Quatro anos atrás, a XP Investimentos começou a prestar um serviço que não existia no Brasil: aproveitando seu fluxo massivo de ordens, a corretora começou a ser contraparte de seus clientes, na compra e venda de contratos futuros na BM&F. 

A prática — conhecida como facilitation e prevista em norma da B3 — existe em todo mundo e pode ocorrer desde que a corretora ofereça um preço igual ou melhor que aquele estabelecido pelo cliente.

A novidade da XP é que o serviço, disponível há anos para clientes institucionais, não existia para os clientes do varejo.

Assim que o serviço começou, a BSM — um órgão autorregulador da B3 — começou a investigar o assunto, e na semana passada, o JOTA noticiou que o processo resultará numa multa de mais de R$ 10 milhões à corretora, que é líder do mercado com 16% de market share.

A história de como uma inovação acabou sendo punida pela Bolsa reflete os desafios dos reguladores em lidar com uma estrutura de mercado cada vez mais dinâmica, em que a tecnologia permite aos participantes criar novos produtos e oportunidades mais rapidamente do que a regulação consegue acompanhar.

O processo não é público, mas, segundo a XP, a BSM concluiu que o serviço prestado pela corretora economizou R$ 18,5 milhões para clientes — e, em alguns casos, gerou perdas totalizando R$ 30 mil (por extenso: trinta mil reais).

Na quase totalidade, a economia foi em cima dos chamados high-frequency traders, algoritmos de grandes investidores especializados em arbitrar o mercado operando em altíssima velocidade.

Na primeira versão do produto, por exemplo, se um cliente da XP queria comprar 1.000 mini contratos de índice a R$ 10 cada, mas houvesse apenas 100 contratos disponíveis naquele preço, a XP entrava como contraparte vendendo ao cliente os 900 contratos que faltavam.  Esta oferta de liquidez era feita de forma cega — isto é, a XP não via as outras ordens de seus clientes que poderiam estar competindo com ela.

A BSM reclamou que, em alguns casos, a XP estava entrando na frente de outros clientes vendedores, e exigiu que a corretora mudasse o algoritmo: antes de oferecer a liquidez, a XP teria que ver se algum cliente seu estava na ponta vendedora.  Se houvesse ordem de algum cliente da própria casa, a corretora deveria se abster.

A XP fez a mudança em 2016, mas, poucas semanas depois, a BSM disse não estar satisfeita, e alegou um novo problema.  

O órgão autorregulador disse que quando a XP olhava a tela para ver se outros clientes estavam na mesma ponta (atendendo sua determinação anterior), a corretora estava olhando apenas as ordens dentro de seu próprio ambiente de negociação, o chamado market data.  Mas, uma vez que o preço está fechado e as ordens, casadas, o pacote de dados demora um milissegundo para viajar até o sistema da B3 — um intervalo conhecido como latência — e, durante este lapso, outra ordem pode ter aparecido, fazendo com que o ‘match’ original não reflita mais o que a B3 considera o “preço certo”.

Para a BSM, a XP continuava errada.

Para superar o impasse, a BSM propôs um termo de compromisso que obrigaria a XP a parar de oferecer o serviço. A corretora não aceitou. 

Três semanas atrás, depois de quatro anos de conversa sobre o assunto, a B3 publicou uma regulação definindo todas as condições do facilitation para os clientes de varejo. A nova regra estabelece que, depois que a corretora enviar a ordem casada, a própria B3 checará se houve preterimento de algum cliente antes de autorizar o fechamento da ordem.

Desde que o chamado Retail Liquidity Provider (RLP) foi regulamentado, outras sete corretoras já começaram a oferecer o serviço, abrindo uma nova linha de negócios.

“Quando a gente começou, não havia regra, e em nenhum momento a B3 nos disse que não estávamos em conformidade com suas regras,” Fabricio Almeida, o diretor jurídico da XP, disse ao Brazil Journal.  “A gente sabia desde o início que a gente estava tornando a operação mais barata para os clientes pessoa física — tanto em liquidez, preço e spread — e os próprios números da BSM provam isso.”

Ao fazer um back test de todos os trades da XP em questão, a BSM entendeu que, graças à latência, clientes perderam um total de R$ 30 mil, enquanto economizaram R$ 18,5 milhões, segundo nota da XP.  Em outras palavras: o prejuízo por causa da latência foi 0,0016% do benefício gerado. (A XP disse que vai reembolsar os clientes assim que a BSM informe seus nomes.)

Por trás da controvérsia, há uma discussão mais ampla.

No Brasil, diferentemente de mercados desenvolvidos, as corretoras não podem casar ordens fora do ambiente da Bolsa — a chamada “internalização de ordens” — o que as obriga a pagar emolumentos à Bolsa, encarecendo as negociações.

Assim, enquanto lá fora a concorrência se dá em duas verticais — Bolsa contra Bolsa e corretoras contra Bolsas — no Brasil, tudo obrigatoriamente passa pela B3.