Marcos Lisboa acha que a polarização do País e a falta de um debate honesto na campanha vão dificultar a aprovação das reformas no próximo Governo. Ele destaca a superficialidade de muitas das propostas dos assessores dos candidatos. 

Desde que saiu do Governo, o ex-secretário de política econômica se tornou um dos melhores intérpretes da urgência das reformas previdenciária, fiscal e na máquina do Estado. Para ele, se as reformas não forem feitas nos próximos dois anos, “a última crise que tivemos terá sido só um tira-gosto perto da gravidade da próxima.”

Nesta conversa com o Brazil Journal, ele defende que os candidatos de centro se unam “contra o autoritarismo de qualquer lado” e achou importante lembrar o óbvio: qualquer novo Presidente terá que negociar com o Congresso para aprovar as reformas, sem as quais podemos ter outra década perdida.

A seguir, os melhores trechos da entrevista:

 
Que avaliação você faz da discussão econômica nessa campanha em que se discute tudo, menos o mais importante? 
Surpreende a superficialidade de algumas propostas, muito pouco amparadas nos dados, e que mal discutem os problemas que o País enfrenta, que são graves. A gente sabe que nas campanhas eleitorais com frequência os debates são mais rasos, mas a deste ano surpreende pela superficialidade e pela propostas que não param de pé, ou revelam um imenso desconhecimento técnico. Sobretudo depois da crise que o País vive e das nossas graves dificuldades, a superficialidade é impressionante. 

A candidatura Bolsonaro representa para muita gente a implosão do sistema político atual. Seus eleitores acham que, por ele não ter alianças, ele não tem compromisso com ninguém e, assim, vai conseguir fazer um governo melhor. O que a sua experiência de Brasília te diz sobre isso? 

Olha, falta combinar com o País e com as regras do jogo da democracia. Um Presidente hoje pode pouco. Grande parte das despesas obrigatórias, quase todas, estão comprometidas com a Constituição e suas emendas. E o restante decorre de leis complementares ou ordinárias.  101%, 100% da receita está comprometida com despesas obrigatórias. Qualquer tentativa de enfrentar os problemas fiscais e mudar a orientação da política econômica passa pelo Congresso e pela aprovação de leis e, no caso da Constituição e suas emendas, de aprovação por parte de 60% do Congresso em duas votações em cada casa. 

 
Isso requer uma ampla capacidade de negociar e de conseguir apoio. E vamos combinar que tem dificuldades adicionais: o Orçamento hoje é impositivo, ele vem do Congresso. Medida provisória caduca depois da primeira reedição. Na ausência de uma capacidade de construir amplas maiorias no Congresso, negociando os detalhes, fica muito difícil o Executivo tomar a liderança. 

Já foi lembrado que um presidente como o Collor — que, curiosamente, foi eleito como um outsider da política apesar de ser um insider — pôde tomar medidas dramáticas na economia, justamente porque tinha acabado de ser eleito e era muito popular. Esse não seria o caso aqui? 

Certamente político respeita voto, e o novo Presidente terá apoio para propor e conduzir a agenda no começo do seu mandato; afinal, ele vem respaldado pelas eleições, mesmo que esses votos não se traduzam em maioria da sua base no Congresso. 

Mas vamos lembrar que o Collor foi presidente em outra época; nossos gastos obrigatórios não eram tão grandes. O presidente tinha o instrumento das medidas provisórias que podiam ser reeditadas seguidamente. As regras do jogo mudaram profundamente desde então. Hoje, os gastos obrigatórios são a parte mais urgente dos nossos problemas. Eles consomem quase toda a receita. Atualmente, o presidente não pode propor novos gastos públicos sem que o Congresso reduza outras despesas obrigatórias.

O PT continua negando as reformas, negando fatos básicos do passado econômico recente. Se Fernando Haddad tiver que fazer uma ponte com os setores racionais entre o primeiro e o segundo turno para reeditar a ‘Carta ao Povo Brasileiro’ de Lula em 2002, ele vai ter problemas? 

