MILÃO – Num desfile da mais recente coleção masculina que Giorgio Armani exibiu na passarela, havia uma escultura de um lápis gigante. Após o desfile, Armani, prestes a comemorar seu 89o aniversário, dirigiu-se ao lápis estampado com seu nome e colocou o braço na escultura.

“Isso é para lembrar que meu trabalho começa com uma folha de papel em branco,” o estilista disse a um pequeno grupo de repórteres.

Por décadas, o mundo da moda esteve atento a sinais de que o “Rei Giorgio” – como ele é chamado aqui – pudesse soltar as rédeas de seu império de luxo. Potenciais compradores vão desde a Prada a John Elkann, o herdeiro da família Agnelli que é dono da Ferrari.

No entanto, depois do desfile, Armani deixou claro que não tinha nenhuma intenção de renunciar ao trono.

Moda“A cabeça ainda funciona muito bem”, disse ele.

Além da Maison Armani, uma longa lista de casas de moda italiana se encontram hoje numa encruzilhada. Muitos dos seus designers estão passando da idade da aposentadoria sem se desapegar das marcas que criaram; outros discutem como gerir o legado.

Por exemplo, o casal no comando da Prada, Miuccia Prada e Patrizio Bertelli, já tem mais de 70 anos. Diego Della Valle, chairman da gigante de calçados de luxo Tod’s, completa 70 este ano. Os cofundadores da Dolce & Gabbana, Stefano Gabbana e Domenico Dolce, estão na casa dos 60.

À medida que a realeza da moda italiana envelhece, a era do designer todo-poderoso está chegando ao fim. Armani representa uma geração de designers que comandavam com muita autoridade suas empresas – do ateliê à loja. Eles são, acima de tudo, donos, decidindo desde a governação corporativa à expansão internacional.

Mas esse modelo de negócios está sob ataque: os designers italianos, que já não estão no seu auge criativo, agora têm que navegar um cenário da moda que se tornou o domínio dos grandes conglomerados.

Grupos multimarcas usam seu poder financeiro para entrar na China e em outros mercados ao redor do mundo. Já os designers se tornaram profissionais de aluguel, contratados para modernizar as marcas e descartados quando as vendas caem – uma abordagem premiada pelos investidores. O conglomerado de luxo francês LVMH vale mais de 20 vezes os seus concorrentes italianos listados mais próximos.

Com escala menor, as marcas italianas se tornaram alvos fáceis. A Richemont, o conglomerado suíço que é dono da Cartier, adquiriu recentemente a Gianvito Rossi, uma marca italiana de sapatos. Neste verão, a Kering, o grupo francês que é dono da Gucci há anos, comprou uma participação de 30% na Valentino, com uma opção de adquirir a empresa inteira nos próximos cinco anos.

“Ficamos lisonjeados com o interesse de investidores pelo nosso negócio, mas acreditamos que nossa independência é vital,” disse Stefano Canali, o CEO da empresa que leva o nome de sua família e é conhecida por fabricar ternos usados por Barack Obama.

A Armani e a Prada resistem, em parte, porque se tornaram ícones culturais. Na Itália, onde são tratados como semideuses, os designers ocupam tanto espaço que até dificultam a ascensão de designers mais jovens.

Falar de sucessão chega a ser um tabu, dado que as marcas se confundem com as personas públicas de seus designers. A Prada reina há tanto tempo que as tendências do seu apogeu – na década de 90 e no início dos anos 2000 – agora voltaram à moda. As linhas do rosto angular de Armani suavizaram-se ao longo dos anos, mas sua camiseta preta, cabelos grisalhos e bronzeado permanente estão estampados no imaginário coletivo.

ModaNo início do mês, Brunello Cucinelli, conhecido por roupas de cashmere com preços que fazem lacrimejar, festejou seus 70 anos com 500 convidados na sede do seu lanifício homônimo, no vilarejo de Solomeo, na Úmbria.

