As recentes propostas de alteração da tributação da renda do capital enviadas pelo governo e aprovadas pela Câmara ontem à noite foram anunciadas como medidas que buscam melhorar a equidade e a eficiência do sistema tributário.
Se o PL passar pelo Senado da forma como está, os fundos de investimento fechados passarão a ser tributados como os fundos abertos, ou seja, de forma automática, duas vezes por ano (o chamado “come-cotas”). Também haverá tributação automática anual para investimentos feitos por meio de empresas no exterior (offshores).
O come-cotas foi uma medida arrecadatória tomada sem que se entendesse seus efeitos colaterais. Agora, o Governo pretende ampliá-lo, agravando as distorções existentes.
As regras “antidiferimento”, seja o come-cotas ou a tributação anual das offshore, têm por objetivo cobrar tributos sobre ganhos provisórios ou reinvestidos – mas a forma como a regra é implementada cria outros problemas.
O come-cotas captura ganhos ainda não realizados e que podem não se concretizar, tal como a valorização de uma ação na carteira de um fundo de renda fixa que posteriormente é vendida com perda.
A perda na venda da ação integra o patrimônio do fundo a posteriori, ou seja, só será deduzida do imposto a pagar algum tempo depois. Isto resulta em uma perda efetiva para o cotista, já que a dedução posterior não sofre correção nenhuma, ainda mais em tempos de inflação e juros altos. Esse aspecto da tributação afeta as decisões de poupança e de investimento.
Independentemente do quanto se cobra de tributos, mudanças no desenho do sistema tributário podem ter implicações para a economia. Dependendo das regras específicas de arrecadação, o mesmo volume tributado pode ter um impacto maior ou menor sobre a produtividade, o investimento e o crescimento econômico.
Ao serem tributados periodicamente, independente do ganho vir a se concretizar, a composição dos fundos sujeitos às novas regras vai mudar: pode-se decidir comprar menos ações e mais títulos do Tesouro Direto.
O mercado e os poupadores vão se ajustar às novas regras, o que terá consequências para as decisões de investimento. Algumas empresas poderão ter menos acesso ao mercado de capitais, sendo empurradas para tomada de crédito no sistema financeiro.
Além disso, ao se tributar os fundos de investimento e as offshores periodicamente, não se elimina a falta de isonomia em relação àqueles que utilizam essas estruturas para administrar seus recursos, pois, embora se elimine o diferimento, ainda é possível a compensação de perdas de forma irrestrita.
Para as pessoas físicas, e a um custo de conformidade que não é trivial, possibilita-se a compensação de perdas em renda variável somente com os ganhos de renda variável. Nos investimentos feitos por meio de pessoas jurídicas no Brasil não há essa tributação automática e existem algumas restrições para a dedutibilidade das perdas em renda variável.
O Brasil é um país engraçado: criamos os fundos justamente para diferir a tributação da poupança e estimular o investimento, e depois criamos um mecanismo de tributação bianual, presumida, dos ganhos não realizados, acabando com o diferimento da tributação…
Ao menos para os fundos existe uma forma economicamente mais eficiente de se evitar o diferimento, com menos distorção: bastaria tributar os investimentos apenas quando resgatados pelos fundos, quando geram ganhos certos para os cotistas, tal como ocorre com as empresas e as pessoas físicas. Assim, todos teriam a mesma tributação e, aí sim, estaríamos na direção de eliminar as distorções. Essa proposta poderia ser adotada tanto para os fundos abertos quanto fechados, resolvendo os problemas de equidade e de ineficiência alocativa.
Usualmente, as regras de tributação atendem a alguns princípios. Progressividade: famílias que ganham mais, pagam mais. Tipicamente, esse papel é realizado pelo Imposto de Renda. Neutralidade: a tributação sobre consumo deve ser uniforme para todos os bens e serviços, incidindo sobre o valor adicionado em cada etapa, com a exceção de casos específicos por razões técnicas.
No caso da tributação da renda, o mesmo deveria ser observado. Caso instrumentos assemelhados de poupança e geração de recursos para investimentos não sejam tratados equanimemente, pode-se induzir financiamento de atividades menos produtivas simplesmente porque a carga tributária é menor (melhora a rentabilidade de um investimento em detrimento de outro e abandona-se a neutralidade e a eficiência econômica).
Na experiência internacional, há um caso particular em que essa diferenciação na tributação dos investimentos pelo imposto de renda pode ser benéfica: quando a tributação se reduz para aplicação da poupança com prazos mais longos, em razão do seu impacto no financiamento de investimentos de longa maturação. Esse foi o motivo da introdução da tabela regressiva de tributação conforme o prazo dos investimentos, em 2004. Era um primeiro passo na direção de incentivar investimentos de longo prazo.
Existe uma agenda extensa de medidas que dariam conta de melhorar as regras do imposto de renda na direção da eficiência, do crescimento econômico e da equidade: eliminação da dupla não-tributação dos lucros distribuídos por empresas optantes do SIMPLES e do lucro presumido, revisão das regras que limitam a compensação de prejuízos fiscais, renovação do nosso marco regulatório de incentivos à inovação, modernização das regras de dedução de gastos com remuneração de executivos, propaganda e marketing, e royalties, e, claro, a melhoria das regras de tributação em bases universais.
Mas pelo visto, continuamos com a agenda tradicional de arrecadação rápida, sem análise de impacto de como os gestores, as empresas ou as famílias reagirão às novas regras, nem do consequente ajuste nos preços dos ativos ou nas decisões de investimento e de produção. O problema não é quem está sendo taxado, e sim nos efeitos colaterais das novas regras sobre os demais participantes do mercado.
Medidas tributárias usualmente são propostas no Brasil como se a economia fosse funcionar da mesma forma depois de
implementadas, apenas com alguns pagando mais tributos.
Mas as coisas nunca funcionam assim.
Marcos Lisboa é doutor em economia pela Universidade da Pensilvânia e ex-presidente do Insper. Foi Secretário de Política Econômica entre 2003 e 2005.
Vanessa Rahal Canado é professora e coordenadora do Núcleo de Tributação do Insper. Foi assessora especial do Ministro da Economia entre 2019 e 2021 para assuntos relacionados à reforma tributária.