Política não é o meu ramo. Mas acho que as linhas principais do que o candidato vai fazer caso eleito tem que estar claras na campanha. Caso contrário, gera-se um conflito inevitável entre o que o candidato disse e o que o Presidente quer fazer, e isso leva à ruptura da base aliada. Nós assistimos isso em 2015. O programa recente do Partido dos Trabalhadores lembra muito o discurso do partido em 2001:  as mesmas palavras de ordem, o mesmo discurso descasado da realidade, com teses sem fundamento nos números e, em linhas gerais, muito semelhantes ao que o Governo [Lula] começou a adotar em 2008 e 2009 — proteção de setores estratégicos, fortalecimento das estatais, apoio à produção local, essa microdistribuição de incentivos e benefícios, e a tentativa de apoiar empresas e setores. Deu no que deu. 

Grande parte das empresas que começaram a apresentar graves dificuldades depois de 2012 foram dos setores apoiados pelo governo a partir de 2009. Houve uma espécie de maldição sobre tudo que o Governo tentou apoiar: quase tudo deu profundamente errado alguns anos depois. Por que mesmo que isso ocorreu?  

Só para lembrar: a dívida pública cresceu 20 pontos do PIB em três anos!  E se nada for feito, vai continuar a crescer nos próximos anos. 

Afinal, qual é a proposta do PT nesta eleição? O primeiro Lula — que renegou a agenda tradicional do PT e aprofundou o ajuste fiscal — ou o segundo governo, que resultou nos imensos equívocos e fracassos ampliados pelo governo Dilma, com a sua usual competência para conseguir o inverso do que pretendia? 

Todo mundo conhece as linhas gerais do que pensa o Paulo Guedes – privatização em massa, Previdência com regime de capitalização, etc — mas há pouca clareza sobre o plano econômico de um Governo Bolsonaro, além de haver muitos economistas questionando os números a serem arrecadados com privatização e o tempo em que o Paulo diz ser capaz de zerar o déficit. 

O que a gente viu até aqui foram algumas frases esparsas, com alguns números que não batem com os dados que temos das empresas estatais, e linhas gerais que dizem muito pouco. Pegando o caso das estatais e eventuais privatizações, o governo atual tem feito um trabalho admirável – a Fazenda e o Ministério do Planejamento, sobretudo — de acertar a gestão das estatais. Acho que é um trabalho que é pouco reconhecido…como melhorou!  O resultado das estatais melhorou 310% no primeiro tri deste ano contra o mesmo trimestre do ano passado. É bom lembrar que o governo anterior deixou as estatais quebradas, e hoje elas estão com superávit no conjunto da obra.

Agora, esses números de R$ 1 trilhão para cá, um R$ 1 trilhão para lá, parece que virou moeda corrente… Não batem. A parte da União nas estatais listadas em Bolsa dá R$ 130 bi, R$ 140 bi… Você pode até falar em um “prêmio de controle”. Mas não chega a R$ 1 trilhão.  E fora as empresas listadas em Bolsa, tem pouca coisa realmente de valor: a carteira de ações do BNDES, mais algumas outras empresas. 

A grande maioria do que resta são empresas muito complicadas. Quem vai querer comprar os Correios? Uma empresa com trabalhadores demais, com um passivo trabalhista imenso… Olha a Infraero, com excesso de servidores. A gente sabe que as empresas têm imensos problemas, então é muito difícil imaginar que cheguem a esses números prometidos.  Muitas estatais têm passivos que, aparentemente, só não são cobrados exatamente por serem estatais. Só a Eletrobrás tem entre R$ 15 bilhões e R$ 20 bilhões de contingências sobre os empréstimos compulsórios de décadas atrás, entre muitos outros riscos.

E existe a dúvida gerada pelo desencontro entre o assessor econômico e o candidato, que afirma que as principais estatais não serão vendidas. Afinal, qual a agenda do candidato? Vai defender uma agenda de privatização ampla, geral e irrestrita, ou não? Essa dúvida fica ainda maior se lembrarmos a agenda parlamentar do candidato em suas muitas décadas como político. Contra o plano Real, contra privatizações, sempre na defesa de interesses corporativos de servidores públicos… afinal, quais são as suas propostas? Vai defender uma reforma da previdência que inclua o projeto de Arthur Maia do fim do ano passado, que foi discutido no Congresso? Vai incluir os militares na reforma? Vai ser um liberal ou vai ser fiel à sua longa agenda corporativista como deputado? São perguntas simples à espera de respostas.

