Aproveitando-se da fraqueza do Governo Federal, governadores estão negociando ‘a mãe de todas as bombas fiscais’, elevando a dívida pública a 100% do PIB e onerando a sociedade com (ainda) mais impostos e austeridade por pelo menos mais uma década.
O chamado Plano Mansueto – proposto antes da crise de saúde pública – era, originalmente, um estímulo a estados com nota de crédito C para que fizessem reformas fiscais. Os estados nota C estão mais perto dos falidos (os nota D) que dos saudáveis (nota A).
A eles se ofereciam garantias para tomar empréstimos, desde que colocassem a casa em ordem. O aumento máximo de endividamento seria de R$ 10 bilhões por ano, durante quatro anos.
Com a crise, o projeto de lei está sendo desfigurado, e se tornando veículo para oportunismos de toda sorte. Os estados tentam, agora, empurrar para a União o custo de décadas de má gestão, nada relacionado à crise sanitária. As negociações estão avançando rapidamente. Se a sociedade não pressionar, a conta será inevitável.
O substitutivo em discussão no Congresso, por exemplo, permite que muitos estados entrem no chamado Regime de Recuperação Fiscal (RRF), idealizado para, no máximo, quatro estados em situação grave, que não sobreviveriam sem respirador.
Os estados que aderirem ao RRF poderão suspender o pagamento da dívida com a União por seis ou mais anos. Adicionalmente, todas suas dívidas passam a ser pagas diretamente pela União, com o saldo ficando para ser quitado em futuro distante. Tal acúmulo de dívida acaba se tornando impagável, ficando claro que haverá novos perdões no futuro.
Não bastassem todas essas facilidades, está sendo aberta uma nova linha de empréstimos com garantia da União, quatro vezes maior que o Plano Mansueto (R$ 40 bilhões/ano) e acessível até pelos estados com nota D. Obviamente quem vai pagar é a União.
No projeto original, havia a possibilidade de contratar dívidas novas para substituir as antigas, desde que isso representasse queda no custo da dívida. Esse dispositivo está sendo trocado por outro que permite amplo endividamento por antecipação de receitas futuras. A conta está sendo jogada para os próximos gestores.
O Rio de Janeiro ganha mimos especiais.
Atualmente, a CEDAE está dada em garantia a um empréstimo. Havendo inadimplência, a empresa será federalizada e privatizada. Pelo projeto, a União ficará com a dívida e devolverá a CEDAE ao Estado. Mais: uma dívida do falecido BANERJ, que deveria ser paga nos próximos 4 anos, está sendo estendida para 20 anos. R$ 17 bilhões em multas e mora, de antiga inadimplência, estão sendo perdoados.
Mais da metade dos R$ 28 bilhões de suspensão de pagamento da dívida beneficirão São Paulo, que tem ganho desproporcional por ser o maior devedor. Todas as renegociações do passado exigiam um pagamento mínimo por São Paulo, para evitar desequilíbrio. Agora, não mais.
Não bastasse isso, os governadores do Sul e Sudeste propuseram uma PEC que abre espaço para gastos da ordem de quase R$ 140 bilhões (1,9% do PIB) em dois anos: parcelamento a longo prazo e suspensão do pagamento de precatórios, suspensão dos limites de despesa com pessoal, não pagamento dos estados ao INSS e ao PASEP, financiamentos adicionais e assunção generalizada de dívidas pela União.
A discussão no Congresso ampliou as demandas, incorporando uma compensação de perda do ICMS que adicionaria mais R$ 37 bilhões à conta.
Com o total dos pedidos de ajuda aos estados agora em discussão, a União transferiria em média R$ 600 por habitante para cada estado, alguns recebendo bens mais de R$ 1.000, somando transferências e alívios de dívida.
Estão indo muito além de resolver o problema emergencial. Trata-se de praticamente repassar todo o passivo dos estados para a União e ainda obter recursos adicionais. Esses pedidos vêm justamente neste momento de crise severa, com recursos escassos e um Tesouro já está sobrecarregado com imensos pedidos para atender os grupos vulneráveis e preservar, ao menos parcialmente, salários e empregos.
Com o déficit primário de 2020 já próximo de 7% do PIB, mesmo em um cenário de queda relativamente modesta do PIB em 2020, estaremos caminhando para uma dívida bruta em torno de 90% do PIB. Mas se for aprovado o socorro aos estados no montante descrito acima, o déficit de 2020 vai para 9% do PIB e a dívida pública rapidamente chegará a 100% do PIB. E o imenso comprometimento dos recursos públicos torna menos provável esse cenário de queda modesta do PIB.
Não pode ser assim.
Os estados estão, de fato, enfrentando brusca queda de arrecadação, e precisam de ajuda. Mas a ajuda precisa se restringir à travessia dos meses difíceis.
O Governo já está pagando uma complementação ao FPE e FPM. Pode-se agregar uma compensação parcial à perda das receitas tributárias. Partindo de uma arrecadação tributária de R$ 660 bilhões, temos uma arrecadação média mensal de R$ 55 bilhões. Se houver uma perda de 30% dessa receita nos próximos três meses, estamos falando de R$ 16,5 bilhões por mês. O Governo Federal pode compensar integralmente essa perda, durante três meses, repassando R$ 78 por habitante, e suspendendo todas as outras medidas de alívio, que já somam R$ 600 per capita.
Neste momento de grave crise, o Congresso deveria se concentrar nos programas temporários para enfrentar a pandemia e seus efeitos colaterais na economia. Nada além disso deveria ser discutido de afogadilho, ainda mais tendo em vista seus severos efeitos colaterais para a recuperação da economia.
Não haverá mágica para pagar esse passivo público, ainda mais se severamente agravado pelos pedidos dos estados. Custará mais impostos e menos gastos por muitos anos. Precisamos ser o mais cirúrgicos possível nas medidas de socorro.
O que os estados estão pedindo é inadmissível.
Marcos Lisboa e Marcos Mendes são economistas.