A noite começou no anfiteatro construído por Cucinelli, pontuado por colunas e um busto de quatro metros do imperador romano Adriano. Os convidados – incluindo Martha Stewart e o ator Patrick Dempsey – foram instruídos a se vestir em “tons de branco, panamá, cinza claro e bege.”

Modelos vestidos com roupas de Cucinelli – de hoje e do passado – desfilavam na frente dele, e atores italianos leram trechos da Divina Comédia de Dante antes dos convidados degustarem uma refeição tradicional da Úmbria, regada a vinho da vinícola do designer. O aniversariante então soprou 70 velas, arranjadas ao redor de um bolo mil-folhas do tamanho de uma mesa de sinuca.

Com um discurso sobre a infância, o designer lembrou sobre como muitas vezes olhava para as estrelas em busca de inspiração porque, no interior da Itália do pós-guerra, não havia eletricidade em casa. “Conselho à nova geração: quando você se sente ofendido, simplesmente saia e olhe para as estrelas, isso vai acalmar você,” ele disse aos convidados.

Há décadas, o luxo italiano é definido por famílias altamente independentes e empreendedoras, que relutam  em unir forças.

De seus redutos em Milão, Roma e Florença, poderosos chefões da moda se vêem como rivais e não como potenciais parceiros, em um sistema de valores que remonta à história da Itália como um país de cidades-estados beligerantes. Guelfos e gibelinos não fazem M&As.

Mas agora os italianos encontram-se em desvantagem em todas as frentes: a concorrência francesa investe pesado em operações de comércio eletrônico e inteligência artificial, e suas lojas físicas são maiores e mais elaboradas. Recentemente, a LVMH gastou centenas de milhões de dólares para renovar a flagship store da Tiffany em Nova York, enchendo os dez andares da loja com telas de Basquiat, uma escultura de Anish Kapoor e uma daquelas pinturas de porcelana quebrada de Julian Schnabel.

“Esses caras são realmente muito, muito, muito fortes. Os grupos franceses de luxo – chapeau!,” disse Gildo Zegna, o CEO da Zegna e neto do fundador.  “O poder de fogo deles é realmente inacreditável.”

Marco de Benedetti, o herdeiro de uma das famílias industriais da Itália e hoje sócio do Carlyle em Milão, disse que as marcas francesas simplesmente superam os italianos na guerra por espaço no varejo.

“Você entra em um novo mercado, luta para conseguir um espaço ao sol, e aí vem a LVMH ou a Kering e dizem, ‘eu quero o andar inteiro’,” disse ele.

No entanto, é na passarela que esse desequilíbrio é sentido de maneira mais gritante.

Em junho, a Louis Vuitton ocupou a Pont Neuf, no coração de Paris. Pharrell Williams, o novo diretor criativo da marca para moda masculina, não apenas transformou a lendária ponte em uma passarela para sua primeira coleção, mas também fez um dueto espetacular com Jay-Z. O evento rapidamente conseguiu mais de um bilhão de visualizações nas redes sociais, segundo a empresa.

Pharrell faz parte de um sistema de estrelas que a LVMH e a Kering começaram a cultivar há mais de uma geração. Desde que Christian Dior, Yves Saint Laurent e outros grandes designers franceses deixaram a ribalta, os conglomerados vêm consistentemente atualizando suas marcas com designers mais jovens. Se um designer tiver dificuldades no cargo, a LVMH e a Kering podem contar com as outras marcas para impulsionar as vendas.

Há poucos dias, a Kering aumentou seu banco de estrelas quando seu acionista controlador, a empresa de investimentos Artémis, adquiriu uma participação majoritária na agência de talentos de Hollywood, a Creative Artist Agency, que representa estrelas de cinema como Reese Witherspoon e atletas como o jogador de basquete Devin Booker.

A Artémis foi fundada por François Pinault, de 87 anos, um dos homens mais ricos de França, que entregou muitas das operações ao filho, François-Henri Pinault.