Você tem esperança de que um candidato do centro prospere?

Temos duas candidaturas que afastam muita gente dos principais candidatos por muitas razões. Não tem agenda possível que não passe pela capacidade de construir uma sólida, longa maioria no Congresso para negociar as reformas importantes para que o país possa crescer e arrumar sua política pública. Uma agenda que é extensa, técnica. Como vai se conseguir construir essa maioria com o País tão fragmentado?

O que surpreende um pouco é a incapacidade dos candidatos de centro de priorizar o País. Muitos parecem mais concentrados em suas candidaturas miúdas. Construir uma agenda que enfrente nossos difíceis desafios requer definir uma agenda minimamente comum. Será que tem algo que una as candidaturas de centro? O respeito à democracia, às instituições… Será que conseguiremos um acordo mínimo sobre o que fazer em relação à Previdência, aos gastos públicos obrigatórios que não param de crescer? 

É possível um acordo sobre um norte para o país e a economia que a gente quer, sobre os princípios básicos? É um caminho longo. O custo pode ser gigantesco se você faz uma mudança radical na economia, como abrir rapidamente a economia à concorrência externa, ou rever os incentivos fiscais e as proteções setoriais do dia para a noite.

Mas muitos eleitores dos dois lados, das duas candidaturas, querem mudanças radicais, força bruta, rapidez…

Primeiro, para implementar mudanças você precisa da maioria. Você não gosta de Congresso? Troca de Brasil. Porque o Congresso somos nós: toda sociedade está representada no parlamento, aquilo somos nós, aquilo é o Brasil. Nós temos que ser capazes de dialogar e encontrar pontos de acordo. De novo, não tem saída sem construção de grandes maiorias e negociação sobre temas que são urgentes. E vamos combinar, nós estamos atrasados nessa agenda. Não somos pobres à toa. Temos feitos escolhas muito competentes para permanecermos pobres.

A escolha pela força, porém, só leva à ruptura, só leva a mais violência. Na política, você não escolhe com quem você vai conversar. A sociedade escolheu pra você. Esse é o respeito à democracia: é o respeito e a tolerância com o divergente. Gostar de quem é igual a você é fácil. A beleza da democracia e o seu desafio é conviver com quem nós discordamos, com quem pensa diferente. Nosso desafio será construir uma agenda comum, apesar de eventuais divergências, porque, afinal de contas, se não fizermos as reformas, o país todo fica mais pobre. 

Desde 2011 o País fica cada vez mais pobre em relação a seus pares. Já foram sete anos perdidos, quando comparamos o Brasil com os demais países emergentes, ou mesmo com os da América Latina. Quantos anos mais vamos perder por não sermos mais capazes de construir pontes, diálogo, e enfrentar a agenda de reformas? 

A polarização que está aí – se o resultado for um dos dois lados dessa polarização – é um mau presságio para a capacidade de construção de maiorias no Congresso.

Quando houve a eleição de 2014, antes do Joaquim [Levy] ser escolhido ministro, discutia-se, “Vai se escolher um ministro conservador? Vai repetir 2003?”  

Eu escrevi um artigo que dizia: “Ministro da Fazenda não basta”. Porque é isso: tem o Congresso, tem que negociar com os representantes escolhidos pela sociedade. Precisa-se de um governo capaz de construir maioria. E com aquela campanha polarizada, raivosa de 2014, não havia possibilidade disso. E a frase final era algo assim: “A campanha elegeu a presidente, mas pode ter derrotado o governo”. 

O diálogo ajuda a evitar o equívoco… É preciso restabelecer o diálogo.

