em um programa infantil eram nada menos que existencial. “Ela poderia ter perdido a empresa,” disse Robin. E durante as seis semanas depois do lançamento em outubro de 1955, parecia que ela talvez tivesse perdido tudo realmente.  As vendas estavam magras. Ruth, deprimida.

Ela não sabia que os números de vendas demoravam seis semanas para chegar das lojas de brinquedos aos fabricantes. Este atraso significava que a informação já tinha seis semanas quando finalmente chegava à mesa de Ruth.

Levou exatamente seis semanas de episódios do “Clube do Mickey Mouse” para a Mattel perceber que a Burp Gun era um sucesso de vendas.

Apesar de ter vendido um milhão de Burp Guns no primeiro Natal, aquela incerteza a incomodava tanto que Ruth enviou um exército de funcionários às lojas de todo país para acompanhar as vendas em tempo real. O objetivo daquele ‘esquadrão do varejo’ era simples: coletar dados e entregá-los a ela imediatamente.

Logo ela passou a ter informação de melhor qualidade em um dia do que seus concorrentes teriam em seis semanas – e a Mattel conseguia tomar decisões mais inteligentes e mais rápido do que as outras empresas.

Ruth reconheceu que os consumidores da Mattel eram as crianças, não seus pais, e ela conseguia atingi-los anunciando nos programas que eles assistiam. Por causa dela, os varejistas não podiam mais dizer aos pais o que comprar, e os pais não podiam mais comprar o que eles queriam para seus filhos. Quase que sozinha, ela tomou o poder dos adultos e o deu aos que sonhavam com as Burp Guns.

E havia muita gente nesse time. Em 1954, a receita total da Mattel chegou a US$ 4 milhões. Um ano depois, só as Burp Guns já faturavam isso.

No verão seguinte, Ruth e Izzy foram passar férias na Europa com a família e voltaram para casa com um souvenir que inspiraria o maior brinquedo da empresa até então.

Uma boneca vendida em lojas de adultos na Alemanha – e muito usada como uma brincadeira em despedidas de solteiro – não era o brinquedo mais óbvio para as crianças americanas.

E foi isso que Ruth ouviu das maiores lojas de departamento dos EUA ao trazer suas Barbies para a Toy Fair em 1959. Os homens simplesmente não conseguiam imaginar mulheres comprando uma boneca que tivesse seios para suas filhas.

“Ninguém acreditava que a Barbie ia dar certo,” disse Fern Field, uma produtora de TV que se tornou amiga de Ruth ao tentar fazer um filme sobre ela. “Ninguém.”


Aqueles compradores não percebiam que Ruth já havia mudado o varejo e preparado o terreno para uma Barbie. Já não importava o que as mães ou os pais achavam – ela conseguia contorná-los e atrair crianças com os anúncios nos programas de TV.

“Antigamente, eram os pais que mandavam,” disse Robin. “Por causa de Ruth, perdemos o controle.”

Em 1959, a Barbie chega às lojas. No ano seguinte, a Mattel fez seu IPO. A empresa que lá atrás apostou tudo – US$ 500.000 – hoje vale mais de U$ 7 bilhões. O negócio fundado por Ruth e Izzy na mesma época do Projeto Manhattan já passou por tantas mudanças quanto a própria Barbie desde então.

No entanto, é estranhamente apropriado que a Mattel esteja tentando ser a próxima Marvel – e rebatizando seus produtos infantis como propriedade intelectual.

Seus executivos estão pegando emprestado uma página do manual mais antigo da empresa ao usar filmes para vender mais brinquedos, da mesma forma que a Mattel vendia brinquedos na TV.

Na verdade, o momento mais importante nos anos de formação da Mattel ocorreu durante um intervalo comercial do “Clube do Mickey Mouse” em 1959, quando — boom!

Pela primeira vez, lá estava ela: a Barbie.

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