Uma confluência de forças impulsionou os principais designers italianos no cenário mundial nas décadas de 80 e 90. Na época, o país tinha uma longa tradição de produzir artigos de alta qualidade – têxteis e de couro – por meio de pequenas empresas familiares. A lira fraca ajudou a manter os custos de produção baixos, e as altas margens permitiram às empresas investir em uma geração de designers emergentes, como Armani e Gianni Versace, que lançaram suas próprias marcas.

Para se promover globalmente, os designers recorriam a Hollywood. Quando vestiam estrelas de cinema, projetavam uma imagem melhor que a realidade. Armani vestiu um jovem Richard Gere em “Gigolô Americano” – um filme que levou os dois à fama – e seus designs se tornaram um dos pilares do tapete vermelho, junto com os de Versace.

No final dos anos 90, a Versace tentou comprar a Gucci. A combinação de dois dos maiores pesos-pesados da indústria teria criado um conglomerado capaz de competir com a LVMH na época. O plano acabou sendo frustrado pelo chocante assassinato de Gianni Versace em frente a sua mansão em Miami, aos 50 anos, o que levou sua irmã Donatella a assumir o cargo de designer.

A marca lutou para se expandir para novos mercados até que a Michael Kors comprou a empresa em 2018 por US$ 2,1 bilhões. Um dos nomes mais reluzentes da moda estava agora nas mãos de uma empresa conhecida por seu ‘luxo acessível’. Enquanto isso, a Gucci era adquirida por Pinault.

“A Gucci poderia ter sido o primeiro marco para um conglomerado de moda italiano,” disse Matteo Calegari, um managing director e head de luxo da Mediobanca, o grande banco de investimento italiano. “Foi uma oportunidade perdida.”

Nos anos seguintes, muitas das marcas de luxo italianas fizeram IPOs numa tentativa de levantar capital sem abrir mão do controle familiar. No entanto, todas enfrentaram dificuldades como a pressão dos investidores e mudanças no cenário geopolítico.

A Prada escolheu a Bolsa de Hong Kong para seu IPO  em 2011. De lá pra cá, Hong Kong se tornou um foco de tensão entre a China e o Ocidente, à medida que Beijing restringiu a democracia e a autonomia da cidade. Alguns fundos ocidentais estão boicotando a Bolsa, e a Prada agora está explorando a possibilidade de se listar em Milão.

A Tod’s, mais conhecida por seus mocassins Gommino com solas antiderrapantes, negocia hoje perto do preço do IPO, que aconteceu há mais de 20 anos. Ano passado, a marca tentou mas não conseguiu fechar seu capital.

As ações da Ferragamo, a fabricante florentina de artigos de couro, definham há anos. O papel subiu quase 15% durante a pandemia, depois que a empresa recontratou um ex-CEO veterano, levando à especulação de que poderia ser vendida.

Recentemente, a Prada e a Zegna tentaram se posicionar melhor por meio de parcerias. Em junho, ambas investiram na Luigi Fedeli e Figlio, um renomado produtor de fios e malhas finas em Monza, ao norte de Milão. Há dois anos, também adquiriram o controle de um produtor italiano de cashmere.

“Nunca é tarde para juntarmos esforços. E é isso que estou tentando fazer com alguns dos meus amigos na Itália,” disse Gildo Zegna.

Ainda assim, a lista de outrora-orgulhosas marcas italianas vendidas aos franceses continua crescendo. A LVMH já é dona da Bulgari, da Fendi e da Loro Piana. A Kering controla a Bottega Veneta, o ateliê de ternos Brioni e a joalheira Pomellato, além da Gucci.

ModaEste ano, a Prada finalmente implementou um plano de sucessão ao contratar uma ex-executiva da LVMH, Andrea Guerra,  como CEO, reduzindo as funções de Miuccia Prada e Patrizio Bertelli na gestão da companhia.