Agora, há uma boa notícia. No meio da confusão política e das dificuldades, o Brasil tem uma quantidade notável de servidores públicos. Por toda a parte. No Rio, com toda a dificuldade, tem muita gente suando a camisa para evitar que a situação fique pior. Porque poderia estar pior….

A mesma coisa aconteceu em Brasilia. Olha o caso do Espírito Santo, olha o que o Espírito Santo fez. Dentro dessa confusão do país, seu primo rico que é o Rio de Janeiro enfrentando dificuldades, enquanto o Espírito Santo continua a pagar os salários dos servidores em dia, com a educação no topo do país, fazendo concessão de saneamento. Olha que coisa espetacular. 

Outro exemplo são os servidores dos ministérios da Fazenda e do Planejamento. Temos uma imensa dívida de gratidão com esses servidores. No meio dessas dificuldades, apesar do governo fraco, com baixa legitimidade, cercado de denúncias… muita coisa foi feita. 

O setor elétrico está muito melhor hoje do que estava antes. Várias empresas estatais estão recuperadas. O trabalho que o Ministério do Planejamento fez com as estatais foi fora de série. 

Agora, como é que intelectuais preocupados com o país – independente de sua origem ideológica – não apoiaram a reforma da previdência em dezembro? Não foram às ruas falar, “tem que fazer”?  Aquilo foi uma irresponsabilidade, ou reflexo do oportunismo político mais rasteiro! Deveriam ter dito: “O país vai ficar mais pobre, temos que fazer, não dá para continuar comas regras atuais!”

Ao invés disso, continuaram com as teses mais estapafúrdias. Ouvi de amigos à esquerda: “ah, Marcos, como você pode defender propostas desse governo?” Minha agenda não era para este governo, é para o País.  A opção destes meus amigos, porém, foi continuar a criticar qualquer proposta “deste governo”. Preferiram continuar a vender terreno na Lua!

Pareciam moradores de um prédio em conflito com o síndico. Há um incêndio, e o síndico pede para ajudarem no combate ao fogo. Eles se negam. “Imagina. Apagar esse incêndio pode transformar o síndico em herói.” Melhor deixar o prédio pegar fogo…

Como decidir nesta campanha tão polarizada?

Talvez seja a hora de algumas pessoas no centro demonstrarem grandeza e dizer: “olha, tem aqui uma decisão complicada, tem divergências, meu partido é diferente do seu, mas está na hora de pensar no país, porque o momento é grave. Vamos combinar que há reformas urgentes que são consensuais.”

Será que os grupos que defendem as instituições democráticas, e que, ao mesmo tempo, reconhecem os imensos desafios do Brasil, não conseguem chegar a uma agenda comum, incluindo realizar reformas que os demais países realizaram há mais de duas décadas, como a da previdência? Não conseguem chegar a um acordo mínimo sobre a política econômica, e que a prioridade da política pública deveria ser os grupos socialmente mais vulneráveis?

A polarização da política e a falta de coesão no Centro me lembra aquele poema de Yeats:  “Os melhores estão sem convicção alguma, enquanto os piores estão cheios de intensidade passional.”  

Vamos lembrar aquela eleição de 2000 [nos EUA], em que o Ralph Nader foi candidato, pela esquerda, numa campanha muito polarizada entre o Al Gore e o George Bush. E o Nader, muito forte, teve pouco menos de 1,9 milhão votos. Nunca o Partido Verde teve tantos votos nos Estados Unidos. E na eleição, muito apertada, deu o Bush com aquela história da Flórida. Todas as pesquisas indicam que, tivesse tido o Ralph Nader a grandeza de sair, o Al Gore provavelmente teria sido eleito. Teria sido outro resultado a eleição. Muitos analistas acreditam que, pela pequenez do Ralph Nader naquele momento, perdeu-se a oportunidade de uma visão mais consensual para a maioria vencer. 

Ralph Nader se tornou uma figura irrelevante e foi abandonado pela política. O seu oportunismo naquele momento custou caro depois. Eu temo que alguns de centro possam passar pelo mesmo abandono e desprezo caso o seu oportunismo não permita uma aliança de centro contra o autoritarismo de qualquer lado.