Parte do trabalho de Andrea Guerra será preparar Lorenzo Bertelli, o filho mais velho do casal, para assumir o comando um dia. Lorenzo, que tem 35 anos e hoje administra o marketing e a responsabilidade social da companhia, disse numa entrevista que será positivo trabalhar com alguém que não seja seus pais.

“Isso faz parte da minha jornada de crescimento,” disse o herdeiro. “É muito importante ter a combinação exata de opiniões de dentro e de fora da família.”

Lorenzo não é cogitado para comandar o lado criativo do negócio. Em 2020, a Prada contratou o designer belga Raf Simons, de 55 anos, para trabalhar junto com Miuccia como “co-diretor criativo”. Simons fechou sua marca homônima no ano passado e vem se dedicando à grife italiana.

Entregar uma marca à próxima geração é arriscado. Numa casa de moda, uma família numerosa pode causar brigas. A Ferragamo, que fica em Florença e é administrada pela terceira geração, limita a três os membros da família que podem trabalhar na empresa. As futuras gerações que quiserem trabalhar na Ferragamo precisarão ter mestrado e experiência externa de pelo menos dois anos, além de serem aprovados em um exame de admissão conduzido pelos familiares.

Definir regras claras de envolvimento entre a família e o management “é fundamental,” disse o chairman Leonardo Ferragamo. Ele começou a comandar a marca junto com sua mãe após a morte do pai, Salvatore Ferragamo, conhecido como o sapateiro de Marilyn Monroe e outras estrelas.

Diego Della Valle, que transformou o negócio de fabricação de sapatos de sua família na empresa global que ele rebatizou como Tod’s, ainda não designou seu sucessor.

Ele tem um filho e um sobrinho que trabalham no grupo e afirmou que se, algum dia ele vender sua empresa, será para a LVMH. O conglomerado francês tem uma participação de 10% na Tod’s.

Domenico Dolce e Stefano Gabbana disseram que por anos, seu império da moda não sobreviveria a eles. “Quando a gente morrer, tudo acaba,” Stefano disse ao Corriere della Sera em abril de 2018. Mas no ano seguinte a dupla mudou de ideia, dizendo que a família Dolce deve assumir o controle.

ModaOs planos de sucessão de Armani ainda não são claros, pelo menos para o mundo. Em 2016, ele disse que deixaria a empresa para a sua fundação, mas não explicou quem dirigirá a empresa nem a fundação depois da sua morte. Armani não tem filhos. Suas sobrinhas Roberta e Silvana trabalham no grupo, enquanto seu assistente de design de muitos anos, Pantaleo Dell’Orco, comanda as linhas masculinas.

Na primavera de 2021, Armani sofreu uma queda grave, fraturou o úmero esquerdo e recebeu 17 pontos no hospital. Meses depois, estava de volta aos holofotes, curvando-se aos aplausos no final do desfile – desta vez, no entanto, segurando a mão de Dell’Orco, no palco com ele.

Armani disse estar “preparando meu futuro com as pessoas ao meu redor,” mencionando seu assistente de longa data e a sobrinha Silvana, diretora da moda feminina.

Desde então, Armani se recuperou. No início do mês, deu um coquetel em seu iate durante o Festival Internacional de Cinema de Veneza. No dia seguinte, fez um desfile de alta-costura no Arsenale, o famoso estaleiro da cidade. Em seguida, outro coquetel para centenas de convidados, com uma apresentação ao vivo do cantor irlandês Róisin Murphy e o DJ Mark Ronson.

Entre os convidados estava Remo Ruffini, o chairman e CEO da Moncler, a designer de jaquetas e casacos finos.

Armani está “em ótima forma, realmente excelente forma, com uma cara ótima. Deve estar treinando muito e de olho na dieta,” disse Remo.

Ele não acha que Armani vai pendurar as chuteiras tão cedo. “Para mim, ele é o rei da Itália.”

 

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